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Nelson Ascher (São Paulo SP 1958)
Dileto e dialético exemplo duma cabível e bem-concretizada sonetística
pós-concreta (diretamente filiado que é a Haroldo de Campos), Ascher
articula seus sonetilhos com ferramentas e precisão de joalheiro ou
relojoeiro, manejando o enjambement a serviço do metro e da rima mas
visando multifacetar um polimorfema preciosista. Estas amostras são
poucas, visto que as gemas costumam ser raras:
PALINODIALÉTICA (1982) Um cisne, que insinua, no signo, o palimpsesto cuja inverdade, presto, desata em outras duas, dobrando, neste incesto de si consigo, as suas insígnias, canta, estua, desdito, em pira: texto. Eclipse. Mas, o insigne de outrora, por estorvo, desova (gris no tisne) seu mesmo (fênix?) torvo. Preto no branco. O cisne se palindroma em corvo. SONETO Fiz o que não devia, o que devia, não; compus uma canção sem letra ou melodia. À meia-noite ardia meu sol que, sem razão, legara de antemão trevas ao meio-dia. E enquanto lia tudo que não dizia nada, ouvindo na calada da noite um eco mudo, pensava, sobretudo, que pouco sobrenada. NO CENTENÁRIO DE MALLARMÉ Embora ao jogo adestre a língua que, selvagem, resolve-se em linguagem, o indecifrável mestre perscruta, além das extre- midades, na voragem de estrelas que interagem, uma inscrição rupestre gravada desde o início na abóbada suprema, em busca de um indício do verbo que se queima feito um minério físsil na origem do poema. OUTRA FACE Faces sem conta são possíveis quando a face perfaz, desfaz, refaz-se na cristalização efêmera que, impasse a impasse, implica, não obstante a interação, além de uma interface, com outras que, indevido equívoco, depressa reduzem-se a resíduo, o impulso que a arremessa a um face-a-face assíduo com sua face avessa. VOZ Ninguém jamais regeu tão extra- (pois sem rivais) vagante orquestra como a que destra- vando os umbrais com chave-mestra cordas vocais propõe que além da canção, com elas, a mente aprenda (mais do que vê-las sem qualquer venda) a ouvir estrelas. DEFESA E ILUSTRAÇÃO Para que um texto quase doentiamente ilustre a sua própria indústria, compete, frase a frase, ao estro que extravase de fleuma quando, ao ultra- passar tudo que o nutra, demonstra até a náusea o quanto de rascunho se arrisca, além da acídia, no ofício que, importuno, prevê menos saída que a síndrome da imuno- deficiência adquirida CONCRETUDE (para Haroldo de Campos) A concretude antes de tudo. Quede tão mudo quanto amiúde altissonante o que há de fácil na flor do Lácio por mares de antes já navegados Decerto, a palo seco, um diacho roxo de enfado há de enfiá-lo inferno abaixo. WALTER BENJAMIN Quando em torno tudo exalta gáudios de alta- neiro e morno "Sim", ressalta teu ardor no- dal de impor-nos noutra pauta, com desígnios mais soturnos, como um ígneo "Não", o turno de teu signo: o de Saturno BÁLSAMOS Embora eu sôfrego mordisque nem tão de leve o teu mamilo vermelho a ponto de induzi-lo à rigidez que lhe condiz querendo ainda mais, tranqüilo não ficarei sem que petisque "in loco" os bálsamos sutis que procedem úmido sigilo da contração de internas dobras que (enquanto delas se avizinha meu hálito) afinal desdobras para que se entredigam sábios tudo que sabem sobre minha língua teus dois pares de lábios. PREGUIÇA (para Rose) Algo de sol se infiltra no quarto e, por um ápice, embora, mais que fibra de lã puída, esfiape-se, ainda recalcitra, riscando, como lápis que escreva um verso capci- osíssimo, a tez vítrea de quem permite, imersa em si mesma, conforme o escuro se dispersa, que um grão de luz transforme em pérolas a inércia e, sem tirá-las, dorme. OUTRA GATA (para Haroldo, felinófilo) Embora seja tão minúscula, está viva a gata que se esquiva enquanto minha mão, com mais de um arranhão, conclui a tentativa inútil e, à deriva, afaga o nada em vão. Fruindo em paz de sete vidas, no entanto, a gata faz sua "toilette" e assim não se constata que esconde um canivete suíço em cada pata. HOELDERLIN (para Antônio Medina Rodrigues) Luz não se vê tão límpida quanto, inundando a casa, aquela que extravasa fugaz de qualquer lâmpada que, de repente, exalte- -se e atinja, por um átimo, à beira do blecaute mais último, seu ótimo. Cega ao fulgor, a orelha talvez capte de esguelha um ultra-som que, esgar- çador como um lamento, provém do filamento no afã de se queimar. RILKE Não o vermelho de uma rosa que se compraz em sua pura contradição voluptuosa quando, numa incisão segura, com seu espinho ela perfura e drena até que se descosa de exangue a carne cor-de-rosa do rouxinol mas a brancura da flor do sono-de-ninguém sob-tantas-pálpebras que é, sôbolo sangue, um nenúfar, pois advém da leucemia e, a cada glóbulo mais branca, torna-se também, sob mais nenhuma língua, um óbolo. GYÖRGY SOMLYÓ AOS 75 Recontas, pois refém há 3/4 de século de um século que nem o 20 em seu crepúsculo perpétuo sem promessa de dia, uma noctâmbula e intransigente fábula que sempre recomeça ou, antes, que não pára jamais qual Sharazade também fizera outrora mil e uma vezes para que a estória nos resguarde da lâmina da História. PERDA Todo o poema se perdeu que estava em meus neurônios antes, tão logo foi, poucos instantes atrás, escrito; ou converteu- -se em variação menos do seu tema que de outros, semelhantes, no desenlace, ao lado dos amantes mais arquetípicos Orfeu perdendo Eurídice ao olhá-la; e a página, sem traço algum do que imaginei, parece a vala comum de quanto seja oriundo da inspiração, que é sempre rala; o esquecimento, que é sem fundo.
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |