OS GRANDES CARDUMES DO GÊNERO JORNALISTA-POETA
(E CONGÊNERES) E O PEIXE DE AMANHÃ
ser poeta ou praticar a pesca esportiva de palavras: nos secos lagos artificiais dos cadernos culturais dos jornais pesca-se muito pouco pois o pescador vive distante do praticante da pesca esportiva o pescador de largo fôlego que é o pescador de mar aberto não apenas deixa todo santo dia a segurança à beira da praia (e com ela muitas vezes uma criança à beira do medo) quando arrasta seu barco sobre a areia seja para embarcar em algum barco maior que ao largo se fundeia seja para afundar com seus poucos camaradas na imensa distância azul como também tem o mar nas águas turvas do passado e nas escuras do futuro nas tempestades da memória e na trama do vocabulário no lenho dos músculos e no vento das narinas: todo o enreda a vida para a pesca (além da pesca pela vida) pescar é preciso viver não não se compara ao esportista que compra suas varas no deserto da cidade (o pescador, se não tece mais a própria rede ainda a remenda em pleno mar) e depois embarca sobre as estivas de um carro em demanda não do que do mar se emana mal nasce a manhã durante toda semana mas já em seu fim do próprio mar longínquo
LIRA DE TODOS OS ANOS
(BACONIANA)
a tarefa de quem vive em um mundo muito antigo e tem por dever de ofício saber dos predecessores ao se fazer sucessor é um trabalho mais hercúleo a cada geração nova que além da arte do ofício já sabida dos antigos tem de saber do futuro ignoto aos antepassados: o acúmulo de passados das obras e dos saberes que cada geração nova ao deles sempre incorpora como se insuficiente também ter de ter presente o que é próprio do presente e o que nele se pressente do futuro imediato não há nada mais antigo do que o mundo mais moderno se ele nunca foi mais velho a tarefa de quem vive em um mundo muito antigo e tem por dever de ofício saber dos predecessores ao se fazer sucessor é o trabalho mais hercúleo na cultura, nada perde-se mas muito mais se transforma o que nasce em novas obras sem que morra a velha forma assim a ilíada é lida hoje como fora ontem que jamais será vencida mas ao contrário acrescida das batalhas que vêm sendo não vencidas, mas lutadas para que, ninguém vencendo ninguém seja derrotado cabendo a vitória à luta que faz todo combatente por lutar, sobrevivente (ainda que entre as batalhas a mais dura seja a última)
RETORNO AO PÓ
mas se o que restou foi silêncio o que ainda dizem estas palavras repostas sobre a página? no silêncio não há mais perguntas (então por que perguntas?) como no som e na fúria não houve respostas mas se não há perguntas nem houve respostas o que ainda dizem estas palavras repostas sobre a página? dizem que há formas distintas de indiferença: e que se é indiferente sujar ou não o papel de tinta recolha-se o mundo à sua indiferença enquanto eu escolho como recolher-me à minha
NULLA DIES SINE LINEA
um lavador de pratos lava pratos todo dia um médico medica a semana toda e quando precisa também no fim de semana um padre predica todo santo dia se não do púlpito ao menos na sacristia da própria cabeça e mesmo entre artistas um ator se não está em cena está ensaiando e se não está ensaiando está em cena e se não está em cena ou ensaiando está lamentando não estar em um ou na outra por que só poetas devem trabalhar apenas quando lhes dá na telha? pedreiros trabalham o dia inteiro: a menos que falte dinheiro tijolos, cimento ou telhas porque os pratos devem estar lavados para a próxima refeição e porque a próxima refeição é inevitável porque se a próxima refeição for desnecessária será necessário um médico ou um sacerdote porque os homens não têm data para deixar de comer porque os crentes mesmo quando bem nutridos ainda assim sentem-se doentes e querem quem lhes conforte e se os descrentes desconhecem a paz nem por isso são mais fortes: por eles o espetáculo não pára e porque nenhum homem enfim quer viver sem paz mas também sem casa aonde voltar depois do circo já a poesia é desnecessária: ou seria se todos pudessem viver sem paz mas com pão poesia é uma falsa paz feita de palavras se uma paz verdadeira como as palavras inexiste é ela que lhes faz falta certo: mas por que não poupar ao mundo e se não ao mundo, que nada poupa à delicada polpa do papel o fardo ou o enfado de tantos poemas em vez de trabalhar e retrabalhar como um sísifo em seu fado uns poucos, uns mesmos como quem almeja a perfeição ou a mais pura beleza? toda perfeição é ainda mais falsa que qualquer paz porque um bom poema é como um pequeno efestos: que mancava nos pés mas com as mãos era mais ágil que o vento um bom poema é algo de brisa no ar parado do medo e uma tal beleza não há quem a mereça
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