ensaio

NÃO MAIS, NADA MAIS, NUNCA MAIS.

Texto apresentado na mesa-redonda “Poesia e tradição moderna”
integrada por Sebastião Uchoa Leite e Roberta Correa dos Santos,
na Universidade Federal Fluminense, a 9 de outubro de 1997.


Experiências do abandono

Último homem, último filósofo, Édipo fala e suspira. Escuta sua própria voz como se viesse do outro, do além, mas recusando a gratuidade da palavra, obriga-se a falar e fala, portanto, a si próprio, como se fosse dois, embora no momento em que lança essa sua derradeira mensagem, como se ainda houvesse tempo de recebê-la, o impossível, o fim acontece e acaba se impondo de modo paradoxal. O fim é impossível mas o impossível é fim. Eis o longo, derradeiro, solitário suspiro do último dos infames, Édipo. “Rapporto di Edipo”, uma ipotese avulsa de Murilo Mendes, declara:

“La vidi (ma non in sogno)
posava le zampe
su di un computer”


Olhando a cabeça desse bicho pós-histórico, Édipo não hesita, “le gettai un sasso triangolare”, repetindo o gesto que retorna em

	“Il gran cinese

Un giorno — forse oggi —
nostro Padre antico
distruggerà il proprio universo
— gesto pianificato di amore e rabbia

Non resterà pietra su pietra
affinché il fuoco elimini tutte le questioni
e le anime ascendente si liberino del sistema

L’uomo è un’ esperienza che iddio ha abbandonato.”


Nesses dois poemas italianos, Murilo Mendes, modernista in extremis, glosa, na verdade, os temas do pensamento 68. Como, aliás, ele mesmo explicita no improviso sobre “Le poète dans la société contemporaine”, em um dos “Rencontres Mondiales de Poésie” (Montréal, 1967): “Après nous avoir annoncé la mort de Dieu, voici maintenant qu’on nous annonce la mort de l’homme. Il n’y a qu’à feuilleter le livre récent (et remarquable) de Michel Foucault Les mots et les choses pour se rendre compte que derrière la mort de l’homme qu’on nous prophétise il y a au fond la mort du Système. Personellement je ne me battrai jamais pour la survivance d’un système où tant de choses me déplaisent et — j’en suis sûr — à vous tous aussi. Je dis cela pour suggérer que le poète, ou mieux la poésie actuelle est engagée à fond dans une terrible lutte: ‘le combat spirituel est aussi brutal que la bataille d’hommes”, a dit Rimbaud. Or la bataille du poète se passe toujours au niveau du langage. Le drame actuel consiste exactement en ce que le langage poétique, le Verbe qui a créé le monde, est menacé de destruction. L’homme, qui doit répéter l’opération grandiose, l’opération initiale qui consiste à séparer la lumière des ténèbres, est peut-être condamné à voir périr cette même lumière.”

Périr la lumière. Ex-périr les Lumières. Seria injusto atribuir o nietzscheanismo de Murilo a Foucault. Ele próprio admitiria seu débito, de longa data, a certas idéias do filósofo de Silvaplana. “Tudo o que não me faz mover torna-me mais forte” ou “no homem acham-se reunidos criatura e criador”. Um dos aforismos de O discípulo de Emaús (1945) traduz essa alternância:

“Deus não é somente fim — é também centro.”

Creio que dessa idéia arranca uma das escrituras pós-poéticas mais interessantes com que me deparei nos últimos tempos. A de Valdo Motta (1959-). Tomemos, por exemplo, um dos poemas de Bundo.
“Ave, pedra dos escândalos,
rejeitada por todos os obreiros.
Rocha viva, eterno
assentamento dos céus.
Minúscula pedra,
maior que as montanhas
e colinas juntas.
Pedra da origem, templo
do Senhor dos tempos.
Pedra encantada, jóia
de perfeito engenho.
Pedra fundamental,
selo da aliança
entre Filho e Pai.”


Todo o poema pode ser lido como uma demanda ou solicitação. A saudação inicial, ave, introduz uma série de vocativos, “pedra dos escândalos”, “rocha viva”, “minúscula pedra”, “pedra da origem”, “pedras encantadas”, “pedra fundamental”, que, entretanto, não introduzem matéria alguma ou, em outras palavras, trazem a mensagem de que não há mais qualquer mensagem. Com efeito, realizando-se em si e em ave (ave, palavra), a linguagem do poema tenta reter o fático da enunciação e o pathos do enunciado, para desvendar o enigma da origem, porém, a duplicidade de sua solução nos insinua algo da ordem da gênese, do gênio, senão do genial, que não se adapta, facilmente, aos desafios da racionalização, inclinando-se, porém, aos arrebatos da força. O genial, diz Adorno, é um nó onde se emaranha tudo aquilo que não se encaixa em padrões corriqueiros, o irrepetido, o livre, porém, necessário. Como tangência subjetiva de uma constelação objetiva, o genial (isto é, a origem, a originalidade) assinala o momento em que uma escritura afasta-se da convenção e exibe, como se fosse usual, algo inusitado. Paradoxal e precária, a experiência da origem não discrimina, em seus atos, norma de desvio e embaralha, ainda, os tempos, implicando numa certa extemporaneidade do presente, ora muito arcaico, ora altamente profético, porém, nunca em sintonia com o empírico. Uma leitura pautada por excessivo factualismo nos levaria a rápidas intertextualizações. A aproximar, por exemplo, o texto de “A canção do Senhor”,

“No meio do caminho, eis a pedra,
rejeitada por todos os obreiros”


ou a seguir as pistas fornecidas pelo próprio autor,

“pedra fundamental ou angular, pedra quinal, pedra de tropeço e de escândalo, esta pedra viva é, ao mesmo tempo, o Pai e o Filho”

já que, argumenta, em hebraico, as palavras filho e pai estão presentes em pedra, com a correspondente localização nos Salmos da Bíblia (118:22), isto sem apontar, didaticamente, a mais óbvia referência a Drummond. Acontece porém que, construído na pendente entre imanência e ultrapassamento dos limites, o poema de Valdo Motta gira completamente se atribuirmos outro valor logo à primeira palavra. Se ave não for mais um vocativo e sim, por exemplo, uma sétima invocação da pedra, cria-se assim uma imagem, à primeira vista, enigmática, fundindo pedra e ave que ora pode ser lida como ave fossilizada, ora como um autêntico instrumento do transporte, um meio do gozo. A teleologia ganha, nesta segunda perspectiva, toda sua corrosão escatológica. Podemos até atribuir um nome a esta ave: Simorgh. Ela está implicada, de fato, com uma fantasmática da escritura e uma fantasmática do corpo.

Ave, Simorgh

Com efeito, em sua primeira narrativa, “A aproximação a Almotassim” (1935), Borges cita pela primeira vez o Simorgh num contexto peculiar, o da iniciação literária, mesclando o alto e o baixo, a inquisição filosófica e o romance policial. Defende-se, para tanto, argumentando que

“se entiende que es honroso que un libro actual derive de uno antiguo; ya que a nadie le gusta (como dijo Johnson) deber nada a sus contemporáneos”.

Didier Anzieu chegou a ver nessa narrativa borgeana a gênese de um valor recorrente nas ficções posteriores, o de que o ser ideal não tem uma existência real e distinta dos outros já que, ele próprio, é um jogo de espelhos. Todo ser é reflexo de um outro in infinitum. É o caso, nessa ficção, do pássaro Simorgh, rei dos pássaros, que deixa cair, na China, uma pluma esplêndida. Os outros pássaros, cansados da anarquia em que viviam, decidem partir à sua procura. Sabem que Simorgh quer dizer trinta pássaros e que sua morada é a montanha que circunda a terra, o monte Kaph:

“Acometen la casi infinita aventura; superan siete valles o mares; el nombre del penúltimo es Vértigo; el último se llama Aniquilación. Muchos peregrinos desertan; otros perecen. Trinta, purificados por los trabajos, pisan la montaña Simurg. Lo contemplan al fin: perciben que ellos son el Simurg y que el Simurg es cada uno de ellos y todos”.

Já nessa versão da História da eternidade (1936) encontramos a referência ao autor de Viagens pelos planaltos do Brasil: o capitão Burton associa o Simorgh com a águia escandinava dos Eddas mas só em O livro dos seres imaginários (1967), Borges acrescentará o depoimento de Flaubert, na Tentação de Santo Antônio, onde o Simorgh tem cabeça humana e cauda de pavão, e ainda o do orientalista Edwar Lane, tradutor das Arabian nights, que associa o Simorgh com a ave Fênix, porque depois de viver 1700 anos, o pássaro aguarda o filho crescer para então construir uma pira e se imolar. Ainda numa terceira ocorrência, em Nove ensaios dantescos (1982), tornará a associar o Simorgh e a águia para reparar que a águia é apenas inverossímil ao passo que o Simorgh, impossível. “Detrás del Águila está el Dios personal de Israel y de Roma; detrás del mágico Simurgh está el panteísmo”.
Como se relaciona o Simorgh de Borges com a ave de Valdo Motta? Carnalmente, em termos de uma teoria dionisíaca da festa. Em entrevista recente a João Silvério Trevisan, é o próprio Motta quem explica o seu percurso hermenêutico, em torno da montanha mágica, a partir de “un sasso triangolare”, como aqueles que Benjamin evoca em “Trabalhos no subsolo”, onde se depara com a igreja mexicana de Anaquisitzli, uma escavação que se poderia interpretar como o trabalho de um inconsciente pós-colonial. Diz Motta:

“Se eu vou para a Índia, encontro lá o monte Meru, onde o mito do nascimento do Buda diz que um elefante branco se perdeu e entrou pelo flanco esquerdo de Maya, que é a mãe do Buda. O elefante está ligado ao chakra muladhara, o chackra básico que está relacionado ao cu. Elefante, Buda, iluminação... Então, eu me liguei: todos os símbolos fundamentais giram em torno do cu. A coisa é universal! Montanha sagrada, terra santa e terra prometida são equivalentes: seja a ilha bem-aventurada, a Jerusalém celestial, o monte Meru ou o Olimpo dos deuses da Grécia. Na Epopéia de Gilgamesh, o mito sumério relata que para buscar o caminho da salvação Gilgamesh precisa atravessar uma montanha chamada Mashu. Na literatura sufista, o escritor Jorge Luis Borges cita a montanha Kaph, onde habita o pássaro Simorgh, a divindade suprema que só trinta pássaros conseguem encontrar. E Simorgh vem a ser exatamente trinta pássaros. Ou seja, esses trinta pássaros encontram a si mesmos. Mas onde? Na montanha Kaph! No contexto árabe, semítico ou judeu, Kaph ou Keph está ligado a “mão” e significa também rocha, montanha. No Novo Testamento, Pedro é chamado de Kephas, rochedo, como se lê: “Pedro, tu és pedra e sobre esta pedra erguerei minha igreja”. Então, esse Pedro é rochedo e ao mesmo tempo mão. Em hebraico existem duas palavras para designar mão: YaD e KePh ou KaPh. Ora YaD e KaPh juntas formam este gesto muito usado nas religiões. (Valdo faz o mudra universal de adoração, com as mãos unidas, palma a palma.) Esse mudra das mãos postas é um código erótico, na verdade. Por quê? YaD, em hebraico, significa também vara, pênis, caralho. E KaPh significa rochedo. O que a Bíblia preconiza como salvação é a união das duas faces de Deus, que correspondem aos lados direito e esquerdo, mas também à frente e ao dorso. Assim, as mãos postas são a vara e o rochedo. Simbolizam a união da frente com o dorso...”

Não há nada de fortuito, portanto, no fato de o segundo texto apenso à História da eternidade, contíguo aliás à nota do Simorgh, seja “Arte de injuriar” (1933), onde se alude precisamente aos procedimentos satíricos usados por Swift para impugnar os métodos experimentais por meio do recurso irrisório de aproveitar a parte nutritiva da matéria fecal, mera variante do procedimento utilizado pelo próprio Borges nesse ensaio de sociologia (ramo, aliás, como diz Murilo, desmembrado da eclesiologia) intitulado “Nossas impossibilidades” (1931). Nesse texto renegado, a coragem, emblema da identidade nacional, é subitamente rebaixada ao nível de uma dialética fecal. Mas, em todo caso, o que cabe aqui destacar é que este percurso do Simorgh como união de opostos no centro ilustra, mais cabalmente, o axioma de Emaús do qual partimos:

“Deus não é somente fim — é também centro”.

Uma tal centralidade corporal aproxima Bundo de certas figurações modernistas, “sociológicas”, da origem brasileira, a teoria do puito macunaímico mas também a da geração a partir da interferência de um espírito maligno, tutelar dos peixes, uauiara, como narra a rapsódia de Mário de Andrade a partir de Couto de Magalhães. Com essas representações e outras, de Anchieta ou von den Steinen, Gilberto Freyre compôs, em Casa grande & senzala (1933), o enigma original da couvade, que não só aponta na direção de uma bissexualidade difusa entre os indígenas (Gabriel Soares), mas também nos propõe uma explicação nominalista, já que, por exemplo, ovo e pai, em Bakaiiri, têm igual derivação. Dessa “jóia de perfeito engenho”, retira o sociólogo, precisamente, um princípio de tolerância, diante do “pecado nefando”, ou de qualquer outro desvio, que se associa a certa nostalgia em relação à mata ou certa afinidade com os animais, o bestialismo, que funcionam como pretextos de regressão a uma cultura recalcada, matriz maior de sua hermenêutica cultural.
Sei que pode soar estranho associar Bundo e Casa grande & senzala mas talvez não surpreenda tanto ver algo de Borges em Gilberto Freyre. Aliás, um destacado sociólogo local detectou em ambos certa familiaridade congenial.

“Como Borges, Gilberto, de outro modo, faz o que quer com as palavras. E também com o pensamento. Pertence ao mundo dos que encantam. (...) Os argentinos podem dispensar Borges para conhecerem-se, para saber das mentiras que pregam sobre si mesmos. Daí que os pontos de vista reacionários do autor e de sua infinita complacência com a reação mais abjeta sejam defeitos dele, como pessoa concreta, a quem há de negar-se a mão (grifo meu) ou a leitura, por inteireza. Com Gilberto Freyre é diferente; a invencionice, a falsidade científica — basta ver o que diz dos índios e comparar com a bibliografia etnográfica — são constitutivas de um mito nacional e, nesta qualidade, menos que dele, são de todos nós. Contém, por certo, seu lado inaceitável; mas até certo ponto é o ‘nosso’ lado inaceitável. E quando não podemos desfazer-nos deste lado, nos apiadamos dele quase comoventemente. Racionalizamos, justificamos, inventamos. Casa grande & senzala tem a estrutura do mito; é a-temporal”

e ao sair do tempo, provocou uma sorte de transficcionalidade liberta que circula, reciprocamente, entre literatura e sociologia, entre presente e passado, entre criador e criatura. Daí que este crítico, aplicando a mesma receita, entrar no mito para sair da literatura e tornar a entrar nela para não estereotipar-se, chegou a aventar uma continuação contemporânea do livro de Gilberto Freyre. A seu ver, portanto,

“falta-nos, e como, uma Grande indústria & favela, menos preso às virtudes (de resto mais difíceis de gabar) do capitão de indústrias e mais sensível aos anseios, ao modo de ser e ao intuir do futuro das camadas populares, capaz de ver na favela não o cadinho da marginália mas o ergástulo dos trabalhadores das periferias sem fim, estepes quentes (grifo meu) das nossas cidades”.

Provavelmente o crítico tenha tomado para si o encargo de escrever Grande indústria & favela, no mito, não na literatura, um livro em que aliás todos nós, como o Simorgh, somos ele e ele, cada um de seus pares. O nome do crítico é Fernando Henrique Cardoso.
Chegados a este ponto da exposição, mais de um há de se perguntar qual a relação não só entre Bundo e Casa grande... mas entre Gilberto Freyre e Murilo Mendes. Maior do que se pensa.
De pedra em pedra, de mão em mão, poderíamos traçar um perímetro, “selo da aliança entre filho e pai”, circunscrevendo a área que sepulta a agenda modernista e, nas duas pontas, alfa e ômega do percurso, nos deparamos com Gilberto Freyre e Murilo Mendes. Em 1936, quando Lanterna Verde deflagra o debate sobre o esgotamento do modernismo, Murilo Mendes discorre sobre o eterno nas letras brasileiras ao passo que Freyre, páginas adiante, articula sociologia e literatura. Mais tarde, numa conferência, o sociólogo dissecará as relações entre modernidade e modernismo, literatura e política, atacando, fundamentalmente, o Pai, Mário de Andrade, ao passo que, simultaneamente, Murilo nos dirá que prefere o conceito aberto e dual de modernidade ao estreito e estiolado de modernismo.
Mais ainda: o conceito ambivalente de modernidade, em que o efêmero e o eterno se entrelaçam, começa a ser elaborado pelo discípulo de Emaús já em 1945, ano da morte de Mário de Andrade, quando anota (fragmento 608) que

“A morte de uma pessoa amada não só nos confronta com o absoluto como nos fornece uma experiência antecipada de nossa própria morte. O choque então recebido provém de que passamos da comunidade com a vida à comunidade com a morte”.

Essa idéia cristalizará precisamente em 1948, na décima meditação de O infinito íntimo:

“A morte de pessoa amada
Determina abstração de espaço e tempo.
Súbito somem os ornamentos vãos:
Para que mesmo valem agora flores,
Senão para significar em forma frágil
A derradeira etapa da contingência?
Fechai-vos, palmas e escabiosas provisórias,
A surda eternidade principia.

A morte de pessoa amada
Situa o homem no centro do infinito íntimo.
Desaparecei, figuras de negro, panejamentos.
Agora começa para o observador
A vida verdadeira e lúcida do morto.
Agora, tempo amordaçado,
Líquida tua ilusória lição.
Agora, tempo sinistro do relógio,
Não mais, nada mais, nunca mais.
O morto agasalhado em nós
Acorda idêntico a si mesmo,
Anula as contradições.
Até o falso encanto da infância finaliza...
Ternura oclusa pelo espaço e tempo,
Ternura crucificada,
Ternura que ressuscita
No silêncio, nossa pátria antes do céu,
Eis a dupla vida em nós do morto amado
Até a reunião final sem véus.”


Longe de proporem um conformismo desiludido, todos estes fragmentos entretanto configuram uma política da amizade que une intelectuais. Ora pelo amor (Murilo e Ismael Nery), ora pelo desafeto (Mário e Gilberto Freyre), ora pela transavaliação dos valores (Murilo e Gilberto Freyre). Diante dessa disseminação, caberia perguntar-se em que medida podemos reunir esse feixe de sinais em torno de um conceito mais ou menos coerente ou estável. Essa linha de fuga parece ser a do esgotamento da experiência ou melhor, a de uma experiência abandonada, un’ esperienza che iddio ha abbandonato.


Abandonos da experiência

Walter Benjamin escreve um de seus primeiros ensaios sobre esse conceito. A experiência é para ele o Evangelho dos filisteus; mais tarde, em “Programa de filosofia futura”, nos dirá que a experiência é “a totalidade unitária e continuada do conhecimento”. Nos escritos posteriores, notadamente, no ensaio sobre Baudelaire, ficará claro que o trabalho em cadeia, a grande indústria, é impermeável à experiência, isto porque, já a partir de “Traumkitsch” (1928), o conceito de Erfahrung, a experiência como sabedoria acumulada nos encontros entre o sujeito e o mundo, pouco tem em comum com a simples vivência ou a imediatez pré-reflexiva da Erlebnis. Apoiado em Para além do princípio do prazer, Benjamin elabora um conceito de experiência que requer choque e distância. Aliás, com a perda da aura na obra de arte moderna, esse hiato que separa o sujeito da arte é, a seu ver, re-ligado graças à política, o que, para alguns de seus críticos, revela tão somente a sobrevivência saudosista da parousia porque, afinal de contas, o conceito de experiência supõe, de algum modo, fenomenológico ou profético, a presença.
Além de pressupor a presença, a noção de experiência está ligada a uma metáfora econômica. Acumula-se experiência. Adquire-se experiência. Ela desenha circuitos. Mesmo William James, em A experiência religiosa, vê-se na obrigação de separar a constituição do fenômeno religioso (sua natureza, origem, história) de sua avaliação e julgamento (sua importância e dignidade), o que apenas configura a experiência não como uma simples modificação mas, na verdade, como uma alteração vantajosa, que o exercício traz a certas faculdades, conotando sempre um progresso em relação a estágios prévios. Assim, para a teoria tradicional do conhecimento, a experiência admite um aspecto externo (a percepção) e outro interno (a consciência), opondo-se, ambos, dessa maneira, à memória e à imaginação. Ao fundir experiência e inconsciente, entretanto, Benjamin dissocia a experiência tanto da consciência quanto da razão instrumental, aproximando, por outra parte, o seu conceito de Erfahrung da memória e da perlaboração. É sob esta perspectiva, aliás, que Davi Arrigucci lê, por exemplo, a poesia de Manuel Bandeira ou Murilo Mendes.
Por outro lado, é bom frisar que, via de regra, a tradição dialética sufoca a autêntica experiência em nome da fenomenologia. O título primitivo da Fenomenologia do espírito foi Ciência da experiência da consciência e, se acatamos a lição de Heidegger, nela Hegel nos propôs uma teologia do absoluto na sexta-feira santa dialético-especulativa em que o absoluto morre em definitivo. Inserida portanto na história da metafísica, essa tradição de pensar a experiência designa, em última análise, uma relação de presença e co-presença que pressupõe a observação, seja de forma consciente (através da skepsis) seja de forma inconsciente (através da evidência). Tendemos hoje, em contrapartida, a desenvolver e desdobrar o conceito de experiência a partir de usos discursivos específicos. O contrário, partir da experiência como fundamento da ação, equivale a atribuir ainda valor fundacional a uma virtude inata ou construída graças a hábitos sociais específicos em detrimento do caráter figural e coletivo de sua enunciação. Como auto-explorações enunciativas que reúnem o máximo de intensidade e, ao mesmo tempo, o máximo de impossibilidade, as experiências pós-iluministas são de signo deliberadamente dúplice, decadentes e incipientes. Colocam-se para além do limite e, ao mesmo tempo, instauram o limiar do infinito. Como forças ativas, conotam certa violência (o choque, a decupagem) que arranca o sujeito de si, porém, como forças reativas, são pensadas como histérese ou reconstrução só-depois, isto é, après-coup. Diferença e diferimento, “panejamentos”.
De tal sorte que a experiência não é mais algo que se produza mas algo que se conduza, que se escreva; a partir de uma compreensão pós-metafísica, ela rearma o dispositivo Ur-histórico, o que causa uma reviravolta nas categorias fenomenológicas usuais. A experiência do abandono não é a rigor pessoal mas política e só advém a essa condição política porque se nutre do só-depois da subjetividade em processo. Contra a plenitude da experiência modernista, a experiência do abandono, luciferina e pós-iluminista, aventa o absoluto do vazio; contra a igreja ortodoxa, entretanto, pratica a seita heterodoxa e anônima. Não se reporta a nenhuma presença nem a qualquer interioridade e, no entanto, simula fechar-se também a todo exterior, sem reservas de foro íntimo mas profundamente exposta. Como o Édipo muriliano, a experiência do abandono pode murmurar: Non resterà pietra su pietra.
Valdo Motta, consciente dessa experiência interior, define sua poesia como

“apocalíptica e escatológica. Apocalíptica no sentido de que eu me proponho revelar segredos do âmbito da religião, da magia, do esoterismo. E escatológica porque tem a ver com o sentido léxico da palavra: retransmito em minha poesia uma noção de fim de ciclo histórico, que pode perfeitamente coincidir com o fim dos tempos preconizados pelo cristianismo e profetas bíblicos. Mas minha poesia é escatológica também porque está ligada à fecalidade. Ela é uma poesia terminal, fala de nossas entranhas, daquele lugar onde todas as coisas têm início e onde, no final das contas, todas as coisas vão parar... O cu. Entendo que o cu é realmente o epicentro de todos os fenômenos. Para ser mais preciso, trata-se do cóccix, que está localizado exatamente no centro do corpo. Deus está no cu porque no cu está o centro do calor do nosso ser. Em hebraico, El alude tanto a Deus — como cordeiro, árvore, majestade — quanto a coluna, poste, pilastra. Compõe-se de álef e lâmed. Alef significa o princípio, e o cóccix é o princípio do nosso corpo: é por ali que a gente nasce e onde todas as coisas começam. E lâmed significa expansão, crescimento, elevação (...). Há referências no Velho Testamento: ‘Olha, Israel, o Senhor teu Deus está no meio de ti’. Verifiquei, em hebraico, que BeQiRBeNU é ‘no meio de nós’ e BeQiRBéKa é ‘no meio de ti’. Decompondo tais palavras encontrei QeRéV, que no dicionário hebraico quer dizer meio, centro, ventre, íntimo, entranha. É a isso que Jesus se refere quando diz que ‘o reino de Deus está no meio de nós’. Não é ‘meio de nós’ no sentido exterior, e sim no sentido interior...”.

O infinito íntimo, como diria Murilo Mendes. O Aleph borgeano, ponto que contém todos os pontos.
Contra a experiência modernista, antropofágica, a experiência do abandono, antropoemética, é, se possível, coprofágica porque

“Deus se confunde com a merda... Primeiro porque a merda pode ser considerada a lama primordial. A merda, na verdade, já é a síntese de tudo aquilo que nós comemos. E aquilo que comemos vem da terra, onde as coisas mortas se decompõem, viram merda, viram lama. E no nosso organismo, esse alimento vira merda de novo, num processo eterno... É Deus que se come, na verdade, quando nós comemos. E quando estamos cagando, cagamos Deus. Aquilo ali é a matéria-prima que vai alimentar outras formas de vida, vegetais, animais, etc. Enfim, a cadeia não se interrompe. Então, Deus se confunde com o escatológico, muitas vezes”

e a humanidade com sua própria animalidade. É nesse ponto indecidível, alfa e ômega da sensação, que natureza e cultura se interpenetram.
A sensação é ambivalente. Avesso do estereótipo (o sensacional) ela interroga tanto o sujeito quanto o objeto, tanto a percepção quanto a consciência. Analisando o sublime oculto em um poema de Manuel Bandeira, “Maçã”, Davi Arrigucci colocou os limites da questão, olhar e fascínio, estipulando que a poesia modernista dá a ver, se oferece ao sujeito mas, simultaneamente e sob o mesmo foco, o olhar desentranha as implicações do objeto com textos e contextos ulteriores, reconstruídos pelo sujeito como parte de um processo de alumbramento. O apoio dessa leitura é Cézanne, que pretendia resgatar, na sensação da maçã, “l’être pommesque de la pomme”. Aqui, no entanto, estamos mais próximos daquilo que Clarice Lispector chamou de supersensações, dança dionisíaca dos valores, e que Deleuze detecta no conceito de sensação de Francis Bacon. Quando o pintor de bidês, privadas e lavabos fala em sensação diz com efeito duas coisas, alternativamente simpáticas e antipáticas, a Cézanne. Negativamente, ele afirma que a forma que se relaciona com uma sensação, a figura, é o avesso da forma que se relaciona com o objeto que supõe representar, a figuração. A sensação, como diria Valéry, é aquilo que, evitando o cansaço de uma história a ser contada, se impõe fatal e diretamente. É força, violência. Positivamente, entretanto, Bacon diz que a sensação é aquilo que passa de um nível a outro, de um domínio a outro. É transferência, espasmo. Da mesma forma, Motta propõe uma sensação modernista (tenta fugir do cansaço) pelo recurso a uma supersensação pós-modernista (que se vale do cansaço).
Assim, sua maçã é mais luciferinamente desentranhada que a de Bandeira: “o cóccix corresponde ao talo de uma fruta. E se você observar uma fruta numa árvore, vai ver que ela começa pelo talo. O cóccix e a coluna vertebral correspondem ao talo do fruto... Eu sinto ali o fogo da vida. Pela meditação e pela percepção poética eu posso amplificar isso, e posso ver ali no cóccix a pedra fundamental de uma obra em construção, que é o nosso corpo”. Cóccix, semente, grão. Vincula-se à cor da vida, o escarlate, à concha marinha mas também ao imundo, o cochino, que habita a pequena corte, o cortiço ou ergástulo da periferia, como diria Fernando Henrique. A palavra sela enfim a aliança entre o alto e o baixo, entre filho e pai.
A heterogênese dessa compreensão poética retoma portanto a agenda modernista para reabri-la. O modernismo diferiu a promessa de felicidade ao preço de nela inscrever a contradição irresolvida de toda transfiguração da realidade em beleza artística. A denúncia de banalidade e diluição, que se imputou ao cochino, não trouxe, entretanto, a felicidade prometida. A supersensação do cóccix tenta, através da experiência do abandono e pelo abandono de toda experiência, uma alternativa política à emancipação: interrogar a ação em sua morte. Experiência: ex perire. Essa opção pelo cansaço e pelo terminal não é desenganada. É tão somente, na acepção de Nietzsche, uma decadência e um começo. Creio ver nessa pupila do zero, maismedula da linguagem da modernidade, a matéria pendente que ainda nos cabe elaborar e que Régis Bonvicino foi encontrar no derradeiro Girondo, aquele que, feito Édipo, último homem, ainda teimou em perpetuar uma dicção, que é a do cansaço.



Raúl Antelo

anterior capa Monturo sobe próxima