Marcial
um poeta sem meias palavras

Rodrigo Garcia Lopes

 

Marcus Valerius Martialis nasceu em Bilbao, Espanha, em 1 de março de 40 D.C. Não se sabe muito de sua juventude, a não ser que, por volta do ano de 64 D.C., tomou o rumo de todos os jovens da época que buscavam fama: Roma. Nessa época já fazia poesia, influenciado principalmente por Ovídio, Calímaco e Catulo. A vida inteira dependeu da grana de seus amigos ricos. Apesar de comum na época, o mecenato contribuiu para "sujar" ainda mais a sua imagem nos séculos seguintes. Seu primeiro livro, "Liber de Spectaculis", foi encomendado por Nero possivelmente para festejar a inauguração de uma obra faraônica: o Coliseu, em 80 D.C.
Homossexual, ferino, polêmico, Marcial registra em seus epigramas a vida exagerada e luxuriante dos romanos, com requintes de sadismo e sem meias palavras. Uma de suas máximas era o célebre dito de Horácio: "carpe diem" (curta o dia). Marcial sempre aconselhava seus amigos a não levar a vida muito a sério. Humor, crítica social corrosiva, concisão: esses os elementos básicos de seus epigramas.
Em grego, originalmente, epigrama designava quaisquer poemas escritos num objeto, geralmente em potes, túmulos, presentes, portas, paredes. Seriam ancestrais dos escritos de banheiro (latrinalia) e dos grafites. Eram, na maioria, versos de ocasião, para comemorar algum evento, achincalhar ou bajular alguém (geralmente o dono da festa). O auge dessa forma poética, que ia contra a corrente do poema épico, ocorreu durante a época de Catulo, Ovídio, Arquíloco e Calímaco, os mestres do gênero (antes de Marcial, é claro). O uso de obscenidade e "cenas de sexo explícito" virou peça-chave da tradição epigramática.
Foi Marcial quem elevou o epigrama à perfeição, definindo seu modelo e clima: um poema curto, geralmente de dois versos (mas não é regra geral, Marcial tem epigramas de até 14 versos) que funciona um pouco à maneira do haikai, porém com o elemento moral mais acentuado: no primeiro, nossa atenção é dirigida para algum objeto, pessoa ou evento, aumentando nossa curiosidade. No segundo, o comentário nem sempre sutil, o golpe mortal, a mudança rápida de pensamento, causando riso ou indignação.
Principalmente indignação. Nos seus despretensiosos mas tecnicamente brilhantes epigramas, Marcial colhe em flashes todo o exotismo da vida romana, pública e privada, retratando e satirizando seus valores, comportamento sexual, moral, a vida política, discussões estéticas e tipos sociais. Era, pois, um dublê de poeta e colunista social, fotografando em palavras a decadência (mas com elegância) da sociedade romana.
Apesar de ser conhecido mais por sua permissividade e obscenidade (por sua posição "politicamente incorreta", diríamos hoje) pode-se dizer que Marcial era conservador e, muitas vezes, preconceituoso e contraditório. Atacava as mulheres emancipadas com uma agressividade que, muitas vezes, parece inveja das liberdades e poderes que algumas estavam começando a exercer na sociedade da época. Também condenava o sexo oral, o adultério e práticas como o cunilingus, a prostituição e o homossexualismo. Apesar da franqueza e objetividade com que retrata esses assuntos em seus epigramas mais apimentados, o próprio Marcial confessa ter vários jovens escravos para sua satisfação sexual.
Por sua poesia ferina, o "Boca de Roma" exerceu enorme influência sobre os poetas dos séculos seguintes. Principalmente no século 18, na Inglaterra, onde o epigrama virou um modelo para retratar certos tipos sociais e convenções: Ben Jonson, John Donne, Robert Herrick, entre outros, foram grandes imitadores de Marcial. William Blake, Jules Laforgue, e.e. cummings, Eliot, Oscar Wilde, Auden e Pound também o praticaram. No Brasil, o grande discípulo de mestre Marcial foi, sem dúvida, Gregório de Matos, o "Boca do Inferno".
A tradução que apresentamos aqui foi feita diretamente do latim, com apoio em traduções literais inglesas e francesas. Tentamos seguir regras básicas: seguir a seqüência de imagens e respeitar o ritmo e a concisão do original. Enfim, não trair demais, nem traduzir de menos. O meio-termo, como diz Marcial, ainda é o melhor.

 

18 Epigramas
de Marcial

Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

 

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Lesbia se iurat nunquam fututam.
verum est. cum futuit vult, numerare solet.

Lésbia jura: trepar de graça, nem pensar.
Verdade pura: é ela que tem sempre que pagar.

 

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Illa salax nimium nec pausis nota puellis
stare Lino desit mentula. lingua, cave.

O caralho de Linus — manjado por todas as minas —
não levanta mais. Te cuida, língua.

 

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Ignotos mihi cum voces trecentos
quare non veniam vocatus ad te
mirares quererisque litigasque.
Solus ceno, Fabulle, non libeter.

Você chama trocentas figuras
pra jantar na sua casa
e fica puto se eu furo.
Ficar na minha, Fabule, é mais seguro.

 

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Nullus in urbe fuit tota qui tangere vellet
uxorem gratis, Caeciliane, tuam,
dum licuit: sed positis custodibus ingens
turba fututorum est: ingeniosus homo est.

Tempos atrás, Ceciliano, ninguém queria
(nem de graça) comer sua mulher.
Agora, com os seguranças sempre por perto,
a turma toda quer: garoto esperto.

 

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Una nocte quater possum: sed quattuor annis
Si possum, peream, te Telesilla semel.

Quatro bimbadas numa noite, dou tranqüilo, pode crer;
Mas nem uma em quatro anos, Telesilla, com você.

 

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Nuper erat medicus, nunc est vispillo Diaulus:
quod vispillo facit, fecerat et medicus.

Diaulus era doutor, agora, agente funerário:
o que fazia antes, agora faz pior.

 

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Quem recita meus est, o Fidentine, libellus:
Sed male cum recitas, incipt esses tuus.

Do jeito que você, Fidentino, recita meus
poemas, melhor se fossem seus.

 

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Quale, Flacce, velim quaeris nolimve puella?
nolo nimis facilem difficilemque nimis.
illud quod medium est atque utrumque probamus:
nec udo cruciat nec volo quod satiat.

Qualé, Flaccus, meu tipo de mulher?
uma nem fácil nem muito difícil.
o meio termo pra mim ainda é o melhor:
uma que não me esfole nem me deixe mal.

 

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Bella es, novimus, et puella, verum est,
Et dives, quis enim potest negare?
Sed cum te nimium, Fabulla, laudas,
Nec dives neque bella nec puella es.

Você é linda, sim, Fabulla, é jovem, é rica,
É culta, quem é que vai negar?
Mas quando você começa a se mostrar
Fica mais parecida com uma puta.

 

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"Thaida Quintus amat". Quam Thaida? "Thaida luscam".
Unum oculum Thais non habet, ille duos.

"Quintus ama Thaís". Que Thaís? "Thaís, a cega".
Thaís é cega só de um olho, ele, dos dois.

 

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Tanta tibi est animi probitas arisque, Safroni
Ut mirer fieri te potuisse patrem.

Você, Safroni, além de gay é tão otário
Nem sei como você virou papai.

 

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Nescio tam multis quid escribas, Fauste, puellis
hoc sio, quod script nulla puella tibi.

Não sei por que você, Fausto, escreve para tantas gatas:
Até hoje você não recebeu nenhuma carta.

 

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Sunt bona, sunt quaedam mediocria, sunt mala plura:
Quase legis nic: aliter non fit, Avite, liber.

Uns bons, uns mais ou menos, outros um lixo:
Assim se faz um livro de poemas, bicho.

 

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A latronibus esse te fututam
dicis, Saenia: sed negant latrones.

Você diz, Sênia, que os ladrões te violentaram.
Não foi bem isso o que eles me contaram.

 

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Artis Phidiacae toreum clarum
Pisces aspicis: adde aqua, natabunt.

Esse peixe foi Fídias que esculpiu:
Jogue n'água, e ele, nada.

 

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Nubere Paula cupit nobis, ego ducere Paulum
Nolo: anus est. Vellem, si magis esse anus.

Paula quer casar comigo. "Nem morto", eu digo.
Ela é velha. Até casava, fosse só esse o motivo.

 

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Uxorem, Fabule, qaueris Theminson
noin habet . habet sororem.

Quer saber, Fabule, por que Têminson
não tem mulher? Sabe a irmã dele? Pois é.

 

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Quamvis tan longo possis satur esse libello,
lector, adhuc a me disticha pauca petis.
Sed lupus usuram puerique diaria poscunt.
lector, solve, taces dissimulasque? vale.

Mesmo depois de um livro tão longo
você diz que não gostou mas pede bis
Quer cuspir no prato em que comeu?
Cai fora, leitor, até mais, valeu.

 

Nota: Fídias: célebre escultor grego da época de Marcial, famoso por sua técnica apurada.

 

(matéria gentilmente enviada pelo autor para Pop Box)


Rodrigo Garcia Lopes é autor de "Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-americanas Hoje" (Iluminuras, 1996), "Solarium" (Iluminuras, 1994), "visibilia" (Sette Letras, 1997) e Mestre em Artes pela Arizona State University com tese sobre a obra de William Burroughs.

 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes