Poesia anos 80-90
seleção: Claudio Daniel & Elson Fróes
Câmera Indiscreta
olho o olho que me olha
olho o olho
olho a lua
o olho que me olha olha mas não vê
olho o olho que me olha
olho a rua a lua a rua a rua a rua
eu atravesso a rua
o olho que me olha olha mas não sabe o quê
olho o olho no espelho
olho de loba
o olho que me olha olha mas não lê
vou olhando olho a olho corpo a corpo
olho ilhas
olho dentro de você
Lista de Sobras
bruma densa
névoa de cigarro
névoa-névoa
passos sem nenhuma pressa
palavras ásperas
lágrimas no lixo
de quase nada recomeço
patas leves de gato
vozes de ninguéns
talvez alôs do além
um algo ainda gente
pessoas fossem bichos
Londrix 79
velha lamparina
vela a chuva na janela à toa
entrelábios flora rara trança loura
belamiga rindo rindo rindo rindo me desfolha
lingerie despida breve brisa sei minha face crispa
e doura
Patas de Pantera |
A 14ª Carta
When I woke up this morning I got myself a beer
The future’s uncertain and the end is always near
hoje era pra ser
um dia daqueles
dias de apagar estrelas
pagar as contas
anotar despesas na caderneta
botar de molho a camiseta
hoje era pra ser
um dia de lascar
mas logo de manhã cedo
abri a torneira do gás
e fui dormir em paz
(Do livro LSD Nô, Iluminuras, São Paulo, 1994)
A UMA PASSANTE PÓS-BAUDELAIRIANA
2ª versão (1995)
1.
sobre
esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado sua escrita
luminosa
— sem esquecer entanto
a boca: um
ícone em rubro
tornando mais fogo
suor e susto,
tornando mais ácida e
insana a sede
(sede de dilúvio)
2.
talvez um
poeta afogado num
danúbio imaginário dissesse
que seus olhos são duas
machadinhas de jade escavando o
constelário noturno:
a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas
— mas eu que venero (mais que o ouro-verde
raríssimo) o marfim em
alta-alvura de teu andar em
desmesura sobre uma passarela de
relâmpagos súbitos, sei que
tua pele pálida de papel
pede palavras
de luz
3.
algum
mozárabe ou andaluz
decerto te dedicaria um
concerto
para guitarras mouriscas
e cimitarras suicidas
(mas eu te dedico quando passas
no istmo de mim a isto
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios)
(Da antologia Outras Praias, Iluminuras, São Paulo, 1998)
MIRANTE
A pessoa que mais amo
é feita desse mirante,
dessa época do ano,
do perto desse distante.
E o oceano e as pedras
cabem no vinco de horror
que é sua falta em meu rosto,
"Tróia no rosto de Heitor".
15/12/96
(Da revista Inimigo Rumor nº 03, Editora Sette Letras, Rio de Janeiro, 1997)
De Sinal de menos
um imã
— a linguagem —
um vírus
atravessa os cílios
penetra na íris
(cilício sobre a pele
silêncio sobre o planeta)
um não
— a linguagem —
uma nódoa
um sinal
sobre a testa
De Sinal de menos
perdido entre signos
decifro devoro
persigo persigno
redecifro redevoro
entre signos perdido
devoro decifro
sigo poesigno
redevoro redecifro
entreperdido paraíso
voraz cifro
desenho & desígnio
(Do livro Sinal de menos, Tipografia do Fundo de Ouro Preto, Minas Gerais, 1989)
(Da Revista Inimigo Rumor nº 02, Editora Sette Letras, Rio de Janeiro, 1997)
Todos
Pequeno Sermão aos
Peixes a
Um
o
|
(Do livro Yumê)
POEMAS DE AD MIRAGENS
1
De mim a mim
a mínima ânima
se retrai
De mais a mais
o máximo animal
me atrai
De eu em eus
o ego a deus
dis-trai
2
Imagina
a página vaga
vagina
magna mágica
fágica fálica
fica
3
O impossível
pode ser
tentado
Tanta tentação
um atentado
ao poder
4
Já é tarde agora
poemas por hora
quantos séculos
até a aurora?
5
esperança
esperânsia
experança
esperiência
6
esperança:
esp
herança!
7
Bem |
sei |
8
De medir
a perda de tempo
nada fica
isso sim sob ou
sobre medida
9
Desfaço
e disfarço
com retoques
suaves
a maquilagem
do real
10
Não contenho
o querer
assim gero
exagero
o que mais
quero
* * *
luz pura) um tempo (qualquer
sabor) hei de provar (asas
sim) todas as cinzas (o devir
evidente) sopra o vento (quer
o silêncio) sustem o vôo (do que
penso) flamas na língua (o que
sôo) palavras que sou (nomes
por um) labirinto a abrir (todo
um) sentido para a luz (pura
|
As setas traspassam o circulo une num recorte nasce pleno outrem a fera da inferência interfere e entra atmosferas do sublime sublinhadas o fruto assinalado nomes no tronco grafados de amor ao tosco os sinais as senhas os rodapés centopéia de idéias raízes aéreas o grifo em fabuloso espanto o grito de vária cor dissonante do corpo do texto devaneia o tropos heliótropo ao vento o negrito o itálico a caixa alta noite adentro as notas riscos astros cadentes idéias fulminantes pontos de contato com o mistério sem tempo as notações fluídas cores pelo impalpável corpo essencial as somas ausentes do olhar na luz ao olor no ar nascem flores das folhas que o espinho perfure e o espirito perdure |
CLARO ESCURO
Na ausência de luz
encapsular o senso
crepuscular indelével
clarividência jogo
de logos deslocar
a um deslugar asas
Jogo de ausências
crepúsculo de logos
deslugar da memória
onde voe o poema
é o senso de luz
(Inéditos do autor)
Primeiro Movimento
Abrandou-me; cobriu-me co’a anca;
disse dorme; o olho na névoa;
abençoou-me; corpo (s em) trégua;
cum pisco da pálpebra branca;
— Pele pele-manta; imanta
a culpa; monstra-encrenca;
e afronta; pele, pele branca;
o cancro que minha mente enfrenta;
brinco inca; câmara de tintas;
finca pé ante o nono sono;
campo bento em que Onan brinca;
— Palmo calmo de pele; pele-nuca;
naco branco que toda boca trinca;
lacero-te; mas; não; nem; nunca; nunca
Uma Jóia no Ânus
(uma praga rogada a uma gata)
Caso o mundo te visse
com olhos de Medusa,
tornado seu corpo seria
pedra duríssi-
ma.
Sua alma, mineral, e
pequenas turquesas (aqui e
ali) no olho
Precioso.
Mantenha Distância
Disto disto
tudo aqui
nem paradeiro,
nada tem
registro
derradeiro
e justo.
Acudo os
sentidos com
a tosca lasca
do risco,
visto uma
pele desnuda
de Puma,
arisco,
assisto ao
rebolado de
avenidas,
sem susto.
Resisto ainda
aos obeliscos
e cabarés,
me arrisco
ao calado incerto
dos bares,
de braço dado
às ruas
prefiro o
sussurro
— rápido —
das rodas
dos caminhões
em desequilíbrio
com o resmungo
baixo
da Lua
pro mundo
ouvindo vertiginoso
do cimo
dos pontilhões
(Do livro Eletroencéfalodrama, Edições Ciências do Acidente, São Paulo, 1998)
b r i s a r e s d e a b r i r r e p r i s e s , c e r t e z a s d o s i n t u í r e s , p e g a d a s d e m i l p i s a r e s , e e u e m s é p i a e o c r e q u e b r a n d o n o i g a n d r e s e f o l h a s d e f l a n d r e s , f l a g r a n d o o i n t r a d u z í v e l d o s a n t e s s e m o s d u r a n t e s , d o s t o d a v i a s e m v i d a : n e m u m o d r e d e v i n h o n e m u m a p e n a m e d i e v a l m e f a r ã o e s c r e v e r u m p o e m a l e g a l . b r i s a r e s d e a b r i r r e p r i s e s , c e r t e z a s d o s i n t u í r e s , p e g a d a s d e m i l p i s a r e s , e e u e m s é p i a e o c r e q u e b r a n d o n o i g a n d r n a m a d r u g a d a f r i a a p a i s a g e m s e v ê a t r a v é s d a p a i s a g e m , a g e a d a e a l a s c a d e u m j a s p e q u e s e p a r e c e a o j a d e , a s g a z e s d a g e a d a q u e e s f u m a m a p a i s a g e m , e a l a s c a d e u m j a s p e q u e s e p a r e c e a o j a d e e s e r e p e t e j a s p e n a g e a d a p a i s a g e m , n a c a s c a d e u m á s p i d e , n a v a l s a d e u m a v e s p a , n o r a s g o d e u m o u t d o o r , n a a u r a d e u m p o e m a , n a m i n e r a l f u m a ç a d a b o c a d e q u e m f a l a , n o a r e m a r e m a r s q u e c o n d e n s a u m a i m a g e m , g e a d a , j a d e , j a s p e n a p e l e d a p a i s a g e m , q u e o á s p e r o d a e s p e r a a l t e r a e m m i r a g e m : f o r m i g a s t r a ç a m t r i l h a s d e f a r i n h a u m d i a e u f ó r i c a o u t r o s p o r f o r a u m d i a e n g a g é e o u t r o r e t o m b é e a p u r o u m d i a o u t r o r i g o r e o d i a u r z e s e a l c a ç u z e s v e z e s q u e b r u x a o u t r a s q u e m u s a s e u m d i a b l a n c o o s o u t r o s s a l v o s u m d i a d e s f e i t a o u t r o s p e r f e i t a u m o u t r o e m d i a u m d i a u m o u t r o d i a s e m d n e m v o c ê I N F I N I T S para nietzschee n t r e b é t u l a s e n a d a s , n a d a s e m a d r u g a d a s , b e a t s , f a d a s , f u g a s , á r i a s , e n t r e g é l i d a s p é t a l a s d e n e v e , l e v e s c r i s t a i s l i m a n d o n i c h t s d e f u m a ç a , e n t r e p i c o s e a b i s m o s , b é t u l a s e n a d a s , l á , o n d e o a r f a l t a : a l i s u a f a l h a l i m a l h a , p o l i n d o t u d o e u m i s s o : n o c r e p ú s c u l o d o s í d o l o s , d i v i n o s i d o s ( a n d a r i l h o e n t r e v e r d a d e s e m e n t i r a s ) , à p r o c u r a d a f l o r q u e b r o t a , r a r a n a r o c h a , e n t r e n e i n s e p i s t i l o s , a u r o r a , p e d r a l a s c a d a : n a a l t a e n g a d i n a v a l q u í r i a s c a v a l g a m l u a s q u e a i n d a u i v a m p a r a l o u s , e o v i s i o n á r i o , n o l i m i a r , p a r i n d o c e n t a u r o s |
(Do livro Ar, Ed. Iluminuras, São Paulo, 1991)
De Meteoritos
pintura do tigre
tensão na página
campo de imagens
uma ásia se projeta
(recorte a paisagem)
palavras se opõem
à espreita — vento
búfalo crepúsculo
o silêncio de mil olhos
anuncia a presença
sopro de músculos
ramagem de fogo
tigre tigre tigre
na savana do papel
se não é aquele de Blake
um tigre não é qualquer
o que há sempre
é nunca e quase
e quase nunca um
quando onde um
resiste se tanto
um enquanto
De Calendário Lunático
mas acaso
a quem aninha
entre os nus
de modigliani?
do nu sentado assoma
anabrunaplenilúnia
se dá na donna desnuda
com sua carne de sonho
(ai, sereneza de pássara
em ti à beira do sono)
no ombro alçado em asa
pousa a corola do rosto
de anavenúsia noturna
(porém, a rosa oculta)
e desconheço outra dona
do corpo chiaro di luna:
a meus olhos anassombra
enflora os peitos de pomba
miniode
eh lua
puta velha
de qualquer
canção
primeiro segundo
do outono
trila na folha:
a cigarra
guarda seu canto
Música para Rufo Herrera
clave de outra música:
ovos de formiga
no oco do caule do bambu
Encantação
silvos ao rés da relva
: a mudez do pintassilgo
já incapaz também de vôo
Poética
Aprendi com Valéry
um pouco disto que faço:
"Eu mordo o que posso"
(palavra, carne ou osso)
Me acho
me acabo de vez
me disfarço
incontáveis linhas
como que dispersas
impensáveis línguas
como que dos persas
cruzam-se no infinito:
ou tornam-se linguagem
ou deixam o dito
por não dito
(Do livro Festim, Edições Oriki, Belo Horizonte, 1992)
ONDAS NA LUA CHEIA
(poema sob influência)
A lua que tudo assiste
agora incide.
o mar
— sob efeito —
ergue-se
crispado de ondas espumantes
Sua língua de sal
lambe e provoca
as escrituras da areia firme.
Ondas deslizantes
redesenham
onde outras ondas ainda
desredesenharão,
fluindo
no fluxo
da influência.
Sob efeito lunar,
o mar muda
e a lua,
antes toda,
agora, mínima
(
e quem com ela muda?)
* * *
ao astrofísico Marcelo Gleiser
no céu
o que se vê
não mais estão
ex estrelas
revelam-se
em luz
(Da antologia Outras Praias, Iluminuras, São Paulo, 1998)
cerejas
podem
parecer
amargas
se você nada sabe
do solitário sabor
experimente-as
antes
quando
ainda
forem
flores
(Da antologia Outras Praias, Iluminuras, São Paulo, 1998)
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: Elson Fróes |