Como também se pode ver na página dedicada ao soneto natural, nem só de flora vive a imaginação poética, mas da fauna, ainda que para emprestar aos animais atitudes humanas. Nesse sentido, vale pesquisar o interesse dos sonetistas pelos bichos escrotos da vida, nocivos, peçonhentos ou predadores, alguns especialmente repugnantes, como na amostra que apresento a seguir. Claro que, para compensar a aversão que certas espécies nos provocam, há autores que cumprem o protocolo e fazem a maior festa, por exemplo, aos passarinhos. Questão de gosto. [GM] O NINHO [Alberto de Oliveira] O musgo mais sedoso, a úsnea mais leve Trouxe de longe o alegre passarinho, E um dia inteiro ao sol paciente esteve Com o destro bico a arquitetar o ninho. Da paina os vagos flocos cor de neve Colhe, e por dentro o alfombra com carinho; E armado, pronto enfim, suspenso, em breve, Ei-lo, balouça à beira do caminho. E a ave sobre ele as asas multicores Estende e sonha. Sonha que o áureo pólen E o néctar suga às mais brilhantes flores; Sonha... Porém, de súbito, a violento Abalo acorda. Em torno as folhas bolem... É o vento! E o ninho lhe arrebata o vento! CIGARRA (a Olegário Mariano) [Amadeu Amaral] Pia um pássaro além. De uma copa, responde estrídula cigarra, e o canto agudo estira. Dir-se-ia que a Terra, ante o Verão que expira, ergue uma prece à luz, dando uma voz à fronde. Por que canta a cigarra? E que diz ela? E onde? Em que frincha de sombra? O grande sol que a inspira, doando-lhe o alto esplendor deste céu de safira, a penumbra produz que a dissimula e esconde. Canta, cigarra! Tu, que, em vez de teres garra, bico, dardo ou ferrão, tens uma voz fremente, enche do teu clamor estas matas e furnas. O destino do poeta é como o teu, cigarra: sonhar sonhos de luz na penumbra envolvente, dar um frêmito e um canto às frondes taciturnas... A CEGONHA [Aníbal Teófilo] Em solitária, plácida cegonha Imersa num cismar ignoto e vago, Num fim de ocaso, à beira azul de um lago, Sem tristeza, quem há que os olhos ponha? Vendo-a, Senhora, vossa mente sonha Talvez, que o conde de um palácio mago, Loura fada perversa, em tredo afago, Mudou nessa pernalta erma e tristonha. Mas eu, que em prol da Luz do pétreo, denso Do Ser ou do Não-Ser tento a escalada, Qual morosa, tenaz, paciente lesma, Ao vê-la assim, mirar-se n'água, penso Ver a Dúvida humana debruçada Sobre a angústia infinita de si mesma! INFANTILIDADE [Artur Azevedo] Que reboliço vai em casa de Marieta! É que fugiu Mignonne, a gata favorita, E tanto chora e chora a pobre pequenita, Que o papai manda pôr anúncio na gazeta. Da vizinhança alguém, com olho na gorjeta, A trânsfuga encontrou, que andava de visita Ao demo de um maltês filósofo que habita De um canto de fogão a cálida saleta. Marieta, ao ver Mignonne, estende-lhe os bracinhos. Dá-lhe um banho de amor em beijos e carinhos, Nervosa, a soluçar, e, ao mesmo tempo, a rir. E entre afagos lhe diz: "Senhora, foi preciso Pôr um anúncio! Veja o que é não ter juízo!" E todo o anúncio lê para Mignonne ouvir... O MORCEGO [Augusto dos Anjos] Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: Na bruta ardência orgânica da sede, Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. "Vou mandar levantar outra parede..." Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho, Circularmente sobre a minha rede! Pego de um pau. Esforços faço. Chego A tocá-lo. Minh'alma se concentra. Que ventre produziu tão feio parto?! A Consciência Humana é este morcego! Por mais que a gente faça, à noite, ele entra Imperceptivelmente em nosso quarto! O BEIJA-FLOR [Auta de Souza] Acostumei-me a vê-lo todo o dia De manhãzinha, alegre e prazenteiro, Beijando as brancas flores de um canteiro No meu jardim a pátria da ambrosia. Pequeno e lindo, só me parecia Que era da noite o sonho derradeiro... Vinha trazer às rosas o primeiro Beijo do Sol, nessa manhã tão fria! Um dia foi-se e não voltou... Mas quando A suspirar me ponho, contemplando, Sombria e triste, o meu jardim risonho... Digo, a pensar no tempo já passado: Talvez, ó coração amargurado, Aquele beija-flor fosse o teu sonho! A LAGARTA [Bastos Tigre] Por sobre as ramas da árvore coleia A lagarta. E a colear, viscosa e lenta, O seu aspecto as vistas afugenta E de tocá-la a gente se arreceia. Verde-negra, amarela, azul, cinzenta, Quando o sol as folhagens incendeia, Sobe a aquecer-se, e à luz solar, aumenta O asco de vê-la repulsiva e feia. Mas eis que a encerra do casulo a tumba; Não penseis que, de todo, ela sucumba No seu sepulcro eternamente presa. Qual, do corpo, alma livre, desprendida, É borboleta: evola-se a outra vida, Voando feliz, na glória da beleza. SONETO DO PÁSSARO [Carlos Drummond de Andrade] Amar um passarinho é coisa louca. Gira livre na longa azul gaiola que o peito me constringe, enquanto a pouca liberdade de amar logo se evola. É amor meação? pecúlio? esmola? Uma necessidade urgente e rouca de no amor nos amarmos se desola em cada beijo que não sai da boca. O passarinho baixa a nosso alcance, e na queda submissa um vôo segue, e prossegue sem asas, pura ausência, outro romance ocluso no romance. Por mais que amor transite ou que se negue, é canto (não é ave) sua essência. METAMORFOSE (a Marisa Dias da Cruz) [Carlos Maranhão] Vede-a: a lerda lagarta, o movimento ondeante E tardo, a rastejar o corpo mole e informe, Lentamente a subir no tronco anoso e enorme, Buscando, do arvoredo, a fronde verdejante. E alcança-a por fim; aí, de instante a instante, Ela, na ânsia voraz da gula desconforme, Tudo que é folha rói, num labor ofegante, Até que farta pára e, fatigada, dorme... Dorme para sentir, num letargo profundo, Outro meio, outro ser, outra vida, outro mundo, Renascer dentro em si magnífico tesouro. E como um grande sonho, esplêndido, de lenda Numa transformação biológica estupenda Surge, da áscua lagarta, a borboleta de ouro!... PASSARINHO [Cláudio Manuel da Costa] As moles asas a bater começa Entre as palhas o tenro passarinho, E largos dias por deixar o ninho, Se cansa, se fadiga, se arremessa. Um impulso, outro impulso, em vão se apressa, Já se firma no pé, já no biquinho, Nas folhas se detém, passa ao raminho, Té que a pena se esforce, e se endureça. Quando enfim é capaz de movimento, Deixa os arbustos, vaga pelos ares, E sobre as altas faias toma assento. Estes sejam, Salício, os exemplares Em que a vossa virtude anime o alento, Porque um dia da Fama honre os altares. A ILUSÃO DO SAPO [Cruz Filho] Aos pinchos, pela sombra, indolente e moroso, O batráquio estacou do fundo poço à borda, E um momento quedou, como quem se recorda, Surpreso ante a visão do poço silencioso. Ao fundo, onde do céu, que de nuvens se borda, Reflexa a imagem vê pelo céu luminoso Vê a Lua pairar o áureo disco radioso: E o disforme animal de júbilo transborda... Um momento quedou, mudo e perplexo. Ao centro, A tentá-lo, a ilusão do astro de ouro flutua, E o monstro eis que se arroja, às súbitas, lá dentro... E a água convulsionou-se, em círculos ondeantes, Num naufrágio de luz, em que perece a Lua, Dissolvida em rubis, topázios e diamantes. GATA [Emiliano Perneta] Da brancura da pele e no gesto macio, A carícia tu tens e a moleza de gata: O teu andar sutil é doce como a pata Desse animal pisando um tapete sombrio... Tens uma morbidez lânguida de sonata. Teu sorriso é polido, é fino e é muito frio... Se as tuas mãos acaso eu beijo e acaricio, Sinto uma sensação esquisita, que mata. Quando eu tomo esse teu cabelo ondeado e louro, E o cheiro, e palpo o teu corpo branco e felino, Como te torces, pois, minha serpente de ouro! O teu corpo se enrola em meu corpo amoroso, E o teu beijo me aquece e vibra como um hino, Animal de voz rouca e gesto silencioso! FELINA (à minha gata) [Gilka Machado] Minha animada boa de veludo, minha serpente de frouxel, estranha, com que interesse as volições te estudo! com que amor minha vista te acompanha! Tens muito de mulher, nesse teu mudo, lírico ideal que a vida te emaranha, pois meu ser interior vejo desnudo se te investigo a mansuetude e a sanha. Expões, a um tempo langorosa e arisca, sutilezas à mão que te acarinha, garras à mão que a te magoar se arrisca. Guardas, ó tato corporificado! a alta ternura e a cólera daninha do meu amor que exige ser amado! CONTINUIDADE [Giuseppe Ghiaroni] Existe um cão que ladra quando eu passo, Como se visse um bêbedo, um mendigo. E no entanto, esse cão foi meu amigo, Como tantos amigos que ainda faço. À noite, com que alegre estardalhaço Vinha encontrar-me no portão antigo; Enquanto a dona vinha ter comigo E, sorrindo, apoiava-se ao meu braço. Hoje ele faz a outro a mesma festa E ela o mesmo carinho, tão honesta Como se nem notasse a transição. Eu rio dessa triste brincadeira. Mas quando uma mulher é traiçoeira, Não se pode confiar nem no seu cão. SONETO 165 ARACNÍDEO [Glauco Mattoso] A gente nunca aprende, mas estuda, da mígala à tarântula, as maneiras, que podem ser selvagens ou caseiras. O mundo é um aranhol, ninguém se iluda. Da simples papa-moscas mais miúda, passando pelas lépidas epeiras, e pelas agressivas armadeiras, até a caranguejeira cabeluda. A teia envolve o globo num abraço, raiada em paralelos, meridianos, e já se ramifica pelo espaço. Pululam no meu sonho há muitos anos. À noite, têm mais perna do que braço; De dia, são normais seres humanos. CONTO DOMÉSTICO [Glauco Mattoso] Estava o cachorrão sozinho e triste, trancado na casinha, come-e-dorme. Seu único brinquedo, aquele enorme, surrado pé de tênis, que resiste. Já vítima das línguas e do chiste, a idade faz que quase se conforme. Seus donos usam botas e uniforme. Não há rota de fuga que os despiste. Até que um lindo e tímido gatinho, em busca de refúgio, lá se deita. Naquele aperto, pisa-lhe o focinho. O cão acorda, estranha, mas aceita. Em vez de defender, divide o ninho, e agora a dupla vive satisfeita... NÓS (IX) [Guilherme de Almeida] Nessa tua janela, solitário, entre as grades douradas da gaiola, teu amigo de exílio, teu canário canta, e eu sei que esse canto te consola. E, lá na rua, o povo tumultuário, ouvindo o canto que daqui se evola, crê que é o nosso romance extraordinário que naquela canção se desenrola. Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia, calado e frio, na gaiola fria, o teu canário que cantava tanto. E eu chorarei. Teu pobre confidente ensinou-me a chorar tão docemente, que todo o mundo pensará que eu canto. A LIBÉLULA [Gustavo Teixeira] Entre os juncos das bordas da lagoa Onde bebem a fera e a pomba mansa, Voa a leve libélula, revoa, E sutilmente sobre as águas dança. Sem rumo, sobe e desce, gira à toa, Fixa-se no ar e alada flecha avança. Só quando a terra de astros se coroa, A dançarina alígera descansa. Num flexível caniço que a aura entorta E oscila ao choque de uma folha morta, Dorme, a sonhar com o lago, que se estrela. Assim que a noite o lábaro desfralda, O pirilampo acende em torno dela Pequeninas auroras de esmeralda... A BARATA [Gustavo Teixeira] Nas fendas e desvãos, em lar humilde ou nobre, Fora da luz, se esconde a tímida barata. Se sai do esconderijo e humano olhar descobre, Prestes foge, e o pavor mais a acelera e achata. Raro espalma num vôo as asas cor de cobre. A farejar com a tromba, em tudo põe a pata. Ladra voraz, não poupa o negro pão do pobre, Tisna as cartas de amor, mancha o cristal e a prata. Múmia escamosa, o odor que exala causa nojo. Cauta, vive a espreitar do fundo do seu fojo A lesma que rasteja e o pássaro que voa. Mas raia uma hora azul também em sua vida: De branco, um dia, acorda! E é bela, assim vestida, Como a noiva que o amor ao pé do altar coroa... AVES SEM NINHO [H. Arnoso] Vê bem... vê bem, meu colibri dourado Que eu sou tal qual um pássaro sem pouso A doidejar aflito e torturado Pelo ciclone mau e proceloso!... E tento achar o ninho cobiçado, Tépido e amigo, o ninho carinhoso, Em que repouse o corpo então cansado Desse destino injusto e caprichoso!... ..Mas és também, como eu ave sem ninho... Sem o calor amigo e sem carinho Que nos transformam a vida em paraíso! Unamos, pois, embora por momentos, As nossas asas débeis contra os ventos, E, então, vivamos dentro de um sorriso!... DIÁRIO DE UM SONHO (IV) [Hermes Fontes] É de outro artista não me lembra o nome que o Poeta, no seu sonho de arte, é alguém à parte... é como a aranha, que consome todo o tempo, na rede a que se atém. E, alheio ao próprio tempo, que carcome o brilho às cousas, séculos além, eu ia aranha superior à fome e à sede, e, aranha, me sentia bem... Na solidão, como num canto escuro, tecia a teia rósea do Futuro, quando me entraste, a rir, tonta de sol... E, de então, sem te ver (e ver-te é raro!), não sei tecer... só sei tecer no claro, não sei tecer sem ti meu aranhol... A FORMIGA [Hermes Fontes] E dizer-se que não tens nervos, ó nervosa, ó vibrátil, sutil, minúscula formiga! Dizer que não tens alma! E haverá quem o diga, se o teu exemplo toda gente o imita e glosa?! Tão pequenina és tu, e, astuta e laboriosa, arrastas uma folha e a arrastada te abriga... E o requinte que pões em roer o grão da espiga? E a perícia em bordar as pétalas da rosa? Passas, eu me pergunto onde o melhor motivo: se Atlas erguer nas mãos e nos ombros a Esfera, se formiga arrastar um ramo nutritivo; Ou sonhador que a própria angústia retempera dia e noite viver, qual dia e noite vivo, ao peso imaterial de uma triste quimera... GATA ANGORÁ [J. G. de Araújo Jorge] Sobre a almofada rica e em veludo estofada Caprichosa e indolente como uma odalisca Ela estira o seu corpo de pelúcia, e risca Um estranho bordado ao centro da almofada... Mal eu chego, ela vem... (nunca a encontrei arisca) Sempre esse ar de amorosa. A cauda abandonada Como uma pluma solta, pelo chão deixada, E o olhar, feito uma brasa acesa que faísca! Mal eu chego, e ela vem... lânguida, preguiçosa, Roçar pelos meus pés a pelúcia de prata Como a implorar carícias, tímida e medrosa... E tem tal expressão, um tal jeito qualquer, Que às vezes, chego mesmo a pensar que essa gata Traz no corpo escondida uma alma de mulher! VERSOS A UMA CIGARRA [J. G. de Araújo Jorge] Ela cantou lá fora o dia inteiro veio hoje à tarde morrer aqui na minha mesa... meu olhar que ainda há pouco estava alegre e cheio de luz, turvou-se agora em singular tristeza... Ouço (e já ouvir não posso), o estrídulo gorjeio que é a marcha funeral da tarde azul-turquesa, sobre a folha do bloco onde ela está, releio um verso que hoje fiz ao sol e à natureza! Ela andava lá fora, era a boêmia do céu! Mas na hora de morrer, trocou o azul de anil pela folha de um simples bloco de papel... Na tristeza em que estou, ao menos me conforta saber, que aquele poema que escrevi, serviu para embalar o sono da cigarra morta! CAVALOS [Jorge de Lima] Há cavalos noturnos: mel e fel. O cavalo que vai com Satanás e o cavalo que vai com São Miguel. O cavalo do santo vai atrás. E vai na frente a azêmola cruel. Mas vão os dois e cada qual com um ás. No cavalo da frente o atro anjo infiel com façanhas de guerra se compraz. São Miguel de la Mancha, D. Quixote, Garcia Lorca viu-te, vejo-te eu na luta igual com o ás da negação, arremeter com lança em riste e archote. E ao fim de tudo há um anjo que venceu: Tu, D. Quixote da Anunciação. GAIVOTAS [Luís Delfino] Do crespo mar azul brancas gaivotas Voam de leite e neve o céu manchando, E vão abrindo às regiões remotas As asas, em silêncio, à tarde, e em bando. Depois se perdem pelo espaço ignotas, O ninho das estrelas procurando: Cerras os cílios, com teu dedo notas Que elas vêm outra vez o azul furando. Uma na vaga buliçosa dorme, Uma revoa em cima, outra mais baixo... E ronca o abismo do oceano enorme... Cai o sol, como já queimado facho... Do lado oposto espia a noite informe... Tu me perguntas se isto é belo?... e eu acho... A ARANHA [Luís Delfino] Quando na fina, complicada teia A mosca prende as asas rutilantes, E sente em cada pé uma cadeia, Que ao céu lhe furta os vôos iriantes, Stringe... que quase o ergástulo baqueia: Tempesteia, reluta alguns instantes: Porém de longe a aranha escura e feia Lhe alteia o muro, aos gritos lacerantes; Stringe... revoa, cai: stringe, desata As asas da esmeralda, e oiro, e prata, Como lutara uma águia emaranhada, E Prometeu: mas cede à força estranha. Move-se então, caminha, chega a aranha. E, antes que a empolgue, pára inda aterrada. A PASSARADA EM FESTA [Luís Delfino] Helena a festa vê da passarada: Coalha todo o jardim, e todo o prado; Não há um palmo só do chão deixado, Onde não haja uma asa desdobrada: Foi como uma cascata desatada: O céu azul amanheceu toldado; Ramas de troncos, beiras de telhado... Sem vôos, sem chilrar não há mais nada. Um gato se distende, e se adelgaça, Mescla-se a relva, e nela entrar parece, Até que junto um pássaro lhe passa: Ele rápido o agarra, e o sangra, e cresce, E se encurva, e outra vez espreita a caça, Até que nova presa lhe aparece. SIC TRANSIT... [Luís Lamego] Manhã de primavera. O sol flameja, ardente. Uma abelha operária, aberta a asa dourada, Perdido o rumo, voa, ébria de luz, fremente, E exausta vai cair sobre a poeira da estrada. Move as patas, distende as asas, louca, ansiada; E o pólem pelo chão se espalha; o sol, cruelmente, Abrasando-a, ela fica, em breve, inanimada, Como que a descansar do seu trabalho ingente. Enquanto, inerte, cai no túmulo mesquinho, Onde, enfim, acabou tristíssima odisséia! E onde esquecida jaz, à margem do caminho, As abelhas irmãs vão de aldeia em aldeia, Voam de flor em flor, num doce borborinho, À pesquisa do mel que enriquece a colméia... A ARANHA [Manuel Bandeira] Não te afastes de mim, temendo a minha sanha E o meu veneno... Escuta a minha triste história: Aracne foi meu nome e na trama ilusória Das rendas florescia a minha graça estranha. Um dia desafiei Minerva. De tamanha Ousadia hoje expio a incomparável glória... Venci a deusa. Então, ciumenta da vitória, Ela não ma perdoou: vingou-se e fez-me aranha! Eu que era branca e linda, eis-me medonha e escura Inspiro horror... Ó tu que espias a urdidura Da minha teia, atenta ao que o meu palpo fia: Pensa que fui mulher e tive dedos ágeis, Sob os quais incessante e vária a fantasia Criava a pala sutil para os teus ombros frágeis... MISERICORDIOSISSIMAMENTE [Martins Fontes] Conta Buffon que o sapo é jardineiro: Igual aos pajens, nas antigas salas, Serve às rosas galantes de um canteiro, Em contínuo cuidado a cortejá-las. Dos rouxinóis, artista verdadeiro, Estuda o virtuosismo das escalas, E se esfalfa, e se esforça, prazenteiro, Em senti-las, compô-las, imitá-las. Possui o sapo a adoração da estrela: Vendo-a na água brilhar, tenta colhê-la, Nas profundezas turvas e enganosas. Hugo nos diz que bem merece um culto Quem vive a idolatrar, no mundo estulto, As estrelas, os pássaros e as rosas. TIMIDÍSSIMA [Martins Fontes] Medo? Medo de quê? Por quê? Responde... O amor te encanta e te amedronta? Vamos... Tímido pintassilgo que se esconde Entre as folhagens dos mais altos ramos... Canta e confia, sem temeres onde Pousas. Tu, como os pássaros que amamos, Pensa que é num ramúsculo da fronde Que se embalam os débeis gaturamos... Lembra-te, sempre, colibri, que és ágil... Tremes, arisca, mal pisando a areia, Como se acaso andasses sobre brasas... Não tenhas susto, beija-flor, se és frágil: Se o balanço do galho te arreceia, Ave, não tenhas medo: tu tens asas... OUTRA GATA (para Haroldo, felinófilo) [Nelson Ascher] Embora seja tão minúscula, está viva a gata que se esquiva enquanto minha mão, com mais de um arranhão, conclui a tentativa inútil e, à deriva, afaga o nada em vão. Fruindo em paz de sete vidas, no entanto, a gata faz sua "toilette" e assim não se constata que esconde um canivete suíço em cada pata. OS AMORES DA ARANHA [Olavo Bilac] Com o veludo do ventre a palpitar hirsuto E os oito olhos de brasa ardendo em febre estranha, Vede-a: chega ao portal do intrincado reduto, E na glória nupcial do sol se aquece e banha. Moscas! podeis revoar, sem medo à sua sanha: Mole e tonta de amor, pendente o palpo astuto, E recolhido o anzol da mandíbula, a aranha Ansiosa espera e atrai o amante de um minuto... E ei-lo corre, ei-lo acode à festa e à morte! Um hino Curto e louco, um momento, abala e inflama o fausto Do aranhol de ouro e seda... E o aguilhão assassino Da esposa satisfeita abate o noivo exausto, Que cai, sentindo a um tempo, invejável destino! A tortura do espasmo e o gozo do holocausto. CONSELHO DE AMIGO [Olegário Mariano] Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro, Gosto da tua frívola cantiga, Mas vou dar-te um conselho, rapariga: Trata de abastecer o teu celeiro. Trabalha, segue o exemplo da formiga, Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro, E tu, não tendo um pouso hospitaleiro, Pedirás... e é bem triste ser mendiga! E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava (Quem dá conselhos sempre se consome...) Continuava cantando... continuava... Parece que no canto ela dizia: Se eu deixar de cantar morro de fome... Que a cantiga é o meu pão de cada dia. OS POMBOS-CORREIOS [Petrarca Maranhão] Asas livres no espaço azul e cristalino, Vai-se por céus afora, esplêndida e harmoniosa, A avezinha fagueira, alígera e formosa Que exalta com fervor meu verso alexandrino. Aos primeiros clarões da ante-manhã radiosa, Através do ar ameno e o orvalho matutino, Vão-se os pombos em vôo, rumo a incerto destino Pela vasta amplidão da terra dadivosa... Não lhes falta, porém, a bela vocação De volver ao pombal com firme orientação... E por longa que seja a rota da viagem, Nunca um pombo-correio acaso já deixou De cumprir a missão que o homem lhe confiou, Trazendo, atada aos pés, esperada mensagem... AS POMBAS [Raimundo Correia] Vai-se a primeira pomba despertada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas De pombas vão-se dos pombais, apenas Raia sangüínea e fresca a madrugada... E à tarde, quando a rígida nortada Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, Ruflando as asas, sacudindo as penas, Voltam todas em bando e em revoada... Também dos corações onde abotoam, Os sonhos, um por um, céleres voam, Como voam as pombas dos pombais; No azul da adolescência as asas soltam, Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam, E eles aos corações não voltam mais... PAVÃO VERMELHO [Sosígenes Costa] Ora, a alegria, este pavão vermelho, está morando em meu quintal agora. Vem pousar como um sol em meu joelho quando é estridente em meu quintal a aurora. Clarim de lacre, este pavão vermelho sobrepuja os pavões que estão lá fora. É uma festa de púrpura. E o assemelho a uma chama do lábaro da aurora. É o próprio doge a se mirar no espelho. E a cor vermelha chega a ser sonora neste pavão pomposo e de chavelho. Pavões lilases possuí outrora. Depois que amei este pavão vermelho, os meus outros pavões foram-se embora. SONETO DO GATO MORTO [Vinicius de Moraes] Um gato vivo é qualquer coisa linda Nada existe com mais serenidade Mesmo parado ele caminha ainda As selvas sinuosas da saudade De ter sido feroz. À sua vinda Altas correntes de eletricidade Rompem do ar as lâminas em cinza Numa silenciosa tempestade Por isso ele está sempre a rir de cada Um de nós, e ao morrer perde o veludo Fica torpe, ao avesso, opaco, torto Acaba, é o antigato; porque nada Nada parece mais com o fim de tudo Que um gato morto. O SONETO ANIMAL
°°°
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |