e os números especulares

 

Machado de Assis, além de genial criador de tipos femininos (Décio Pignatari disse uma vez, sabiamente, que Machado era também exímio manipulador de tipos gráficos), sabia como ninguém nomear seus personagens. O criador de Capitu foi um verdadeiro denominador incomum na literatura brasileira. Havia em Machado sempre a preocupação de dar um caráter funcional aos nomes dos personagens, como já foi observado por vários estudiosos.
Porém, nosso interesse aqui não é por nomes, mas por números. Tentaremos mostrar, resumidamente, como Machado de Assis, com sua consciência construtiva, consegue fazer com que meros números multipliquem as possibilidades significantes de seu texto.
Comecemos citando Décio Pignatari em seu Semiótica e Literatura:

“Agarrei-me à esperança da recusa, se o decreto viesse outra vez datado de 13; trouxe porém, a data de 31”. Paranomásia puramente visual, ideogrâmica, pois não possui correspondente fonético: treze/trinta e um. (Pignatari, 1979, p. 85)

Eis aí, indicada por Décio, a arte machadeana de inverter as expectativas; e invertê-las na materialidade gráfica do papel: 13 — 31, números no espelho.
Outra obra machadeana em que os números encaixam-se isomorficamente à trama é “O Espelho”.
Em “O Espelho”, Jacobina (nome genial escolhido por Machado, por ironizar o caráter nada “revolucionário”, jacobino, do personagem), o narrador-protagonista do conto, é descrito como um homem entre 40 e 50 anos.

Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos... (Assis, 1959, p. 257)

O narrador também nos informa que havia na casa, cenário onde se passa o presente da história, “quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas”, sendo que o “quinto personagem” era Jacobina.
São, portanto, 4 ou 5 personagens, que estão entre 40 e 50 anos. Verifica-se, pois, no espelhamento numérico configurado por Machado, a hesitação e imprecisão (ou / entre) materializadas pela situação dramática do final do conto, quando Jacobina hesita entre ser Joãozinho ou ser o alferes (que, em nossa opinião, seria o ALf(T)ERes, o outro). Joãozinho, ao final do conto, delineado pelas exigências e preferências da sociedade, torna-se a imagem convencionalmente mais bem aceita e valorizada: torna-se o alferes.
Outra semelhança numérica do conto, que indica não mais hesitação ou imprecisão mas sim duplicação, é a relação entre a provável idade de Jacobina, 50 anos, e a idade na qual Joãozinho torna-se alferes, ou seja, 25 anos.

Tinha vinte e cinco anos, era pobre e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. (Assis, 1959, p. 261)

Jacobina teria, portanto, 2 vezes a idade de Joãozinho/Alferes.
Jacobina é o reflexo de Joãozinho, um reflexo emoldurado pelo “aprendizado das aparências” (Bosi). Este aprendizado levou Joãozinho a ser outro (ALf(T)ERes), um duplo de si mesmo, mas um duplo cujos contornos são móveis, emoldurando-se conforme as exigências das situações, um duplo que “vive de aparências”.
A duplicação/espelhamento revela-se novamente através da matemática poética machadeana.

Vimos como os números são fundamentais na construção de “O Espelho”, sem eles o conto perderia muito daquilo que o torna uma obra verdadeiramente genial.
Para finalizar nosso estudo sobre a importância dos números na obra machadeana, nos deteremos no conto não menos famoso, “O Enfermeiro”.
Nesse conto, Procópio, o protagonista-narrador, é convidado a cuidar de um velho enfermo, o coronel Felisberto, o qual acaba sendo morto “acidentalmente” por Procópio. O conto começa com Procópio, já velho e à beira da morte, narrando a um interlocutor não identificado (o leitor?) a sua história sobre os meses infernais que passara ao lado do coronel.
A primeira observação sobre o uso dos números nesta obra é com respeito à utilização dos números 7 e 8.
Comecemos observando a função do número 7.
A primeira aparição do número 7 acontece na seguinte passagem do texto:

A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias. (Assis, 1959, p. 155)

O 7 é aqui um número que acompanha uma situação de tranquilidade e paz para o protagonista, situação esta que é logo interrompida no oitavo dia, quando o protagonista entra, como ele mesmo relata, numa “vida de cão”.
No outro momento do conto em que o número 7 aparece, a desgraça do assassinato do coronel já ocorrera, e Procópio está no Rio, ainda atormentado pelo remorso.

Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro universal. (Assis, 1959, p. 164)

O número 7 surge novamente significando uma situação favorável ao protagonista: a notícia da herança. Passemos, agora, ao 8.
O número 8 surge logo no início do conto, quando Procópio fala ao interlocutor sobre a chegada, em breve, de sua morte.

Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado. (Assis, 1959, p. 153)

Portanto, o número 8 surge como signo de desgraça (no caso, da morte) como pode-se confirmar nos próximos exemplos.
Procópio, depois de ser apresentado ao coronel, passa uma semana de paz com este, porém...

No oitavo dia, entrei na vida de meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte. (Assis, 1959, p. 155)

Eis novamente o 8 como signo da desgraça de Procópio. Contudo, a desgraça maior de nosso herói viria acompanhada de outro 8, além de um número em espelho, o 24. Vejamos:

Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-me de tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio; o prato foi cair na parede, onde se fez em pedaços. (Assis, 1959, p. 158)

Foi nessa noite de 24 de agosto (8º mês do ano) que Procópio, após receber uma moringa contra a “face esquerda”, agarrou o coronel pelo pescoço e estrangulou-o.

(...) a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos e esganei-o. (Assis, 1959, p. 159)

O 8 agourento é, então, acompanhado do 24, que é o reflexo invertido de sua idade: 42 anos.

No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois anos... (Assis, 1959, p. 153)

Novamente, como em “O Espelho”, Machado faz uso do espelhamento dos números para construir sua intrincada trama. Este procedimento estético nos recorda o meio poeano de “escritura às avessas” (como primeiro observou Jakobson), que pode ser conferida na famosa relação RaVeN/NeVeR. Citemos Jakobson:

No verso introdutório desta estrofe final, raven, palavra contígua ao desolado refrão never, surge mais uma vez como uma imagem especular corporificada deste never: /n.v.r./ — /r.v.n./ (Jakobson , 1969, p. 152)

Poe, mestre das palavras no espelho. Mestre dos números no espelho, Machado.

 

Paulo de Toledo

 

Bibliografia:


ASSIS, Machado de. “O espelho”, em Papéis Avulsos. RJ, SP e Porto Alegre, W. M. Jackson Inc. - Editores, 1959.

ASSIS, Machado de. “O enfermeiro”, em Várias Histórias. RJ, SP e Porto Alegre, W. M. Jackson Inc. - Editores, 1959.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo, Editora Cultrix, 1969.

PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura. São Paulo, Cortez & Moraes, 2ª ed., 1979.

(matéria gentilmente enviada pelo autor para Pop Box)


 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes