O leão rebelde da poesia norte-americana

Rodrigo Garcia Lopes

 

Uma das principais figuras do movimento Beat — fenômeno literário e contracultural que agitou o cenário norte-americano nos anos 50 e 60 mas que continua em alta por lá — o poeta, dramaturgo e ensaísta Michael McClure, cuja obra permanece inédita no Brasil, é tido por críticos importantes como o mais respeitável porta-voz de sua geração.
Seja através de peças polêmicas como The Beard, ou em performances e poemas que celebravam a natureza e novas formas de percepção, a liberdade sexual e a expansão da consciência, seja atacando a farsa do "sonho americano" e as convenções da poesia "poeticamente correta" da época, ele foi uma espécie de catalizador e agitador cultural do ambiente da chamada Renascença Cultural de San Francisco, servindo de ponte entre músicos, poetas e pintores. Como disse o ator Dennis Hopper, "sem a presença de McClure, o rugir dos anos 60 teria sido um miado". Recuperando uma tradição libertária da poesia norte-americana, (Whitman, Thoreau), mas atento às experimentações e incorporando a filosofia e a cultura pop em sua poesia, McClure e seus parceiros conseguiram reacender nos jovens da época o interesse pela poesia e pela ação, influenciando comportamentos e preparando o terreno para os turbulentos e loucos anos 60.
Segundo a lenda, McClure serviu de inspiração para seu amigo de noitadas Jim Morrison, que via no poeta mais velho um modelo para a sua interferência como poeta pop-xamânico, tendo McClure apresentado o vocalista do Doors à obra de Blake e Artaud. McClure também excursionou com Bob Dylan, montou uma banda de rock com um "Hell Angels" e deixou sua marca na música pop como o autor de um dos maiores sucessos de Janis Joplin, "Mercedes Benz".
Hoje aos 63 anos, reconhecido como um dos mais importantes poetas norte-americanos, McClure vive com a esposa nas colinas de Oakland, San Francisco, e continua na ativa: lançou recentemente um livro de ensaios, Scratching the Beat Surface e uma antologia de poemas, Selected Poems. Seus melhores livros são Jaguar Skies, Ghost Tantras e Antechamber. Seu último livro é Rebel Lions (Leões Rebeldes). Nos últimos anos, McClure tem feito recitais de poesia e música por todo o país, fruto de sua parceria com Ray Manzarek, ex-tecladista do Doors. Em 1992, os dois lançaram um vídeo e um CD deste trabalho, Love Lions.

Ainda hoje você é visto como um poeta "beat"? Como isso aconteceu?

Michael McClure — Minha estréia como poeta se deu na primeira vez que os beats se reuniram aqui em San Francisco para uma leitura na Six Gallery, em 1955. Allen Ginsberg estava lá, foi quando ele leu Uivo pela primeira vez. Gary Snyder, Phillip Whalen e eu lemos nossos poemas. O poeta Kenneth Rexroth era o mestre de cerimônias. Foi a primeira vez que encontrei Kerouac, mas ele não leu. Pra mim é difícil definir a palavra "beat" porque ela carrega várias noções que são diferentes para cada um. Para alguns, como a mídia, os beats geralmente eram associados com uns caras desarrumados e malucos, de sandália e tocando bongô. Para nós, a palavra estava associada a um interesse comum pela natureza, pela ecologia, pela exploração da mente, por um aprofundamento da experiência, o que é uma tradição antiga, se você lembrar de um Thoreau. Por outro lado, o jazz, o blues e o bebop nos deram a certeza de que a poesia também tinha que se manifestar através da música, da pulsação. Houve um aguçamento da importância da cultura negra. A maioria das letras de música, nessa época, eram muito pobres. Acho que a poesia beat foi importante também por essa vontade de falar de outras coisas, de se manifestar em relação à liberdade individual, ou contra a guerra, contra a pobreza espiritual. Vários músicos, como o próprio Jim Morrison, Bob Dylan e os Beatles, olharam para nossa poesia para dar um sentido e uma profundidade maior às suas letras. Eles perceberam que não tinham que escrever música de chiclete ou de desilusão amorosa, que podiam escrever sobre o que estava realmente acontecendo.

Quais eram suas referências literárias quando você começou a escrever?

McClure — Comecei a escrever influenciado pelo verso livre, pelo imagismo de Williams, por Pound, e.e.cummings. Mas antes eu havia experimentado muito com formas tradicionais como a balada e o soneto. A certa altura, que percebi que tanto o verso livre quanto o tradicional estava restringindo minha liberdade criativa. Eu acreditava que a consciência poética era mais física, fisiológica, atlética. Que ela se movia, dançava. Então percebi que essa consciência era parte do corpo fisiológico e não separada do resto da natureza.

A poesia que você faz já foi várias vezes chamadas de "poesia-ação", com referência à "pintura-ação", de Jackson Pollock. Você também vê esse paralelo?

McClure — Sim, mas eu preferiria chamar de poesia gestual. Seria a manifestação de um mesmo impulso que vejo em Jack Kerouac, Thelonious Monk, Bud Powell, Charlie Parker. Todos estavam envolvidos na construção de uma autobiografia do espírito. Todos eles queriam, através de sua arte, manifestar os níveis mais profundos da imaginação, e isso é uma atitude universal.

Você sempre fala de seus poemas como se eles fossem extensões do seu corpo, mais do que um objeto isolado, com um sentido em si mesmo.

McClure — Tudo o que faço se torna uma extensão minha, e isso também ocorre no expressionismo abstrato na pintura, no jazz, ou mesmo em Artaud. Pra mim, métrica, técnica, tudo isso é algo interior que se manifesta de um modo exterior. Não é algo preconcebido e sim imediato. Sempre gostei de explorar a "fisicalidade" do pensamento, procurando uma certa qualidade atlética física e verbal e um vigor de expressão onde a poesia pudesse ser atingida. Mas essa poesia de que falo não é tão nova assim: é uma poesia da experiência, que investiga a consciência, os sentidos.

No prefácio de seu livro "Céus Jaguar" você diz que a poesia é um princípio muscular. Como é isso?

McClure — Sempre tive esse modo de encarar a poesia. Para mim, a experiência poética não é um processo puramente intelectual e sim um processo que vem do corpo, e onde o intelecto é só uma parte importante. Acho que a poesia ocidental sempre olhou mais para a mente e não tanto para o corpo. Mesmo quando sua estrutura é investigada, quase nunca essa estrutura é vista como uma extensão da fisiologia. Para mim, a poesia é um processo natural, como ocorre com os animais: é natural para um gatinho começar a procurar ratos e estocá-los, ou um filhote de águia começar a exercitar as asas ao lado do ninho, de modo que eventualmente ele aprenda a voar. Assim como era natural para um músico como Monk ou um novelista como Kerouac sentar-se e tocar ou escrever frases, algo totalmente espontâneo e muscular no sentido de que vem do corpo.

Você se opõe a uma poesia intelectual, apenas pensada mas não vivida?

McClure — Não me oponho totalmente ao intelecto. Mesmo porque, não vejo separação entre corpo e mente, e a poesia ocidental sempre se preocupou em olhar mais para a mente. Eu me sinto desconfortável com a tradição modernista européia ou mesmo a norte-americana: acho que quando a arte ou a imaginação estão dirigidos mais ao universo do discurso do que ao universo das percepções, das sensações, do sentimento, isso acaba desenvolvendo um tipo de metafísica que se afasta da experiência humana e se torna um produto, uma parte da grande máquina da educação ou da civilização. Nesses casos, a poesia pode ser um veneno, pois ela é reduzida enquanto experiência, torna-se esterelizada. Ela se torna um veneno, mais do que uma arte que conduz à uma libertação, ou ao cultivo da liberdade da imaginação, do prazer, ao aprofundamento da consciência. A poeta Diane di Prima escreveu uma vez que uma vez que "a única guerra que nos importa é a guerra contra a imaginação".

Como você vê a juventude norte-americana hoje?

McClure — Acho que há muitos jovens tentando fazer o que acham certo, mas em grande parte eles são vulneráveis, sensíveis, estão um pouco perdidos. Acho que lhes falta a capacidade intelectual de promover um programa de ações.

Você acha que a TV tem contribuído para uma espécie de lavagem cerebral?

McClure — Não sou tão radical a ponto de achar que a TV esteja fazendo uma lavagem cerebral. Acho que é até pior. O problema é que eles estão sendo tratados como computadores, e estão se transformando em seres unidimensionais, como diria Marcuse. A mídia está lhe oferecendo o software. Ela lhes dá, literalmente, uma linguagem, que é a linguagem com a qual eles pensam, com a qual eles nomeiam o mundo. Eles estão sendo treinados a obedecer impulsos. As crianças estão sendo expostas à TV cada vez mais cedo, e com isso os jovens estão aprendendo a manipular este software mas estão pensando que aquilo reflete sua vida e sua experiência interior. É um mecanismo mais sutil e funciona bem melhor que lavagem cerebral.

Que conselho você daria aos poetas jovens hoje?

McClure — Bem, a função dos poetas é tomar conta da poesia. Mas isso não é preciso. A poesia sabe tomar conta de si mesma..





		O  MISTÉRIO DA CAÇA


É o mistério da caça o que me intriga,
Que nos lança como lemingues, mas cuidadosamente —
Em busca de uma nuvem quadrada cintilante — cheiro de limão
							verbena
Ou aprender as regras do jogo que a lontra marinha
                                              Pratica nas ondas.
São essas coisas mínimas — e o segredo atrás delas
                                               Que enchem o coração.
O modelo, o espírito, demônio ígneo
                        Que tudo une
            E empurra sua liberdade em nossos sentidos,

Aroma de um arbusto, uma nuvem, a ação dos animais.

— A subida, a exuberância, quando todo mistério se revela.
                     São essas coisas mínimas
         Que, quando trazidas à visão, viram um inferno. 


Nota: lemingues: (zool). pequeno roedor das regiões árticas

Michael McClure
(Tradução: Rodrigo Garcia Lopes)


Entrevista retirada do livro "Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje" (Iluminuras, 1996)

 

(matéria gentilmente enviada pelo autor para Pop Box)


Rodrigo Garcia Lopes é autor de "Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-americanas Hoje" (Iluminuras, 1996), "Solarium" (Iluminuras, 1994), "visibilia" (Sette Letras, 1997) e Mestre em Artes pela Arizona State University com tese sobre a obra de William Burroughs.

 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes