Salvador
Novo

México, 1904-1974

 

SALVADOR NOVO
DONO MEU:   SONETOS ERÓTICOS

Introdução e tradução de

Glauco Mattoso

 

INTRODUÇÃO

Salvador Novo (Cidade do México, 1904-1974) integra a corrente que, simultânea ao modernismo brasileiro, revitalizou a poesia hispano-americana sob o rótulo de ultraísmo. No México seu círculo ficou conhecido como os "contemporâneos" (em torno da revista homônima): Jaime Torres Bodet, Xavier Villaurrutia, Bernardo Ortiz de Montellano, Gilberto Owen, Jorge Cuesta, José Gorostiza, além do extemporâneo Carlos Pellicer. Dentre eles, Novo instiga pelo diferencial fescenino e homoerótico. Não foi um "outsider" como Porfírio Barba Jacob (que, além da homossexualidade, glorificava o álcool e a maconha); ao contrário, soube cultivar seu prestígio, a ponto de receber um título de cronista oficial da metrópole mexicana. Eu diria que ele incomodou, mas se acomodou. Não tão impunemente, porém. Como o nosso Mário de Andrade, Novo somou à reputação de poeta vanguardista as credenciais de polígrafo: foi tradutor, historiador, teatrólogo, roteirista, jornalista, ensaísta, memorialista. Menos discreto que Mário, porém, ostentou corajosamente sua homossexualidade numa época em que os gays mexicanos ainda corriam o risco de prisão e condenação a trabalhos forçados, mesmo após a revolução, que em nada diferia dos subseqüentes regimes soviético-cubanos ou nazi-fascistas quanto à segregação homófoba. Ao lado de Pellicer e Villaurrutia, Novo desafiou o machismo latino-americano proclamando adesão estética e existencial aos modelos wildeano e gideano, para não falar de exemplos mais próximos na vanguarda espanhola: Lorca e Cernuda. Mas Novo despontou entre seus pares pela atitude "camp", isto é, espirituosamente ferina, típica do anedotário gay. Certa vez, perguntado sobre seus topetes (ele colecionava perucas), respondeu: "¡Tupé es llevarlo!". Por outro lado, sabia aproveitar as mordomias da burocracia cultural, tendo ocupado vários cargos oficiais. Sua independência intelectual e seu pragmatismo angariaram, como ocorre em toda parte, antipatias até dos medalhões mais esclarecidos. O próprio poeta maior do país, Octavio Paz, não escondia o malévolo desdém ao avaliar a importância literária de Novo: "Tuvo mucho talento y mucho veneno, pocas ideas y ninguna moral. Cargado de adjetivos mortíferos y ligero de escrúpulos, atacó a los débiles y aduló a los poderosos; no sirvió a creencia o idea alguna, no escribió con sangre, sino con caca. Sus mejores epigramas son los que, en un momento de cinismo desgarrado y de lucidez, escribió contra sí mismo. Eso lo salva."

Ressalvado o detalhe de que, para mim, "escrever com caca" é elogio, ouso contrapor como trunfos algumas características novoanas que me falam de perto: o compromisso explícito com a fidelidade autobiográfica; a sátira implacável, inclusive para consigo próprio; o hibridismo estilístico entre o erudito e o vulgar, o culto e o chulo; e, sobretudo, a adoção do soneto posteriormente ao iconoclasmo da fase ultraísta. Gesto aliás nada estranho ao nosso refluxo modernista de meados do século: que o digam Jorge de Lima e Vinícius.

A obra poética de Novo compreende, entre outros, os títulos NUEVO AMOR (1933), ESPEJO (1933), DÉCIMAS EN EL MAR, ou SEAMEN RHYMES (1934, com ilustrações de seu amigo García Lorca), POEMAS PROLETARIOS (1934) e as antologias POESÍAS ESCOGIDAS (1938), POESÍA, 1915-1955 (1955), POESÍA (1961) e ANTOLOGÍA PERSONAL: POESÍA, 1915-1974 (1991).

Usualmente, escrevia poemas longos, de formato irregular, sem metro ou rima, ou epigramas compactos. Há, todavia, uma curiosa exceção, objeto desta minha empreitada: vinte e dois sonetos eróticos. Novo sonetou bissextamente, em termos auto-referentes, a partir dos anos 40, porém com rigor. Seu molde segue a tradição ibérica, imortalizado por Camões no decassílabo heróico (esporadicamente sáfico) e na equação rímica ABBA ABBA CDC DCD, a mais exata e bela. Tematicamente foi tão confessional nos sonetos quanto o fora em suas memórias íntimas (que circulavam apenas entre amigos e acabaram aparecendo nos Estados Unidos, antologiadas por Winston Leyland, editor do jornal GAY SUNSHINE, antes mesmo de virem à luz no México sob o bíblico título de LA ESTATUA DE SAL): o poeta escancara sua fixação em soldados e policiais, muitas vezes tratados como michês e gigolôs; lamenta precoce e obsessivamente a decadência física, ainda quarentão; e cultua, em tom epistolar, a saudade do relacionamento interrompido, esperançosamente reatável mas melancolicamente desgastado. Dosando humor e amargura, sentimentalismo e ceticismo, Novo faz de seus sonetos obras-primas de acuidade psicológica e maturidade poética.

Os sonetos saíram, inicialmente, sob o título de DUEÑO MÍO (que os americanos traduzem como MASTER OF MINE), em 1944. Em 1955 sai uma edição ampliada, XVIII SONETOS, aos quais se acrescentou mais um na recente edição (1998) do Consejo Nacional para la Cultura y las Artes (que inclui o texto integral de LA ESTATUA DE SAL e um brilhante estudo de Carlos Monsiváis), a qual me serviu de fonte para a tradução. Outros três sonetos, compostos entre 1959 e 61, me foram passados pelo poeta anarquista Heriberto Yépez, responsável por intenso "contrabando" contracultural entre México, Estados Unidos e países sul-americanos.

Respeitei, quanto possível em termos métricos, rímicos e rítmicos, o espírito (e o espírito) do poeta, sem perder ocasião de imprimir meu sinete de família, vale dizer, camoniana-bocagiana. Por exemplo: meu primeiro pé é regularmente jâmbico, ao passo que Novo enceta o verso muita vez no anapesto, no crético ou no coriambo. Em outro caso, por conseqüência, ao invés de "Extinguirei a luz..." (peão quarto, seguido de jambo), optei por "A luz extinguirei..." (jambo, seguido de peão quarto). Quanto ao turpilóquio, os léxicos do calão castelhano e lusitano praticamente se equivalem e se casam, escusando exemplificação.

Dado o mérito do autor, não arrisco muito se ambicionar para um nome tão sugestivamente messiânico a justa percepção, pelo leitor brasileiro, de sua dimensão humana, que não aquela meramente sexual ou histórico-literária.

São Paulo, dezembro de 2000.


O conteúdo desta página foi lançado em livro pelo Memorial da América Latina (São Paulo) em 2002, sob autorização do Consejo Nacional para la Cultura y las Artes e dos herdeiros do autor, representados pelos advogados Hinojosa Alvarez & Asociados, S. C. (México).


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