Uma Compreensão Fraturada de


PIER PAOLO PASOLINI



Por Andréa Santos  * 

š Ragazzi di Vita: O Romance.



A planta do teatro «para o italiano» tem a forma de um ferro-ímã: um amuleto, uma zona franca da vida. Sobre o palco a morte está distante. 1


Há uma definição do crítico italiano Pullini que reúne particularíssimamente a natureza do romance Ragazzi di vita (1955): que não é uma narrativa com sentido próprio — falta um protagonista, um real e verdadeiro enredo, uma estrutura orgânica; contudo, a narrativa possui seqüências substancialmente autônomas. Através de dessas seqüências, Ragazzi di vita oferece uma crua confirmação da vida nos bairros romanos entre o fim da 2ª Guerra Mundial e o início dos anos cinqüenta. Se observado pelos parâmetros das convenções românticas, o romance pode efetivamente se mostrar desprovido de uma “coluna vertebral" (palavras de Pullini); em primeiro lugar, porém, é necessário recordar do fato que a inspiração do livro é um documentário ensaístico que propriamente uma narrativa. Além disso, é lícito pensar que Píer Paolo Pasolini havia conferido ao livro uma estrutura intencionalmente aberta, não apenas porque reflete o realístico ritmo anárquico da vida dos seus heróis — hostilizando desta maneira as convenções românticas, também no plano estrutural, e principalmente no lingüístico.

Os personagens do romance - todos jovens - pertencem exclusivamente ao universo subproletariado urbano romano. E apenas em alguns casos, eles vêm introduzidos com nomes próprios como Amerigo, Marcello, Genésio. Nota-se, ainda, que Pasolini prefere identificá-los com o sobrenome em códigos como acontece no grupo de vagabundos os quais fazem parte os Lenzetta, Piattoletta, Riccetto; quase se salienta a divisão do universo dos "vagabundos" (Ragazzi di vita) do corpo social.

Ligados a uma dimensão de pura fisicidade, eles sempre fazem movimentos inclinados às exigências elementares, absolutamente biológicas: a comida ou ao sexo; não possuem uma consciência, nem mesmo política, eles têm apenas energias vitais. Vivendo o cotidiano “de expediente”, eles incorrem em aventuras contínuas ora cômicas, ora grotescas, ora trágicas. Porém, nem mesmo os acontecimentos trágicos deixam sinais neles: porque compelidos por uma energia exuberante, estes personagens são reabsorvidos pelo ritmo da vida vagabunda deles - desesperada e igualmente alegre.

São personagens essenciais que se expressam exclusivamente na ação (na qual se pode mostrar animalescamente suas agilidades) ou no diálogo bastante pobre, assiduamente reduzido a insulto bradado, que acompanha a correria deles. Com raríssima ocorrência, Pasolini abrilhanta alguns traços interiores, fazendo aflorar algum sentimento que concerne na mais indulgente proteção aos menores e na ternura para os animais como a andorinha do primeiro capítulo ou o cachorrinho de Marcello.

Nenhum dos “vagabundos” conhece uma real evolução, um crescimento interior: eles permanecem unidos por todo o romance a uma puerícia ignorância, a uma existência originalíssima, pré-cultural e, em um certo sentido, muito pré-social. De fato o mundo deles não se comunica com exterior — melhor dizendo com a sociedade e com a história; salientando que a linguagem estritamente girial sublinha esta separação.

Quando um “vagabundo” começa a fazer parte de um “mundo distinto” (como dos adultos ou das pessoas trabalhadoras), ele deixa de interessar ao autor. Nesse aspecto, é representativo o destino que Pasolini reserva a Riccetto: o personagem mais importante do romance. A começar do 5º capítulo, Pier Paolo Pasolini jogá-o do primeiro plano ao segundo, de um certo modo marginaliza-o, banindo-o ao papel de estranho espectador, quase um intruso. Com isso, expressivamente alguns personagens adolescentes morrem antes de entrar na vida adulta, como por exemplo Marcello, Genesio.

Observando a ideologia de Ragazzi di vita, a temática a qual se faz menção é indubitavelmente em relação com a ideologia que subentende o romance, e em particular com a visão mítica e sagaz que Pasolini tem do povo: “seduzido por uma vida proletária /... é religião para mim/ a sua alegria, não aquela milenar/ a sua luta: a sua natureza, não a sua consciência" (Ceneri di Gramsci, 1957).

Paolo Pasolini contrapõe à corrupção da sociedade burguesa com a saúde do povo, que, nas suas mais baixas camadas (o subproletariado) ainda lhe parece incomum aos pseudos-valores e aos cruéis esquemas da vida burguesa. È propriamente uma concordância visceral, sem sentido político-racional, à naturalidade vitalícia e à existência ingênua dos “vagabundos” pasolinianos onde compele ao próprio Pier Paolo Pasolini encerrá-los num tipo de limbo imóvel, onde qualquer desenvolvimento e (ou) qualquer dialética interior está excluída de modo programático, mas ainda que em Ragazzi di vita o mito da condição natural entrelaça-se com aquela da infância, tipicamente pasoliniana.

Se no conjunto o romance Ragazzi di vita pode dar ao leitor a impressão de uma calidoscópica, e até mesmo uma caótica, variedade de situações e ações; observando com mais proximidade os 8 capítulos, que constituem o romance, não é difícil se entrelaçar em uma astuciosa estratégia narrativa, a qual tende impostar a ação sobre um esquema recorrente.

É na realidade sempre uma busca por dinheiro por parte dos meninos — perenemente famintos e sem grana — e um começo de ação; tal procura por dinheiro através de furto atinge o seu objetivo, contudo o resultado é então incansavelmente frustrado por uma súbita perda, o que restabelece as condições de partida. A isto pode seguir uma nova inversão que assegura um inesperado ressarcimento. Este tipo de procedimento não falta em certos nomes ilustres na tradição literária e ainda nos episódios noturnos mais dinâmicos, é continuamente presente na tradição narrativa e romântica.

A representação do cenário no romance tem importância notável e reveste diversas funções: primeiramente aquela de construir um fundo realístico dos acontecimentos. O narrador, então, insiste constantemente nos traços mais esquálidos, degradados da periferia romana, onde domina de forma incontestável o universo cortelho: “avalanches de porcarias, casas inacabadas e já em ruína, grandes aterramentos enlameados, sapatos cheio de sujeiras”. A adjetivação, pobre e incisiva, tem um papel privilegiado em definir este tipo de realidade como nestes exemplos: sapatos pobres e envelhecidos; nelumbos putrefatos, alpendre enfraquecido e cadente, janelas nojentas, trem arrombados, calçadas desfeitas.

Em contrapartida é bastante freqüente no romance a presença de lagrimosas paisagens (estas paisagens intensamente líricas) que abrandam o ritmo narrativo em pausas extensivas. Vê-se por exemplo, a brilhante passagem que reflete a alegria de Riccetto por ter se apoderado do dinheiro dos napolitanos, ou a representação da noite estrelada durante o episódio do encontro com Amerigo. Um verdadeiro fragmento de bravura é a representação, entre a lírica e a ironia, da noite no horto onde acontecerá o roubo dos cavalos. A ambígua natureza de cenário na narrativa pasoliniana faz-se agora referência de adiamento à ambigüidade do narrador.

Uma linguagem empírica é isso que Pier Paolo Pasolini fez em Ragazzi di vita. Em uma intervenção posterior a narrativa, Pasolini teorizava a necessidade de que deixassem o escritor falar as coisas desejadas, de atuar em uma operação de regressiva-mimética: o que significa substancialmente abdicar da própria identidade sócio-cultural e lingüística de autor culto para dá lugar à voz direta do falante (a voz popular). A começar da intensa introdução em Ragazzi di vita ao dialeto, ou melhor, à gíria: é uma escolha lingüística que, no caso de Pasolini pressupõe no plano ideológico uma completa identificação com o povo. A gíria dos bairros (reconstruída com filológica precisão) reina incontestadamente nos diálogos, está moldada em insultos muitas vezes bradados e em palavrões com uma certa insistência que corre o risco de criar uma monotonia.

Por outro lado, na voz do narrador (que além de narrar as histórias, enriquece muitíssimo de observações psicológicas os diálogos pobres), o autor emprega uma corrupção no modo de falar onde se têm vários resultados diferentes, de um máximo para um mínimo de aproximidade-regressiva à mentalidade-linguagem dos “vagabundos”. Geralmente a organização sintática está na linguagem, com empréstimos léxicos do dialeto-girial, como neste exemplo: "A multidão porém crescia cada vez mais, apertava-se contra os portões, faziam barulho infernal, gritavam, diziam aos mortos". Nem sempre esta corrupção convence, revelando a difícil convivência do autor "regredido" e o autor "culto", como por exemplo: “mesmo que eles concordassem, rissem, sentindo todos os seus instintos de filhos de uma puta, em verdade , isto é que os revigoravam no fundo da alma”.

Por fim, nas descrições paisagísticas, Pasolini opta repetidamente por um registro lingüístico elevado, onde o lirismo, a densidade metafórica do léxico, a sintaxe (geralmente hipotética) colocam-se antípodas da mimese giriesca; tem-se por exemplo: "... uma luz violentíssima tinha vindo flutuar límpida nos espaços das estradas, entre prédios e prédios, refletida sob aquele tipo de fogo longínquo e invisível, por trás das cabeças, entre umas ou outras cornijas ou três corujas que voavam lançando algum grito."


š Da Lírica e do Social:


O poeta é um mundo em um homem contido. Plauto em seu crânio obscuro a Roma o ruído. 2


O mundo literário e poético de Pier Pasolini é complexo e também contraditório, repleto de experiências lingüísticas e estilísticas diversas, de tensões, de conjuntos sugestivos e de polêmicas recusas. A partir da década de 40, ele se impõe a uma difícil síntese de lirismo e da poesia civilmente trabalhada, cujo testemunho está na antologia “Le ceneri di Gramsci” (1957) e La religione del mio tempo (1961). Da primeira antologia, ressalta-se a segunda parte do longo poemeto Il pianto della scavatrice onde o poeta recorda seu primeiro impacto com o universo subproletário dos bairros romanos.

Pasolini escreve o texto Marginalidade e Convenção, nos fins dos anos 50, exatamente nos anos de crise do neo-realismo, do retorno do intimismo e do particularismo. Como em Ceneri di Gramsci e em qualquer outro texto contemporâneo, a difícil ação de restituir à poesia a função civil — sem negligenciar a própria vida e a história interior — é feita de impulsos também intensos, desordenados, além das preocupações e das dilacerações profundas, talvez por isso deram-se os seus melhores frutos.

As lembranças da chegada às aldeias romanas, depois da separação do universo vivido em Friuli, em quanto depositário de uma cultura arcaica intacta, fundi-se naturalmente com a representação (acusatória) da desolação e degradação do ambiente suburbano, e com a ascensão do subproletariado ao possível impulso atraente da história. Aquele que, aqui, se junta em prática é um processo de mitificação do subproletariado urbano, processo análogo e oposto aquele da mitificação da sociedade rural arcaica àquela da infância friulana. Unir os dois mundos é porventura a base comum da marginalidade — onde para os “marginalizados” é propriamente a marginalização — em comparação aos grandes movimentos inovadores da história, contra qual Pasolini assume sempre uma posição fortemente crítica e provocante (às vezes de modo confuso, outras vezes de maneira lúcida e crítica, porém provocante).

Mas é perceptível, também a justificação do efeito artístico do poemeto Il pianto della scavatrice, que esta comum marginalidade dos dois mundos se funde com um senso de marginalização pessoal, constituindo um dos laços fundamentais da larga experiência de vida pasoliniana e ainda do seu pensamento reflexivo, onde Pasolini em qualquer medida cultivará ainda quando (depois dos processos e os escândalos) o sucesso lhe sorrir como escritor, homem de cultura e cineasta.

A forma discursiva — de um ponto de vista formal, a ascensão de uma linguagem discursiva e uma estrutura métrica relativamente tradicional marca uma nítida volta com respeito ao lirismo da seleção dos versos friulanos e ao multiforme mimetismo em Usignolo della Chiesa Cattolica (1943-1949, onde o simbolismo, o hermetismo, o maneirismo, o barroco e vários outros modelos culturais se fazem presente no seu influxo). Pasolini respira neste momento uma poesia que funda elementos narrativos, líricos e argumentativos; uma poesia que é expressão da sua própria paixão e da sua própria ideologia (paixão e ideologia é o título de uma antologia de ensaios publicados neste mesmo ano). É muito significativo, no plano crítico, o que se vê em Pasolini é o modelo novecentista do terceto dantesco, o poeta chave da renovação lírica do século.


š Dos Cogitos:

(III. Y el olvido no es Lo olvidado Soy yo, ya muerto en mí memoria). 3


A progressiva asseveração de comportamentos e valores típicos na civilidade consumista da Itália fora observada em origem por Pasolini, na metade dos anos setenta, com uma relevante atenção numa série de intervenções jornalísticas cuja radicalidade de julgamentos suscitou vivazes e assíduas polêmicas em época. Pier Paolo ver na espiral dos consumos fundados sobre carências artificialmente criadas, no “desenvolvimento” mitificado da sociedade contemporânea, um mecanismo que tritura culturas e valores diferenciados no século, fabricando seres humanos análogos e intercambiáveis num processo de confirmação. De modo que suas articulações na imprensa e seus temas despertaram debates polêmicos sendo logicamente em várias perspectivas contestáveis.

Porém, é correto que além de certas volutas paradoxalidades ou do uso de instrumentos em sentido reacionário aos quais por vezes nos damos... textos desse tipo têm seu valor: o de nos fazer refletir sobre as contradições da sociedade na qual vivemos e sobre o alto preço - em termos de valores humanos – que comporta o mitificado "desenvolvimento".


š Da Vida Pasoliniana:

Homem é procurar-se. Achar-se
É dar-se por achado. Homem
É dar um passo à frente,
Acima.
Transpor-se — abismo.
Rio — vadear-se.
Parar
É, relógio, quebrar-se.
Encontrar-se é morrer.
Vida é adiante.  4 


Pier Paolo Pasolini nasceu a 5 de março de 1922, em Bologna. Acompanhou seu pai, que era militar de carreira, nas transferências. Freqüentou a escola e universidade em Bologna, onde estudou com professores renomados, tendo ainda como amigos Francesco Leonetti e Roberto Roversi, ali se graduou em Letras com uma tese sobre a Linguagem do poeta Giovanni Pascoli, em 1945.

Pasolini passava os verões em Casarsa della Delizia, no Friuli, ao norte da Itália: terra natal de sua mãe; lá se refugiou depois de 8 de setembro de 1943, para escapar da chamada do recrutamento.

Em friulano — dialeto falado em Friuli — compôs seus primeiros versos, Poesie a Casarsa (poesias de 1942), depois edita com outros poetas textos friulanos, La meglio Gioventù (poesia de 1958).

Em 1945, ele recebe a notícia que seu irmão Guido morrera em conflito armado entre dois grupos partidários de orientação política diferente. Em 1947, inscreve-se ao partido Comunista Italiano (PCI); e no mesmo ano está se encaminhando a carreira de magistério, contudo vem a ser afastado do cargo. Logo após, segue um episódio confuso de homossexualidade que desembocou na expulsão do PCI e em processo por corrupção de menores. Contudo, este é um dos vários episódios jurídicos — um total de 30 — que deu a Pasolini a consciência da própria diversidade e lhe indicaram o destino — e ainda o papel público, o qual ele se desenhou de marginalizado e rebelde.

Logo após o escândalo de 1949, teve que deixar Casarsa, junto com mãe (a relação com o pai já estava deteriorada), transfere-se para Roma, estabelecendo-se em um bairro popular e vivendo de aulas particulares e do magistério em escola privada. A descoberta do mundo do subproletariado romano inspirou-lhe outros e alguns dos versos contidos em Le ceneri di Gramsci e, ainda, La religione del mio tempo (poesia, 1961) — que seguiam aqueles versos de Usignuolo della Chiesa cattolica (poesia que são de 1943-1949, isto é anteriores a Ceneri) — principalmente a narrativa Ragazzi di vita (narrativa de 1955) e Uma vita violenta (narrativa de 1959) as quais causaram escândalo, mas lhe principiou o sucesso literário. Com os antigos amigos de universidade, Francesco Leonetti e Roberto Roversi, fundou e dirigiu de 1955-59 a revista literária “Officina”, onde se tem entre os colaboradores Franco Fortini e outros tantos importantes críticos e literários militantes.

Iniciava, no entanto, a sua atividade no âmbito do mundo cinematográfico: colaborou com alguns roteiros (também em Le Notti di Cabiria, 1956, de Frederico Fellini), portanto a partir de 1961 dirigiu inúmeros filmes, de Accatone (filme, 1960) a Uccellaci e uccellini (filme, 1965), de Édipo Rei (filme, 1967) a Teorema (roteiro/filme 1968), de Medeia (filme, 1969) a Decameron (filme, 1970). Muitos destes filmes causaram escândalos como as narrativas, e em todo caso custaram a Pier Paolo Pasolini processos e sentenças.

Nos anos setenta, ele publicou um antigo sonho (um romance escrito em 1949), escreveu algumas tragédias, alguns versos (Poesia in forma di rosa, poesia-1964; Trasumanar e organizzar, poesia-1971), desenvolvendo uma intensa atividade de crítico militante em vários jornais e revistas (entre outras dirigia com amigos a revista Nuovi Argomenti), atividade que, depois da antologia Passione e ideologia (crítica literária, 1960), resultou em inúmeros volumes, em parte concluídos na fase póstuma: Empirismo eretico (ensaios, 1972), Scritti corsari (ensaios políticos, 1975) a Descrizioni di descrizioni (crítica literária, 1979).

Sem sombra de dúvida a narrativa italiana mais realista do pós-guerra é a Pasoliniana: pois mescla o realismo com a fantasia pessoal, dando-se como neo-realismo. Mas, em 2 de novembro, 1975, Píer Paolo Pasolini é encontrado morto pela polícia de Ostia. O jovem Giuseppe Pelosi assumiu a responsabilidade pelo crime bárbaro.

 

Copyright © Andréa Santos.

(matéria gentilmente enviada pela autora para Pop Box)

 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes