resenha

NADA QUE O SOL NÃO EXPLIQUE
20 POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS


      Lançada recentemente nos Estados Unidos, a antologia de poesia Nothing the sun could not explain (Sun & Moon Press, Los Angeles, 1997) reúne a mais expressiva poesia jovem do Brasil, servindo de parâmetro para a renovação do debate sobre a produção poética brasileira da atualidade.
       Nothing the sun could not explain é uma das poucas antologias de poesia brasileira já lançadas nos Estados Unidos. Antes dela houve duas outras edições importantes: a organizada por Elizabeth Bishop e Emanuel Brasil, AnAnthology of Twentieth-Century Brazilian Poetry (Middletown, Connecticut, Wesleyan University Press, 1972), que publicou poetas como Oswald e Mário de Andrade, Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Jorge de Lima, João Cabral, entre outros, e Brazilian Poetry: 1950-1980, organizada pelo mesmo Emanuel Brasil e publicada pela mesma editora, que inclui Mário Faustino, Augusto e Haroldo de Campos e Ferreira Gullar, entre outros.
A produção de poetas brasileiros mais jovens, que se impõe hoje como um dos pólos de interesse da cultura brasileira, estava praticamente desconhecida nos Estados Unidos até então. Nothing the sun could not explain, cujo título foi tomado de um poema de Leminski, chega pois em boa hora, reunindo 20 poetas brasileiros contemporâneos, nascidos entre 1944 e 1963. São eles Torquato Neto, Ana Cristina César, Paulo Leminski, Francisco Alvim, Duda Machado, Waly Salomão, Júlio Castañón Guimarães, Lenora de Barros, Horácio Costa, Carlos Ávila, Régis Bonvicino, Nelson Ascher, Age de Carvalho, Angela de Campos, Arnaldo Antunes, Carlito Azevedo, Frederico Barbosa, Ruy Vasconcelos, Cláudia Roquette-Pinto e Josely Vianna Baptista. O lançamento de Nothing the sun... em São Paulo, em maio, numa semana repleta de eventos, debates e leituras de poesia, contou com a presença dos poetas norte-americanos Michael Palmer e Douglas Messerli. DISCORDÂNCIAS A antologia, como costuma ocorrer, foi questionada em seus critérios, e a ausência de alguns poetas foi lamentada. Normal. Qualquer antologia implica, necessariamente um recorte, uma edição, uma “curadoria”, refletida nos poetas selecionados. Ainda não nasceu seleção que agrade a todos. E algumas coisas devem ser lembradas com relação a essa obra: Nothing the sun... não é felizmente mais uma publicação oficial, com a função de representar ampla e burocraticamente a poesia brasileira. Organizada por representantes significativos da produção poética contemporânea tanto no Brasil como nos Estados Unidos, a antologia apresenta, em sua desejável limitação, coerência e discernimento (ao contrário de alguns elefantes brancos, que pretendendo apresentar um painel geral de poesia brasileira, fazem conviver bons poetas com versejadores medíocres em edições ricas em pretensão e parcas em poesia). Tem o mérito, também, de apresentar uma cuidadosa escolha de poemas (o que, por incrível que pareça, nem sempre ocorre em obras do gênero).
Mas há vozes discordantes. O poeta londrinense Rodrigo Garcia Lopes, por exemplo, critica em Nothing the sun... a grande incidência, segundo ele, de descendentes do concretismo. Com essa visão, Rodrigo soma-se aos que insistem em imputar à poesia concreta uma influência excessiva sobre a produção poética brasileira contemporânea. Essa ótica é, no mínimo, questionável: coloca num balaio de gatos poetas com trabalhos diferenciados, que vêm trabalhando com códigos diversos, diversos interesses, tradições diversas – além das já palmilhadas pelos concretos (percurso que, também não se pode esquecer, não lhes conferiria a exclusividade da trilha nem a paternidade de novas dicções). A coisa não suscitaria maior interesse se não fosse característica de um cacoete crítico que não tem sido suficientemente desmascarado, o que no meu entendimento só empobrece o debate sobre a poesia brasileira contemporânea.
No texto de apresentação da antologia, João Almino caminha em sentido diverso, preferindo chamar de “pós-concreta” essa nova geração de poetas brasileiros, acrescentando que isto não significa que os poetas escolhidos ainda se situem nos horizontes do concretismo. João Almino assinala, também, que “de fato, dois entre os melhores poetas do grupo, Régis Bonvicino e Duda Machado, por exemplo, não somente não se consideram filiados ao concretismo como ideologicamente se afastaram dele”. Com segurança, poderíamos somar a Régis e Duda o jovem poeta cearense Ruy Vasconcelos, que em entrevista recente lançou um ataque frontal aos concretos. Além do mais, nada autoriza a identificação dos poetas da antologia como um grupo de descendentes diretos do programa concreto.
RIGOR Resta pensar sobre o que faz com que Rodrigo sustente tal ponto de vista. Talvez ele veja na seleção de poetas que integram a antologia um grupo muito preocupado com um certo rigor no tratamento da linguagem, como preconizava a cartilha concreta. Ou, quem sabe, sua observação se deva a uma suposta falta de descendentes, na antologia, do bloco da chamada “poesia marginal”. Ou à suposta prevalência, na antologia, de dicções não-coloquializantes, ao contrário daquelas com um pé na poesia beat ou na levada típica do rap, ambas de extração popular, e das quais Rodrigo é um admirador (mas nem sempre cultor, como poeta) confesso. São suposições que me vêm à cabeça, já que o poeta, em seus artigos, não se explica. Nada disso, porém, justificaria sua posição. “Rigor” é daquelas palavras que, de tão batidas, perderam a precisão. Domínio de linguagem, por exemplo, um sentido possível para a palavra, é um dos componentes da palavra poética (não-prosaica) desde sempre. Nada que tenha seu início nos anos 50. Consciência de linguagem, nos aspectos formal ou semântico, também não é exclusivamente da tradição concreta. Já havia antes, continua a existir depois. Mais exato seria dizer que o “rigor” concreto se refere a um certo tipo de rigidez na composição, característico do período bélico-estratégico inaugural da guerrilha concreta. Esse tipo específico de “rigor” não é observável na produção dos poetas reunidos na antologia, que apresenta, por outro lado, alguns ícones da poesia marginal, ou alternativa, como Torquato Neto e Ana Cristina César, ou Francisco Alvim, todos eles de um modo ou de outro desengajados de normas programáticas de vanguardas. Podemos detectar, também, uma certa coloquialidade em Duda Machado, Arnaldo Antunes, Júlio Castañón Guimarães, só para mencionar alguns dos poetas presentes na antologia – uma coloquialidade distante daquela do rap, é certo, mas essa é uma outra história. E o que dizer da poesia de Josely Vianna? João Almino observa com muita perspicácia que na poesia de Josely há uma forte intenção paródica em relação à poesia visual, como em alguns poemas que são sonetos clássicos, com fecho de ouro, disseminados numa estrutura visual minimalista. São alguns exemplos que me ocorrem, mas a influência da poesia de Drummond ou de Murilo Mendes, entre outros, parece ecoar na antologia com mais liberdade do que a concreta. Isso para não falar do trânsito de outras tradições poéticas no meio. Entre os jovens poetas brasileiros, se há algo que chama especialmente a atenção é a abertura dessa nova geração a influências variadas – incluindo, naturalmente, o acervo da moderna poesia brasileira. Eu fiquei impressionado com a defesa da tradição surrealista feita por Carlito Azevedo, por exemplo, uma atitude até pouco tempo impensável. Outra coisa interessante é que os jovens poetas são, em sua maioria, competentes tradutores, o que também abre sua poesia ao influxo diversificado de outra línguas e culturas. Veja-se a poesia de Horácio Costa e Nelson Ascher como exemplos. Sem esquecer a forte influência da música e as trocas crescentes com as artes plásticas. Tudo isso injeta sangue novo na poesia brasileira.
O que incomoda, enfim, é o fantasma concreto que parece assombrar a inteligência da poesia brasileira. Melhor seria considerar seu influxo na medida justa e privilegiar, isto sim, o corpo-a-corpo com os próprios poemas. Pouco pode ser tributado à tradição concreta na mais expressiva poesia jovem brasileira, e tenho para mim que, apesar de uma ou outra ausência, os poetas mais significativos estão presentes nesta singular antologia. Só isso já serviria como parâmetro para renovar o debate sobre a produção poética brasileira da atualidade, sua diversidade, seus novos caminhos.
Mas tem mais. Tem crescido na imprensa brasileira uma divisão redutora e viciada entre, de um lado, uma dicção pop, e de outro, uma dicção culta, um parti pris ideológico que deve ser melhor analisado. Tem gente cometendo o desserviço de tentar desautorizar toda uma produção literária de ponta em nome de uma pretensa “inteligibilidade” – tendo como parâmetro do inteligível fôrmas (com circunflexo) narrativas confortáveis. Outros, ainda, defendem o “prazer da leitura”, como parâmetro de qualidade. Não devem estar falando de literatura. Arte, poesia, nada tem a ver com entretenimento. Quem acha o contrário está procurando na prateleira errada. Mas quem espera algo diferente dos adeptos do bom gosto mediano, tipicamente burguês? Bem, mas esta é ainda uma outra história.
Estes me parecem sintomas de uma visão que aponta para o que existe de pior na crítica contemporânea, quando esta se pauta por um antiintelectualismo ou um “resenhismo” repleto de cacoetes impressionistas. Não sou crítico literário, sou um artista, mas se os profissionais do ramo não desempenham, nós aqui da geral começamos com os tomates.
Nothing the sun... é uma antologia importante, que reúne alguns dos melhores poetas brasileiros da atualidade, e que vem diminuir, com uma seleção enxuta e afinada, o estado de desconhecimento em que se encontra nossa produção poética atual.



Francisco Faria

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