Marília Kubota
Marília Kubota
Marília Kubota
Fogo Branco

 

 

 



Solidão. Tu tens o meu nome
Encerrado em teu baú.
Sabes que meu olhar é baço
Como a vidraça espancada pela chuva.
Envolta no lençol branco do silêncio
A chama da vela apaga aos poucos
E a imagem do Outro
Funde-se ao Nada



Kitchen
Acordamos um dentro do outro.
Não diga que apenas o idiota
Cobiça cordões de sapato e castiçais de ferro
Eu também,
E não nasci ontem.
Trouxe cinco pés de vento
Para desmanchar caracóis
De cabelo anjinho
Conheço os caminhos de seu corpo
Mais que as ruas da cidade
Quantos verões assassinados
Sem uma gota d'água
Na garganta seca



Ofélia
O meu eu foi escavado
Em seus olhos noturnos

Turno após turno
Galerias sufocantes

Abrir o quanto antes
O céu sonhado

Na pupila da papoula
Na papada do gigante



Fogo
Um circo inteiro traz o homem-bala
Quando pergunto se tem fogo.
Elefantes dançando polca
Formigas escrevendo aramaico
E a família de equilibristas chineses !
Só fogo não tem.
Vou embora olhando estrelas furtivas
Nos buracos de lona do circo



Ascese
Subi contigo a escada,
Que diziam, levava ao céu.
Subi de mãos dadas.
Fechei os olhos. Chuvas de flores miúdas
Arranhavam o rosto. Chorei de dor.
Abri os olhos ---  percevejos de lata
Agarravam o cabelo e o vestido.
Você ria, ria, ria,
Enlouquecido !
Queria fugir. Seus dedos estrangulavam os meus
Sua boca púrpura despejava encantamentos
Para chegar ao topo mais rápido.
Da escada rolavam mulheres crianças homens
Estúpidos para escalar os degraus
Esmagados pela fúria dos que, como nós, subiam
Sem parar  nem olhar o que ficou atrás.
Você ria, ria, ria,
Do ataque da esquadrilha de máquinas de costura
E de bibliotecas com alfabetos emaranhados.
O céu mais azul suicida lembrava o azul silencioso
Do mar sepultado lá embaixo
Você nem viu quando as raposas rasgaram meus olhos
E de dentro de meu peito tiraram o coração
Ria, ria, ria,
Carregando a boneca de trapo pro alto da escada brilhante



Perfume de Flores Perdido
Certo, seus olhos guardam
uma vela menor dentro de velas que derreteram
enquanto os santos partiram em férias

Certo, o rancor é uma flor 
cultivada em concha como pérola 
Mergulhadores saltam para o abismo
tateando sais que fustigam a sede no mar profundo
Ostras devoram os membros
indecisos

Certo. Deixe seus pés seguirem o perfume
sem perguntar onde



Viagem
Eu viajei e
deixei uma casa com
cortinas e tapetes flutuantes
atrás

eu viajei e vi
as mesmas coisas
as pessoas
as mesmas
gelatinas espessas entre eu e elas
vi espetáculos da natureza
a paisagem sonho
e dedos trêmulos na fotografia

vi bem perto a lava vulcânica
lamber meus pés 
no pico da montanha mais fria o sorvete
aquecendo meu nariz
perdi de bobagem
o clique mágico da eternidade
um cisco no foco da câmera
abriu uma cratera em meu crânio
e caí no deserto

vi homens de quatro
lixando o chão com a língua para os chefes
olhos esmagados fora dentro ovos estrelados
num céu jamais visitado
vi um coração humano
despejado no lixo
entre pacotes de sopa vidros de remédio talões de cheque
um livro queimado e rasgado
cheio de palavras que amei
quando vivia


Silêncio
A igreja é uma nave
Sou um filhote de pássaro
entrando no ventre da mãe

Ninguém vê fico na praça bebendo
Ninguém vê agora a igreja sem missa
A  Virgem miolos amolecidos pela auréola 

A cabeça não pensa mais
Só nuvens

Borboletas saem do ventre da santa
carregam o corpo

Vão embora
Só eu pensando

- Pra onde ?



Desejo
Criptas e criptas
encostas nas fontes
chamas derrubando jardins
reis vendidos em leilão

Diga este mundo se foi

prédios intermináveis
louças reluzentes vitrines
jaulas de agonia
cobiça pela fome

Diga este mundo não há

verde	 branco 	janelas cerradas
naves pousando na praça
corpos estelares
olhos presos

Diga: só este
há



Fogo Branco
Seus olhos despencam das nuvens
e perdem o brilho ao ver o aterro

lá em cima o azul no céu azul 

aqui embaixo a fome busca sangue 
nas montanhas de lata, papel, plástico

o super-homem fura a barreira do som

humanos de menos chupam agulhas usadas
e bebem gotas de xarope com mosca

(você que tem um coração monstro)

lá em cima, olhos azuis de gelo
começam a derreter, turvar, gorar

aqui embaixo alguém canta um hino



Voar mais alto e longe
do espelho que fabrica o mundo
Os teares continuam estalando
A barbárie foge do escândalo

Voar mais alto e fundo 
a superfície dissolvida da psique
sem truque ou recalque, sem luvas e alívios
cada vez mais perto do silêncio

que cai no chão com um estrondo



Não hesite o instante
em que só o eu existe
Percebe o momento
em que a porta abre

Antes que feche
a passagem a pálpebra 
dissolve as nuvens 
que cobrem  tua janela 

e parte





Há tempos
estou olhando
um canto obscuro da mente
Nenhum pedacinho do céu
Apareceu na minha frente
Ou arrastou a asa
Na casa escura
Não sei quanto mais
Vou ficar sob a montanha
De nuvens de pensamentos
Sei que a luz se acende
De repente
E preciso ficar acordada



(cut-up)
Eu suspendo as tantas pernas
que um salto toca o bico
de um jato em pleno vôo
sou um inseto e, desculpe, te amo

Te possuo quando não vês
teus grandes dedos plásticos
envolvem meu cabelo verde escuro
tua mão surge da noite atroz

Ouça me
Sou luz, escuridão,
Meu nome é vida, morte,
Mundo, sem nome,
certa música adivinhada,
nunca escutada,
sal, silêncio, 
amor, nada,
onda.



Quanto mais escuro
mais eu vejo

no espelho do oceano
brilha a lua

branca e iluminada
a laje da sepultura



Exercício Secreto
Para que, para que o céu se move
sem que ninguém perceba. Nossos olhos
não astrônomos têm pálpebras coladas
em paisagens de papel e vidro.

Para que cuidar de jardins
jamais  vistos como os que
as flores vibram e morrem ?

Para que a vida
existe e passa :
e só aqui que se vive,
só aqui. Depois tudo passa. E cessa?



Canção de Hong Kong 
O céu repartido em duas metades desiguais.
Pão para os mortos – há pão para os mortos ?
Sim, há fome no céu. É preciso distrair os famintos com danças
Para que os demônios não queimem as casas da ilha.
Disfarçar o terror sob a máscara da maquiagem
E a cantoria lamuriosa da ópera
Enquanto crianças tristes flutuam nos carros alegóricos,
Nenhum morto estilará de saudade.
(Te amo...sussurro. Te amo. Adeus)



Sem que ninguém perceba o sol
entra vermelho no quarto
trazendo sorrateiro
perfume de hortênsias
o enfermo pede gole d' água
ao abrir os olhos vê
pombas brancas nos chapeuzinhos de enfermeiras



um corpo estranho
se jogou contra mim

enquanto os olhos fugiam
um pra cada lado
a chuva acordava
o peixe que se desembrulhava do jornal
sob braços duros e soporíferos.

o peixe deslizou das poças de chuva
até o rio mais próximo

meus olhos não bastante tortos
para possuir um morto



Casa do Sol
O jardim seco. E a dama bebe
após as sete.

Acorda às onze. Lê jornais. “Falam de mim?”
Telefona a Deus e todo mundo.
“Ninguém liga.”

Confessa ao hóspede,
tem pena de parede
e cachorro de rua
(em sua cama dormem seis).

A criada guarda espingarda e pólvora
(prevenida contra intrusos),
embora a dama saia à meia-noite
pedindo na estrada que a levem.

Alguém disse que seu coração é seco
como o jardim. E a dama bebe
após as sete.



Dias de chuva, dias de só
Ver rodas brilhantes girando no asfalto
– e no alto braceletes de flores brancas, repolhudas, altivas e frágeis,
Despedaçadas pelo vento, pela água e pelo sol. 


 

Marília Kubota?

Copyright © 2000 by Marília Kubota.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes