Nenpuku Sato,
um mestre do haicai no Brasil


 

Claudio Daniel

 

Em 1927, um navio japonês atracou no porto de Santos, trazendo a bordo o poeta Nenpuku Sato. Com ele vieram a esposa, Kyo, além dos pais e irmãos. Em sua bagagem, junto às roupas e livros, fotos e recordações, trouxe as palavras de seu mestre, Takahama Kyoshi: “faça um país de poesia / aonde leve esse navio / vento de primavera”. O poeta instalou-se na Colônia Aliança, em Mirandópolis, no interior paulista; ali, trabalhou na lavoura do café, e depois na criação de gado. Fascinado com a beleza da terra brasileira, com suas árvores e pássaros, flores do campo e frutas de estação, criou um novo estilo de haicai, mesclando a forma tradicional criada por Bashô, no século XVII, à paisagem e ao clima dos trópicos: “flor do café / lavando essa roupa / flutua mais branca”. Seus poemas, que falam da família e do trabalho, da natureza e do tempo, têm o sabor de varandas e modinhas de viola, de curau e arroz-doce, sem perder o aroma antigo de espadas e montanhas, de saquê e peixe cru.
Sato descobriu que a cultura brasileira é mestiça, sincrética, sempre desejosa de misturar-se a outros idiomas, a outras carnes e formas. Com olhar fotográfico, capturou imagens do mundo à sua volta com precisão e delicadeza. Assim, por exemplo, nestes poemas: “a lua se insinua / na alvura perfumada / do cafezal florido” e “a cerca já era / nos chifres do touro / coroa de rosas”. Como poucos, soube incorporar flashes do cotidiano de lavradores, operários, comerciantes, sempre de um modo inusitado, descobrindo o que é raro naquilo que é comum.
Em versos de intenso lirismo, vemos a presença do princípio básico da estética japonesa, a “beleza misteriosa”, ou yugen : “pássaros migrando / por toda a minha vida / ceifar tudo o que planto” e “sementes de algodão / agora são de vento / as minhas mãos”. Num poema motivado pela morte do irmão, logo após a chegada ao Brasil, outra jóia: “vela sobre a terra / vida que se esvai / orvalho nessa relva”. Não é difícil ver nesses versos a marca profunda da ética budista. O sentimento de unidade com o mundo, a compaixão por todos os seres e a vida integrada à natureza são alguns dos valores desse caminho, que não é apenas um saber filosófico, mas um modo de vida.
É preciso destacar, também, o trabalho de Nenpuku Sato como professor de haicai, no âmbito da numerosa colônia japonesa. O poeta viajou por diversas cidades do interior de São Paulo e do norte do Paraná, dando cursos, fazendo conferências e orientando cerca de 6.000 alunos. Criou a primeira coluna na imprensa brasileira dedicada ao haicai, no jornal Brasil jiro , e fundou a revista literária Kokage , que durou até 1979. Considerado um dos dez maiores poetas do gênero pela revista japonesa Hototogisu , Nenpuku Sato obteve reconhecimento do próprio imperador Hiroíto, que ofereceu a ele uma medalha — recusada num piscar de olhos. Ele não precisava de láureas e comendas. Era um homem rigoroso, dedicado a uma arte rigorosa.
Por uma estranha ironia, o inventor do haicai no Brasil sempre escreveu em japonês; não chegou a dominar o novo idioma, embora tenha insuflado aos ideogramas o espírito do cravo e da canela. Por esse motivo, talvez, sua obra permaneceu, até há pouco, restrita apenas aos conhecedores e à própria comunidade nipônica. Somente hoje, vinte anos após sua morte, Sato teve seus versos traduzidos e publicados entre nós, graças ao trabalho do paranaense Maurício Arruda Mendonça, que reuniu 42 haicais do mestre na antologia Trilha forrada de folhas , que acaba de sair pela Edições Ciência do Acidente.
O número de poemas, sem dúvida, é pequeno, se considerarmos que o autor escreveu nada menos que dez mil haicais, a maioria inédita, ao longo de cinqüenta anos de atividade criadora. Essa pequena amostragem, no entanto, é bastante rica, e trata-se de obra indispensável para o estudo do haicai em nosso país. A tradução de Maurício, feita a partir dos ideogramas originais, é primorosa, explorando a sonoridade das palavras, o uso de trocadilhos, da fala coloquial e por vezes apresentando recriações com recursos visuais. No final da coletânea, há um acervo de fotos cedidas pela família do poeta, ensaio crítico e nota biográfica.
Este livro é bastante oportuno, também, para fazermos uma reflexão sobre a trajetória do haicai nos trópicos. Hoje, sua presença em nosso fazer poético é um fato consumado — basta pensarmos em autores como Paulo Leminski, Alice Ruiz, Pedro Xisto ou Haroldo de Campos. O haicai trouxe informação nova, mas, a partir dos anos 80, houve uma crescente diluição do gênero, que se converteu em outra forma fixa, como o soneto. Está na hora, talvez, de aprendermos com Nenpuku Sato que o haicai, para sobreviver, deve se transformar, como a larva dentro do casulo. Sem a metamorfose, sem o candomblé antropofágico, será apenas uma peça de museu, e não a força viva, sangüínea, que impulsiona o salto da rã sobre a velha lagoa.

 


 

trilha forrada de folhas
sem saber o leste e oeste
japonês que chega aqui


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rio estrelas aqui : : : do suave ali : : : céu fluem além
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hálito branco palavras curtas gênio difícil
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n év oa en tre
tr on c o s
e nt re v er
o qu e re sta
d e um ent erro
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pairando no ar meus castelos de sonho ao som de gorgeios
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névoa d(ta te ando en tre)e borboletas
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pio de pássaro noturno ou bramido de veado? bêbado de pinga!
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flor do café lavando essa roupa flutua mais branca

 

TRILHA FORRADA DE FOLHAS
Nenpuku Sato, Um mestre do haikai no Brasil

tradução Maurício Arruda Mendonça
Ciência do Acidente, 128 páginas
R$ 18,00

 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes