Gringa e bem ruiva, Ingrid era uma formiga belicosa. Nascida para as artes da guerra, nunca se viu em toda a Floresta animal mais pronto à ferroada e ao insulto – como se todos fôssemos uns idiotas, uns panacas, uns subversivos. Pronta a cravar na vossa pele a ferrosa agulha de sua mordedura de formiga, Ingrid ferroou-nos sempre – com determinação visigoda e quase imortal.
Aos quintos havíamos de mandá-la, a ela, que erguida a tromba de pronto injetava no vosso braço o formigoso sangue, dizem, retumbante. Quem assim picado, espalham pela floresta, jamais que o mesmo. Só Ingrid, com sua raiva, é que descrê. A vontade dela, alta, era a de passar para a vítima o vício de seu coração ríspido, o que não era bem a raiva de Ingrid, a formiga, senão sua vingança.
Chegada ao porto de Paranaguá a bordo de um navio com bandeira da Groenlândia, singrados bálticos mares, só nos escapa a origem do nome, tão saxônico, tão cheio de síncopes, de gês e erres chocando-se contra dês feito as geleiras dos Alpes, o centenário da comunidade germana, esse jeito dela desastrado e as coxas grossas demais para o tamanho, um negócio assim em Stuttgart como jamais, posto que reina ordem ali e paz e esperança e Ingrid, a formiga, todos sabemos, põe a chama onde more o lago e estilhaços a napalm mal raie sanguínea e mansa a madrugada. Só ela sabe a ira que lhe move o minúsculo intestino e as dobras em carne viva de seu microscópico coração, um pouco acima de onde, pouco feliz, floresce-lhe, vertiginosa, uma úlcera no duodeno. Oh maravilha de Ingrid e seus violinos!
Mas hoje tudo o que Ingrid, a formiga, precisa dizer é que assim não dá, assim não dá mais – onde já se viu uma granada no México explodir Quadalquivir e se nos botões a Terra trama, a guerra treme no vosso televisor, dado que somos as fraternas monstruosas batalhas que entre terráqueos nos consumimos e isto, para Ingrid, uma aristocrata, nascida a falar francês, soa a nojo e fim de espécie, gosto dúbio de vossa lava e lábia o resultado disso tudo aí: velho jarro onde azede a velha água, coisas assim. Bolores. Bruacas. Bueiros. Lenço a chanel colhendo a matéria fria.
Vocacionada à guerra, pobre Ingrid, manquitola e rúbia, não passa da luta de sabre, de papelão laminado, no desenho animado logo mais à noite no Juventus.
Isto até o dia anunciado em que ele apareceu, todo tromba e calma, vagar e paquidérmico, floreando um jeito no ar com seu nariz de S maiúsculo e móvel e todo inquieto ante Ingrid, a ruiva, inteira em postura de ataque, a posição do Tigre copiada ao escrito marcial chinês, enquanto ele e suas orelhas – alegremente.
Bem ele, olhículo e carantonha, boquita rosê, o longo naso, desde sempre aposto à biografia de Ingrid, a ruiva, feito uma mancha, a constrangida humilhação dos desentendimentos sexuais explícitos, rapto de menores, assédios, estupros, essas rudes infames matérias. As piadas das montanhas.
A vingança nos olhos de Ingrid era quase uma brasa acesa, o martírio dos Farroupilhas, ódio cristal de gamba. O cisco em zil de uma microchicotada no ar igual que um curto circuito.
Ela é que – repito – manteve a considerável distância, chamando-o firmemente aos brios, esganiçando que só ela era a suprema verdade terminal de toda aquela história, ante os seus trombos e apetites, fôfos e farfalhantes, todo trôpego, de guasca em riste, e amoroso. Que de passados vos condenam!
Bomba de efeito moral, gês e grás ordens de Ingrid, a maledicente ríspida, mala cara, malábrica, em pé, à frente dele e de suas orelhas de colossal vento, com a imponência de uma palmeira que vos ferroasse a calva e espantando-o, só aos gritos, abaixo, muito abaixo do suportável por qualquer ouvido humano, aos gritos d’ordem, uma graúna de henfil aos guinchos, suportou que ele, imenso, de esquiza palma, lhe soubesse em cima como o trovão ou a cordilheira frente ao mar da Malásia.
Não precisa dizer o que de nada – vapor a poeira em pó, pleonástica, a transmigração de Ingrid, desta para outras quiçá mais áridas, ao liso de seu volume a esmo. Ela que toda a vida o amara – de um desbragado amor com raiva.
Não que Ingrid não fosse uma esperança nem a memória ruiva da primavera no Reno, ela que era, de nariz erguido, a dona do baile e a marafona do santana, ou só uma nota de música, como dizem por aí, feito uma lágrima, um dó, um si-bemol cantado assim entre o vosso cabelo mal o vento da tarde o desmanche pelo puro capricho de arquejar convosco – erótico, submisso, na sozinha tarde dos hotéis.
Não, Ingrid era diferente e punha a ira num cabresto prussiano, isto até o dia em que a História e um livro de Thomas Hümerken aberto para um beco-sem-saída, mostrou a ela, a Ingrid, a ruiva, que viver era mais, bem mais que a aflorada agrura de uma vacante alegria.
E que ela, apenas ela, ferrão erguido contra a paisagem, não suportara de si o próprio enredo, guardando dentro a diferença que um dia a fez ruiva, e gringa, e mágoa, só uma ameaça. Ou estória de domingo num pedaço de jornal.
Wilson Bueno