Poemas de Luis Dolhnikoff

 

 

OS GRANDES CARDUMES DO GÊNERO JORNALISTA-POETA
(E CONGÊNERES) E O PEIXE DE AMANHÃ


ser poeta
ou praticar a pesca
esportiva de palavras:
nos secos lagos artificiais
dos cadernos culturais
dos jornais
pesca-se muito
pouco

pois o pescador
vive distante
do praticante
da pesca esportiva

o pescador de largo fôlego
que é o pescador de mar aberto
não apenas deixa
todo santo dia
a segurança à beira
da praia
(e com ela muitas vezes
uma criança à beira
do medo)
quando arrasta seu barco sobre a areia
— seja para embarcar
em algum barco maior
que ao largo se fundeia
seja para afundar
com seus poucos camaradas
na imensa distância azul —
como também tem o mar
nas águas turvas do passado
e nas escuras do futuro
nas tempestades da memória
e na trama do vocabulário
no lenho dos músculos
e no vento das narinas:
todo o enreda
a vida para a pesca
(além da pesca pela vida)
pescar é preciso
viver não

não se compara
ao esportista que compra suas varas
no deserto da cidade
(o pescador, se não tece mais
a própria rede
ainda a remenda
em pleno mar)
e depois embarca
sobre as estivas de um carro
em demanda
não do que do mar se emana
mal nasce a manhã
durante toda semana
mas já em seu fim
do próprio mar longínquo

 

LIRA DE TODOS OS ANOS
(BACONIANA)




a tarefa de quem vive
em um mundo muito antigo
e tem por dever de ofício
saber dos predecessores
ao se fazer sucessor
é um trabalho mais hercúleo
a cada geração nova
que além da arte do ofício
já sabida dos antigos
tem de saber do futuro
ignoto aos antepassados:
o acúmulo de passados
das obras e dos saberes
que cada geração nova
ao deles sempre incorpora

como se insuficiente
também ter de ter presente
o que é próprio do presente
e o que nele se pressente
do futuro imediato

não há nada mais antigo
do que o mundo mais moderno
se ele nunca foi mais velho

a tarefa de quem vive
em um mundo muito antigo
e tem por dever de ofício
saber dos predecessores
ao se fazer sucessor
é o trabalho mais hercúleo

na cultura, nada perde-se
mas muito mais se transforma
o que nasce em novas obras
sem que morra a velha forma

assim a ilíada é lida
hoje como fora ontem
que jamais será vencida
mas ao contrário acrescida
das batalhas que vêm sendo
não vencidas, mas lutadas
para que, ninguém vencendo
ninguém seja derrotado
cabendo a vitória à luta
que faz todo combatente
por lutar, sobrevivente

(ainda que entre as batalhas
a mais dura seja a última)

 

RETORNO AO PÓ



mas se o que restou
foi silêncio
o que ainda dizem estas palavras
repostas sobre a página?

no silêncio não há mais perguntas
(então por que perguntas?)
como no som e na fúria
não houve respostas

mas se não há perguntas
nem houve respostas
o que ainda dizem estas palavras
repostas sobre a página?

dizem que há formas distintas
de indiferença:
e que se é indiferente
sujar ou não o papel de tinta


recolha-se o mundo
à sua indiferença
enquanto eu escolho
como recolher-me à minha

 

NULLA DIES SINE LINEA




um lavador de pratos
lava pratos
todo dia

um médico
medica
a semana toda
e quando precisa
também no fim de semana

um padre
predica todo
santo dia
se não do púlpito
ao menos na sacristia
da própria cabeça

e mesmo entre artistas
um ator
se não está em cena
está ensaiando
e se não está ensaiando
está em cena
e se não está em cena
ou ensaiando
está lamentando
não estar em um ou na outra

por que só poetas
devem trabalhar apenas
quando lhes dá na telha?

pedreiros
trabalham o dia inteiro:
a menos que falte
dinheiro
tijolos, cimento ou telhas

porque os pratos
devem estar lavados
para a próxima refeição
e porque a próxima refeição
é inevitável

porque se a próxima refeição
for desnecessária
será necessário um médico
ou um sacerdote

porque os homens não têm data
para deixar de comer

porque os crentes
mesmo quando bem nutridos
ainda assim sentem-se doentes
e querem quem lhes conforte

e se os descrentes
desconhecem a paz
nem por isso são mais fortes:
por eles o espetáculo
não pára

e porque nenhum homem
enfim
quer viver sem paz
mas também sem casa
aonde voltar depois do circo

já a poesia
é desnecessária:
ou seria
se todos pudessem viver sem paz
mas com pão

poesia é uma falsa paz
feita de palavras

se uma paz
verdadeira como as palavras
inexiste
é ela que lhes faz falta

certo: mas por que não poupar ao mundo
e se não ao mundo, que nada poupa
à delicada polpa do papel
o fardo ou o enfado de tantos poemas
em vez de trabalhar
e retrabalhar
como um sísifo em seu fado
uns poucos, uns mesmos
como quem almeja
a perfeição ou a mais pura beleza?

toda perfeição
é ainda mais falsa que qualquer paz

porque um bom poema
é como um pequeno efestos:
que mancava nos pés
mas com as mãos
era mais ágil que o vento

um bom poema
é algo de brisa
no ar parado
do medo

e uma tal beleza
não há quem a mereça

 

Luis Dolhnikoff?

Copyright © 1999 by Luis Dolhnikoff.

 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes