[7] DEZ CONSIDERAÇÕES (OU DESCONSIDERAÇÕES)
ACERCA DO SONETO

[7.1] Não considero que o soneto tenha sido formalmente superado. Faço minhas as palavras de Fausto Cunha a propósito do temporão, porém perene LIVRO DE SONETOS (1949) de Jorge de Lima: "A própria questão do soneto como soneto tornar-se-ia, aqui, bizantina. Sempre vi (e mais de uma vez o escrevi) no soneto a maior conquista formal da poesia em todos os tempos, razão pela qual tenho olhado com ceticismo os que lhe agoiram a decadência." Dou-me ao luxo de pilheriar que o soneto vem a ser a maior invenção do Homem, depois da roda, do alfabeto latino, do algarismo arábico e da própria notação musical. Veja-se, a propósito, meu soneto SINFÔNICO [29]. [7.2] Não considero que o soneto esteja diacronicamente ultrapassado. Ainda aproveitando o dizer de Fausto Cunha, "Decaem os sonetistas. O soneto permanece. Não pelo dom infuso, miraculoso, do soneto como entidade poética, e sim pelo soneto construído, legado do gênio e que perdura enquanto perdurarem Camões e Bocage, Antero e Camilo Pessanha, Raul de Leoni e Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa e Bilac, para só aludir a alguns sonetistas de nossa língua, de sobrevivência mais ou menos assegurada. O soneto como soneto não salva a obra de ninguém. Também não a soterra ou diminui. O que vale é a poesia contida." Vejam-se, a propósito, meus sonetos INCONSÚTIL [229], QUANTITATIVO [251] e QUALITATIVO [252]. [7.3] Não considero que o formato petrarquiano comporte melhor esquema de rima que ABBA ABBA CDC DCD, por duas razões: primeiramente, o perfeito equilíbrio numérico entre 4 vezes A e 4 vezes B nos quartetos, e 3 vezes C e 3 vezes D nos tercetos, cada estrofe formando um sanduíche e os quartetos ensanduichados entre si; em segundo lugar, porque a existência de versos rimando de E em diante implicaria maior liberdade de escape e, portanto, menor grau de dificuldade, justamente na chave de ouro, onde a posição previsivelmente rígida da rima funciona como o "Ora," e o "Logo," no silogismo, preparando o raciocínio para o desenlace lógico. Veja-se, a propósito, meu segundo soneto FILOSÓFICO [67]. [7.4] Não considero que o verso livre (ou o de arte menor, ou mesmo o alexandrino) seja mais adequado ao soneto que o decassílabo, pela simples razão de que o deca é irredutível ao hemistíquio, isto é, indivisível à metade, conquanto comporte duas cesuras, que o articulam em três pés. Se no alexandrino a cesura incide no hemistíquio, conclui-se que não passa de dois heróicos quebrados justapostos; se, por outro lado, o soneto for composto em versos de arte menor, conclui-se que o poeta não precisava compô-lo, bastando resolver o poema em redondilhas, como trova ou glosa. Acresce que o deca tem mais tradição na nossa língua (graças a Camões) que em qualquer outra neolatina, trunfo do qual não abro mão, a despeito dos parnasianos. Veja-se, a propósito, meu soneto SÁFICO [99]. [7.5] Não considero que o sáfico configure melhor o deca que o heróico, em que pese a contribuição parnasiana. Adoto o heróico por questão de reverência e praticidade: reverência à matriz camoniana, e praticidade porque o linguajar coloquial coincide mais freqüentemente com a curva melódica do icto heróico, tão naturalmente quanto se canta o Hino Nacional [HN] ou se declamam os Lusíadas [L]. Vejam-se, a propósito, meus sonetos SÁFICO [99], ÉPICO [142] e DEGENERADO [236]. [7.6] Não considero que o heróico exija na sexta uma tonicidade de maior duração ou altura que na décima, na segunda, ou mesmo nas intermediárias. Tomando por parâmetros os camonianos 19 e 29, proponho, para efeito de comodidade gráfica, a troca do macro e da braquia pelos sinais de mais (+) e menos (-), respectivamente, para esquematizar as sílabas de cada verso, bem como o emprego dos parênteses para indicar sílabas fracas e das chaves para indicar as fortes — convenções estas que terão dupla serventia (acentuando e escandindo) — e exemplifico: Sendo o verso -+/---+/---+ (um jambo e dois peões quartos), temos: Sete anos de pastor Jacó servia [Camões, 29:1] (Se){tea}(nos)(de)(pas){tor}(Ja)(có)(ser){vi}(a) Que tão cedo de cá me leve a ver-te, [Camões, 19:13] (Que){tão}(ce)(do)(de){cá}(me)(le)(vea){ver}(te) Onde (Se), (có), (ce) e (le) podem, ao sabor do ritmo declamatório, inverter o sinal e adquirir valor tônico igual ao dos ictos, o que, pela nomenclatura quantitativa, significaria, caso a caso: ++/---+/-+-+ [um espondeu, um peão quarto e um dijambo em 29:1] e -+/+--+/-+-+ [um jambo, um coriambo e um dijambo em 19:13] Razão pela qual, assumidamente, dou por suficiente que a sexta e a décima recaiam sobre a tônica dos respectivos vocábulos, pouco importando a posição (ou justaposição) de outras tônicas ao longo do verso. Se isso faz com que algum heróico possa ser entoado indiferentemente como sáfico, tanto melhor, como nestes exemplos: baixando a língua até o pé mais nojento. [Mattoso, 67:14] (bai){xan}(doa)(lín)(guaa){téo}(pé)(mais)(no){jen}(to) [heroicamente] (bai)(xan)(doa){lín}(guaa)(téo)(pé){mais}(no){jen}(to) [saficamente] Para tão longo amor tão curta a vida. [Camões, 29:14] (Pa)(ra){tão}(lon)(goa){mor}(tão)(cur)(taa){vi}(da) [heroicamente] (Pa)(ra)(tão){lon}(goa)(mor)(tão){cur}(taa){vi}(da) [saficamente] O heróico, sim, é que é fluente e puro! [Mattoso, 99:9] (Ohe){rói}(co)(sim)(é){queé}(flu)(en)(tee){pu}(ro) [heroicamente] (Ohe)(rói)(co){sim}(é)(queé)(flu){en}(tee){pu}(ro) [saficamente] Verás que um filho teu não foge à luta [HN] (Ve){rás}(queum)(fi)(lho){teu}(não)(fo)(geà){lu}(ta) [heroicamente] (Ve)(rás)(queum){fi}(lho)(teu)(não){fo}(geà){lu}(ta) [saficamente] Se admitirmos, em tese, que a tendência matemática do deca é para o pentâmetro jâmbico, ou seja, -+/-+-+/-+-+ (um jambo e dois dijambos) no heróico, ou -+-+/-+-+/-+ (dois dijambos e um jambo) no sáfico, não há regra ou devaneio teórico que obrigue a dar a qualquer das tônicas peso maior que às demais, o que leva o heróico a admitir uma pré-cesura na segunda sílaba, tão forte quanto a cesura propriamente dita, na sexta. Basta ouvir o Hino Nacional para se entender o que isso significa em termos rítmicos. [7.7] Não considero, porém, que a tal primeira cesura deva necessariamente recair na segunda sílaba. A simples presença aleatória de outras tônicas, em quaisquer sílabas antes da sexta, pode deslocar esta elástica cesura prévia. Caso houvesse uma obrigatoriedade de acentuar a segunda, os três pés do deca seriam, em princípio, os já vistos: um jâmbico e dois peões quartos (estes declamáveis como coriambos, dijambos ou epítritos, conforme a posição das subtônicas), na nomenclatura quantitativa. Já que, todavia, o próprio Camões abre exceções — como em: Alma minha gentil, que te partiste [Camões, 19:1] {Al}(ma){mi}(nha)(gen){til}(que)(te)(par){tis}(te) ou em: Em lugar de Raquel lhe deu a Lia. [Camões, 29:8] (Em)(lu){gar}(de)(Ra){quel}(lhe)(deu)(a){Li}(a) — obedeço igual critério, deslocando a cesura prévia, em casos esporádicos, para a terceira sílaba, a quarta, ou mesmo suprimindo qualquer pausa anterior ao icto, caso em que o primeiro pé seria, teoricamente, um hexassílabo (heróico quebrado) "inquebrável". Em termos quantitativos, o tripé seria, então, composto basicamente de dois anapestos e um peão quarto, assim: --+/--+/---+, com as sutis variações cabíveis, tipo camonianas/mattosianas: +-+/--+/---+ [crético, anapesto e peão quarto], em Alma minha gentil, que te partiste [Camões, 19:1] cova adentro. Me chamem de casmurro, [Mattoso, 254:7] +--+/-+/---+ [coriambo, jambo e peão quarto], em Como se a não tivera merecida; [Camões, 29:11] como se fosse um último cartucho. [Mattoso, 87:8] -----+/---+ [heróico quebrado "inquebrável" e peão quarto), em Que, da Ocidental praia Lusitana, [Camões, L, canto primeiro, 1:2] das manifestações do ser humano: [Mattoso, 120:10] E assim por diante. Apenas para efeito de marcação "audível" do compasso, entendo, contrariamente a Said Ali, que o que chamo de hexa "inquebrável" se reduz preferencialmente à fórmula elementar 1 jambo & 2 dijambos, seguindo a tendência pentamétrica do deca — donde a prioridade do jambo sobre o anapesto; donde a prioridade do jambo inicial sobre um dijambo inicial; donde, portanto, a prioridade do heróico sobre o sáfico. No caso, o primeiro icto recairia em (Que){daO} no de Camões e em (das){ma} no meu. [7.8] Não considero que qualquer tratadista de versificação tenha maior autoridade que a do próprio Camões enquanto criador e paradigma, razão pela qual repudio quaisquer restrições a encontros vocálicos ou consonantais, tanto sob o ângulo eufonia/cacofonia quanto sob o ângulo metronômico. Destarte, a exemplo de Camões em "Alma minha", cometo sem o menor pudor em 21 (14): A fé de [=esperança de] ter de volta o que não tinha. Da mesma forma, respaldo-me no Mestre quando, a despeito da aspereza, incluo uma vogalzinha a mais na fusão, ignorando solenemente a crase ou a vírgula de permeio e me pautando unicamente pelo fôlego do ouvido, no impulso duma dicção rockeira (ou rapeira): Se lá no assento etéreo, onde subiste, [Camões, 19:5] (Se){lá}(noa)(ssen)(toe){té}(reoon)(de)(su){bis}(te) O prédio Martinelli era, à européia, [Mattoso, 69:5] (O){pré}(dio)(Mar)(ti){ne}(llie)(ra,àeu)(ro){pé}(ia) Lembrando que o nosso Bilac, contrariando Castilho, também aglutinou quatro vogais sem o menor constrangimento: O gênio sem ventura e o amor sem brilho! [Bilac] (O){gê}(nio)(sem)(ven){tu}(raeoa)(mor)(sem){bri}(lho) [7.9] Não considero, portanto, que, só por repousar sobre sólidos alicerces canônicos, ainda que liberalmente camônicos, esteja o soneto imune a eventual subversão, formal ou temática. Tanto é que, por exemplo, chego a promover certos sons consonantais à categoria de sílabas autônomas e metricamente computáveis, num movimento de anaptixe diametralmente oposto ao de aglutinação vocálica, aludido acima. Sirva de exemplo a palavra "absoluto", popularmente pronunciada "abissoluto", que me convida, alguma vez mas nem sempre, a escandir como neste caso: o belo absoluto em sua escola, [Mattoso, 47:10] (o){be}(loa)(b)(so){lu}(toem)(su)(aes){co}(la) Da mesma forma, o "b" soa e se escande como "bi" em "subserviente" [23] e "obsceno" [260]. O mesmo não ocorre em "observa" [44], bem como em "egípcio" [24] ou "pictórico" [82]. Em outro soneto, "obsceno" perde o valor de tetrassílabo e se adapta à função normal de tri [235]. A silabação depende do peso do vocábulo no verso e de seu impacto no ouvido, a critério do poeta, em detrimento de regras: e o converteu num subserviente [Mattoso, 23:7] (eo)(con)(ver){teu}(num){su}(b)(ser)(vi){en}(te) Ou, numa variante ortodoxa: e o converteu num ser subserviente (eo)(con)(ver){teu}(num){ser}(sub)(ser)(vi){en}(te) e a pausa põe suspense no obsceno. [Mattoso, 260:8] (ea){pau}(sa)(põe)(sus){pen}(se)(noo)(b){sce}(no) Quem for mais perspicaz na certa observa: [Mattoso, 44:11] (Quem){for}(mais)(pers)(pi){caz}(na)(cer)(taob){ser}(va) e "egípcio" seu formato hoje é chamado. [Mattoso, 24:4] (ee){gí}(pcio)(seu)(for){ma}(toho)(jeé)(cha){ma}(do) O prisma mais pictórico da vida [Mattoso, 82:1] (O){pris}(ma)(mais)(pic){tó}(ri)(co)(da){vi}(da) malgrado todo o torpe e todo o obsceno. [Mattoso, 235:11] (mal){gra}(do)(to)(doo){tor}(pee)(to)(dooob){sce}(no) Vejam-se, a propósito, meus sonetos TÉQUINICO [230 e 257], SACA-MASOCA [169], VERSÁTIL [49], LICENCIOSO [101], COMENSAL [238] — e INCONTINENTE [246], onde, aliás, abro uma exceção (prometo/veto), pois, ao contrário de Camões (vê-la/cautela) e Bocage (devoto/garoto), não rimo vogal aberta com fechada, conquanto em Portugal os dois sons se confundam na pronúncia. Ainda a propósito de vogais, se para algum ouvido meticuloso pode parecer estranha uma ditongação (sinérese) decrescente em pleno icto ou na colisão de tônicas, comparem-se os versos de Camões logo abaixo dos meus: baixando a língua até o pé mais nojento. [Mattoso, 67:14] (bai){xan}(doa)(lín)(guaa){téo}(pé)(mais)(no){jen}(to) Da Juliana, má e desleal manha. [L, canto quarto, 49:8] mas eu, usando só o poder da mente, [Mattoso, 17:13] (mas){eu}(u)(san)(do){sóo}(po)(der)(da){men}(te) De Deus guiada só e de santa estrela, [L, canto oitavo, 29:2] até o pescoço, vendo nivelada [Mattoso, 36:3] (a){téo}(pes)(co)(ço){ven}(do)(ni)(ve){la}(da) Até os que só a Deus onipotente [L, canto oitavo, 99:5] Até o patinho feio recupera, [Mattoso, 132:7] (A){téo}(pa)(ti)(nho){fe}(io)(re)(cu){pe}(ra) Até o Cítico Tauro, monte erguido, [L, canto terceiro, 73:2] Está o Santa Efigênia mais pra lá, [Mattoso, 220:3] (Es){táo}(San)(taE)(fi){gê}(nia)(mais)(pra){lá} Está o famoso nome Sarraceno. [L, canto terceiro, 110:6] de bruços, vou no embalo até onde der. [Mattoso, 138:8] (de){bru}(ços)(vou)(noem){ba}(loa)(téon)(de){der} Mas cá onde mais se alarga, ali tereis [L, canto décimo, 140:1] Ressalvado que adoto tal procedimento ocasionalmente, em função do ritmo coloquial, a exemplo do pronome "sua", que ora soa como ditongo, ora como hiato, ad libitum do poeta: Assi lhe era negada a sua pastora, [ditongo, em Camões] Não sabem governar sua cozinha, [hiato, em Gregório] Outra ressalva se aplica ao artigo "uma", que não se enquadra em regra alguma quando precedido de tônica, prestando-se menos ao hiato que ao ditongo, à revelia dos tratadistas, como nestes exemplos: Que perto está uma ilha, cujo assento [L, canto primeiro, 98:3] É uma hora feliz, sempre adiada [Vicente de Carvalho] São casos em que é preferível a dicção brasileira atual (na qual a tonicidade do "u" desaparece na absorção pela vogal precedente) àquela artificial diérese do mesmo "u" que forçaria, logo adiante, o ouvido a estranhar a leitura das sinéreses "umilha" ou "umora" sendo que o natural é ler "uma ilha" e "uma hora" separando-se as vogais "a-i" e "a-o" ao tempo em que se funde a pronúncia em "está'ma ilha" e "É'ma hora" — razão pela qual dou a tais encontros vocálicos tratamento de ditongo decrescente ou de tritongo, conforme o caso: pois no lugar da cona está uma pica. [Mattoso, 313:4] O matemático é uma linha reta. [Mattoso, 92:5] Vejam-se, a propósito, meus dois sonetos TÉQUINICO [230 e 257]. Pelo visto, não haverá visceral subversão na engenharia, propriamente dita, do soneto, ainda que, ao discreto esperneio formal abordado acima, se acrescente um dosado hibridismo léxico (textual/coloquial) e semântico (polido/chulo), coisa que já exercito habitualmente. [7.10] Não considero, enfim, que o soneto careça de manifestos, teses apologéticas ou clichês publicitários, depois de sete séculos de vida útil. Considero estes apontamentos como reflexões circunstanciais, meramente compartilhadas com meus parcos leitores.
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Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes