Quem foi Edgar Allan Poe?

Paulo Leminski


Em “A Queda da Casa de Usher”, criou o aristocrata Ruderick Usher cuja sensibilidade era tão fina que não suportava a luz, sons altos nem tecidos comuns.

Em “O Retrato Oval”, mostrou como a arte mata a vida, na história do pintor que vê definhar sua amada enquanto lhe pinta o retrato até a morte, que coincide com a última pincelada.

Em “O Coração Delator”, conta a história do assassino que se entrega à polícia, enlouquecido pelas batidas cada vez mais altas do coração de sua vítima, enterrada no porão.

Em “Os Fatos no Caso do Sr. Valdemar”, imagina um moribundo hipnotizado na hora do seu passamento e depois mantido num estado entre a vida e a morte pelo hipnotizador.

Em “Os Assassinatos da Rua Morgue”, bolou um crime quase insolúvel praticado por um grande macaco, quando todos procuravam um criminoso humano.

Em “O Gato Preto”, faz um assassino ser entregue à polícia por um gato que tinha sido emparedado junto com a vítima.

Em “O Escaravelho de Ouro”, centraliza toda a história da caçada a um tesouro na decifração de um código baseado na distribuição estatística das letras da língua inglesa.

Quem era esta mente capaz de todos os horrores, mórbida, doentia, mas genial?

Quem foi Edgar Allan Poe?

Poe, sem dúvida, é o maior escritor da literatura norte-americana do século passado.

Órfão de uma família de atores, foi criado por aristocratas ricos. Cursou a Academia Militar de West Point, donde foi expulso. Jornalista, na fase heróica do jornalismo, viveu às voltas com a miséria. Casou-se com uma prima que morreu tuberculosa. Alcoólatra contumaz, tinha freqüentes ataques de delirium tremens, que retrata em “O Barril de Amontilado”.

Poe é pai de três coisas sem as quais a cultura ocidental moderna não é compreensível: a história policial, a história de terror e o poema simbolista.

Poe foi o primeiro ficcionista a transformar um policial em herói, fazendo do desvendamento do crime uma peripécia intelectual. Nisso, é o pai de todos os Sherlock Holmes, Hercules Poirots, Kojaks, Columbos, Barettas, e tantos tiras infalíveis que garantem, em nossos vídeos, que o crime não compensa.

A história de terror, o terror inteligente, o terror lúcido, foi um genial truque barato que Poe inventou para manter a atenção do leitor de jornais, criatura que mal começava a existir em sua época.

Como poeta, Poe passou para a sonoridade e a música das palavras toda a força da poesia, abrindo caminho para o poema simbolista que só viria muitas décadas depois.

Considerado um escritor barato pelos contemporâneos, foi descoberto e idolatrado pelos poetas simbolistas franceses. Baudelaire traduziu-lhe todos os contos. Mallarmé, todos os poemas. Não é pouca porcaria ser idolatrado por esses dois gênios.

Poe tem que ser entendido como o primeiro escritor a sacar a Revolução Industrial. No olho do ciclone da explosão do capitalismo americano, Poe, profeta, matou no peito os ventos que vinham do futuro e incorporou o mundo industrial e a psicologia das multidões das grandes cidades, quando os escritores de sua época voltavam-se de preferência para um passado idílico. Daí, sua grandeza.

Primeiro “homo semioticus”, no dizer de Décio Pignatari, Poe chegou à compreensão da língua como um código em “O Escaravelho de Ouro”, a partir das caixas de tipos nas oficinas tipográficas dos jornais onde trabalhou. Nelas, viu que as letras se distribuem de modo irregular mas lógico, estatisticamente, em qualquer língua, prenunciando explorações da lingüística mais recente.

Contrariando a estética romântica que defendia a criação expontânea e “inspirada” do poema, escreveu “O Corvo”, poema de elaboração, segundo ele, racional como um teorema ou um lance de xadrez, em que cada verso, cada efeito, é deliberadamente calculado para produzir um resultado. Nisso, é precursor de toda uma poética atual, como a Poesia Concreta, que coloca o acento sobre a racionalidade da construção na feitura de mensagens poéticas.

Esse gênio que morreu na sarjeta, o primeiro dos malditos, beberrão, toxicômano, excêntrico (vestia as roupas ao avesso), abriu para a imaginação espaços imensos, até então inexplorados. Foi pioneiro, como toda a sua raça que fez a saga e a tragédia do “far-west”, na mesma época.

Toda a literatura dita “fantástica”, Kafka, Borges, começa com ele. Poe decretou a liberdade da imaginação e da fantasia criadora.

Não pode haver título nem glória maior.

 

 

In: O Corvo, Ed. Expressão, pág. 47-48, 1986.

 

 

Û Ý pop
box
´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes