|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho (Recife PE 1886-1968)

O poeta de Pasárgada não deixou obra volumosa e tem poucas dezenas de sonetos. Todos rigorosos, porém, ao contrário dos de Drummond, que são intencionalmente displicentes. Entre os homenageados que Bandeira parafraseou está Luís Delfino, objeto do soneto abaixo:


AD INSTAR DELPHINI

Teus pés são voluptuosos: é por isso
Que andas com tanta graça, ó Cassiopéia!
De onde te vem tal chama e tal feitiço,
Que dás idéia ao corpo, e corpo à idéia?

Camões, valei-me! Adamastor, Magriço
Dai-me força, e tu, Vênus Citeréia,
Essa doçura, esse imortal derriço...
Quero também compor minha epopéia!

Não cantarei Helena e a antiga Tróia,
Nem as Missões e a nacional Lindóia,
Nem Deus, nem Diacho! Quero, oh por quem és,

Flor ou mulher, chave do meu destino,
Quero cantar, como cantou Delfino,
As duas curvas de dois brancos pés!


O soneto acima foi comentado por mim no romance autobiográfico MANUAL DO
PODÓLATRA AMADOR e no poemário CENTOPÉIA: SONETOS NOJENTOS & QUEJANDOS.
Eis o respectivo soneto:


SONETO 19 ANTIESTÉTICO

Bandeira quis cantar, como Delfino,
uns pés de musa tipo Cinderela;
e o Alencar, na "Pata da gazela",
também se rende a um pé bem feminino.

Não vou dizer que é fêmea o que abomino,
mas minha preferência não é bela
nem doce e perfumada como aquela
que cabe em salto alto e bico fino.

O pé que almejo é sujo e chulepento,
e, em vez de curva, tem a sola chata,
provando que tamanho é documento.

Portanto, me permitam que rebata:
procuro ser isento, e bem que tento
gostar de pé de pato e pé de pata.


Glauco Mattoso Outros sonetos de Bandeira: A CAMÕES Quando nalma pesar de tua raça A névoa da apagada e vil tristeza, Busque ela sempre a glória que não passa, Em teu poema de heroísmo e de beleza. Gênio purificado na desgraça, Tu resumiste em ti toda a grandeza: Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça O amor da grande pátria portuguesa. E enquanto o fero canto ecoar na mente Da estirpe que em perigos sublimados Plantou a cruz em cada continente, Não morrerá sem poetas nem soldados A língua em que cantaste rudemente As armas e os barões assinalados. A ANTÔNIO NOBRE Tu que penaste tanto e em cujo canto Há a ingenuidade santa do menino; Que amaste os choupos, o dobrar do sino, E cujo pranto faz correr o pranto: Com que magoado olhar, magoado espanto Revejo em teu destino o meu destino! Essa dor de tossir bebendo o ar fino, A esmorecer e desejando tanto... Mas tu dormiste em paz como as crianças. Sorriu a Glória às tuas esperanças E beijou-te na boca... O lindo som! Quem me dará o beijo que cobiço? Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso... Eu, não terei a Glória... nem fui bom. INSCRIÇÃO Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja, Repousa, embalsamado em óleos vegetais, O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja, Dançava descuidosa, e hoje não dança mais... Quem não a viu é bem provável que não veja Outro conjunto igual de partes naturais. Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja. E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais. A morte a surpreendeu um dia que sonhava. Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis À terra, sobre a qual tão de leve pesava... Eram as suas mãos mais lindas sem anéis... Tinha os olhos azuis... Era loura e dançava... Seu destino foi curto e bom... — Não a choreis. CONFISSÃO Se não a vejo e o espírito a afigura, Cresce este meu desejo de hora em hora... Cuido dizer-lhe o amor que me tortura, O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora. Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura... Abrir-lhe o incerto coração que chora, Mostrar-lhe o fundo intacto de ternura, Agora embravecida e mansa agora... E é num arroubo em que a alma desfalece De sonhá-la prendada e casta e clara, Que eu, em minha miséria, absorto a aguardo... Mas ela chega, e toda me parece Tão acima de mim... tão linda e rara... Que hesito, balbucio e me acobardo. A ARANHA Não te afastes de mim, temendo a minha sanha E o meu veneno... Escuta a minha triste história: Aracne foi meu nome e na trama ilusória Das rendas florescia a minha graça estranha. Um dia desafiei Minerva. De tamanha Ousadia hoje expio a incomparável glória... Venci a deusa. Então, ciumenta da vitória, Ela não ma perdoou: vingou-se e fez-me aranha! Eu que era branca e linda, eis-me medonha e escura Inspiro horror... Ó tu que espias a urdidura Da minha teia, atenta ao que o meu palpo fia: Pensa que fui mulher e tive dedos ágeis, Sob os quais incessante e vária a fantasia Criava a pala sutil para os teus ombros frágeis... D. JUAN Ser de eleição em cujo olhar a natureza Acendeu a fagulha altiva que fascina, Tu trazias aquela aspiração divina De realizar na vida a perfeita beleza. Creste achá-la no amor, na indizível surpresa Da posse — o sonho mau que desvaira e ilumina. Vencido, escarneceste a virtude mofina... Tua moral não foi a da massa burguesa. Morreste incontentado, e cada seduzida Foi um ludíbrio à tua essência. Em tais amores Não encontraste nunca o sentido da vida. Tua alma era do céu e perdeu-se no inferno... Para os poetas e para os graves pensadores Da imortal ânsia humana és o símbolo eterno. MANCHA Para reproduzir o donaire sem par Desse alvo rosto e desse irônico sorriso Que desconcerta e prende e atrai, fora preciso A mestria de Helleu, de Boldini ou Besnard Luz faiscante malícia ao fundo desse olhar, E há mais do inferno ali do que do paraíso... O amor é tão-somente um pretexto de riso Para esse coração flutuante e singular. Flor de perfume raro e de esquisito encanto, Ela zomba dos que (pobres deles!) sem cor Vão-lhe aos pés ajoelhar ingenuamente... Enquanto Alguém não lhe magoar a boca de veludo... E não a fizer ver, por si, que isso de amor No fundo é amargo e triste e dói mais do que tudo. VOZ DE FORA Como da copa verde uma folha caída Treme e deriva à flor do arroio fugidio, Deixa-te assim também derivar pela vida, Que é como um largo, ondeante e misterioso rio... Até que te surpreenda a carne dolorida Aquela sensação final de eterno frio, Abre-te à luz do sol que à alegria convida, E enche-te de canções, ó coração vazio! A asa do vento esflora as camélias e as rosas. Toda a paisagem canta. E das moitas cheirosas O aroma dos mirtais sobe nos céus escampos. Vai beber o pleno ar... E enquanto lá repousas, Esquece as mágoas vãs na poesia dos campos E deixa transfundir-te, alma, na alma das cousas... À BEIRA DÁGUA Dágua o fluido lençol, onde em áscuas cintila O sol, que no cristal argênteo se refrata, Crepitando na pedra, a cuja borda oscila, Cai, gemendo e cantando, ao fundo da cascata. Parece a grave queixa, atroando em torno a mata, Contar não sei que mágoa inconsolada, e a ouvi-la A alma se nos escapa e vai perder-se abstrata Na avassalante paz da solidão tranqüila... Às vezes, a tremer na fraga faiscante, Passa uma folha verde, e sobre a veia ondeante Abandona-se toda, ansiosa pelo mar... E vendo-a mergulhar na espuma que a sacode, Não sei que íntimo e vago anseio ali me acode De cair como a folha e deixar-me levar... PARÁFRASE DE RONSARD Foi para vós que ontem colhi, senhora, Este ramo de flores que ora envio. Não no houvesse colhido e o vento e o fio Tê-las-iam crestado antes da aurora. Meditai nesse exemplo, que se agora Não sei mais do que o vosso outro macio Rosto nem boca de melhor feitio, A tudo a idade altera sem demora. Senhora, o tempo foge... e o tempo foge... Com pouco morreremos e amanhã Já não seremos o que somos hoje... Por que é que o vosso coração hesita? O tempo foge... A vida é breve e é vã... Por isso, amai-me... enquanto sois bonita. A MINHA IRMÃ Depois que a dor, depois que a desventura Caiu sobre o meu peito angustiado, Sempre te vi, solícita, a meu lado, Cheia de amor e cheia de ternura. É que em teu coração inda perdura, Entre doces lembranças conservado, Aquele afeto simples e sagrado De nossa infância, ó meiga criatura. Por isso aqui minhalma te abençoa: Tu foste a voz compadecida e boa Que no meu desalento me susteve. Por isso eu te amo, e, na miséria minha, Suplico aos céus que a mão de Deus te leve E te faça feliz, minha irmãzinha... UM SORRISO Vinha caindo a tarde. Era um poente de agosto. A sombra já enoitava as moutas. A umidade Aveludava o musgo. E tanta suavidade Havia, de fazer chorar nesse sol-posto. A viração do oceano acariciava o rosto Como incorpóreas mãos. Fosse mágoa ou saudade, Tu olhavas, sem ver, os vales e a cidade. — Foi então que senti sorrir o meu desgosto... Ao fundo o mar batia a crista dos escolhos... Depois o céu... e mar e céus azuis: dir-se-ia Prolongarem a cor ingênua de teus olhos... A paisagem ficou espiritualizada. Tinha adquirido uma alma. E uma nova poesia Desceu do céu, subiu do mar, cantou na estrada... RENÚNCIA Chora de manso e no íntimo... Procura Curtir sem queixa o mal que te crucia: O mundo é sem piedade e até riria Da tua inconsolável amargura. Só a dor enobrece e é grande e é pura. Aprende a amá-la que a amarás um dia. Então ela será tua alegria, E será, ela só, tua ventura... A vida é vã como a sombra que passa... Sofre sereno e dalma sobranceira, Sem um grito sequer, tua desgraça. Encerra em ti tua tristeza inteira. E pede humildemente a Deus que a faça Tua doce e constante companheira... VERDES MARES Clama uma voz amiga: — "Aí tem o Ceará." E eu, que nas ondas punha a vista deslumbrada, Olho a cidade. Ao sol chispa a areia doirada. A bordo a faina avulta e toda a gente já Desce. Uma moça ri, quebrando o panamá. "— Perdi a mala!" um diz de cara acabrunhada Sobre as águas, arfando, uma breve jangada Passa. Tão frágil! Deus a leve, onde ela vá. Esmalta ao fundo a costa a verdura de um parque. E enquanto a grita aumenta em berros e assobios Rudes, na confusão brutal do desembarque: Fitando a vastidão magnífica do mar, Que ressalta e reluz: — "Verdes mares bravios..." Cita um sujeito que jamais leu Alencar. O SÚCUBO Quando em silêncio a casa adormecia e vinha Ao meu quarto a aromada emanação dos matos, Deslizáveis astuta, amorosa e daninha, Propinando na treva o absinto dos contatos. Como se enlaça ao tronco a ondulação da vinha, Um por um despojando os fictícios recatos, Estreitáveis-me cauta e essa pupila tinha Fosforescências como a pupila dos gatos. Tudo em vós flamejava em instintiva fúria. A garganta cruel arfava com luxúria. O ventre era um covil de serpentes em cio... Sem paixão, sem pudor, sem escrúpulos, — éreis Tão bela! e as vossas mãos, fontes de calefrio, Abrasavam no ardor das volúpias estéreis... A CEIA Junto à púrpura os tons mais ricos esmaecem. Chispa ardente lascívia em cada rosto glabro. Luzem anéis. À luz crua do candelabro Finda a ceia. O perfume e os vinhos entontecem. César medita e trama o desígnio macabro. Quando em volúpia aos mais os olhos enlanguescem, Os seus, frios, fitando o irmão, lançá-lo tecem, Horas depois, do Tibre ao fundo volutabro. Três gregas de alvos pés, pubescentes e esguias, Torcendo os corpos nus donde acre aroma escapa, Dançam meneando véus, flexíveis como enguias. Enquanto, a acompanhar os lascivos trejeitos, Entre os seios liriais de uma matrona, o Papa Deixa cair, rindo, um punhado de confeitos. MENIPO Menipo, o zombeteiro, o Cínico vadio, Ia fazer, enfim, a última viagem. Mas ia sem temor, calmo, atento à paisagem Que se desenrolava à beira do atro rio. E chasqueava a sorrir sobre o Estige sombrio. Nem cuidara em trazer o óbolo da passagem! Em face de Caronte, a pavorosa imagem Do barqueiro da Morte olhava em desafio. Outros erguiam no ar suplicemente as palmas. Ele, avesso ao terror daquelas pobres almas, Antes afigurava um deus sereno e forte. Em seu lábio cansado um sorriso luzia. E era o sorriso eterno e sutil da ironia. Que triunfara da vida e triunfava da morte. A MORTE DE PÃ Quando aquele que o beijo infiel traíra no Horto, Desfaleceu na cruz, das montanhas ao mar Gemeu, com grande pranto e feio soluçar, Uma voz que dizia: — "O Grande Pã é morto!... "Aquele deleitoso, almo viver absorto "No amor da natureza augusta e familiar, "O ledo rito antigo, outrem veio mudar "Em doutrina de amargo e rudo desconforto. "Faunos, morrei! Morrei, Dríades e Napéias! "Oréades gentis que a flauta do Egipã "Congraçava na relva em rondas e coréias, "Morrei! Apague o vento os tenuíssimos laivos "Dos ágeis pés sutis... Bosques, desencantai-vos... "Fontes do ermo, chorai que é morto o grande Pã!... OURO PRETO Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada Ribeirão trepidante e de cada recosto De montanha o metal rolou na cascalhada Para o fausto d'El-Rei, para a glória do imposto. Que resta do esplendor de outrora? Quase nada: Pedras... templos que são fantasmas ao sol-posto. Esta agência postal era a Casa de Entrada... Este escombro foi um solar... Cinza e desgosto! O bandeirante decaiu — é funcionário. Último sabedor da crônica estupenda, Chico Diogo escarnece o último visionário. E avulta apenas, quando a noite de mansinho Vem, na pedra-sabão lavrada como renda, — Sombra descomunal, a mão do Aleijadinho! SONETO ITALIANO Frescura das sereias e do orvalho, Graça dos brancos pés dos pequeninos, Voz das manhãs cantando pelos sinos, Rosa mais alta no mais alto galho: De quem me valerei, se não me valho De ti, que tens a chave dos destinos Em que arderam meus sonhos cristalinos Feitos cinza que em pranto ao vento espalho? Também te vi chorar... Também sofreste A dor de ver secarem pela estrada As fontes da esperança... E não cedeste! Antes, pobre, despida e trespassada, Soubeste dar à vida, em que morreste, Tudo, — à vida, que nunca te deu nada! SONETO INGLÊS Nº 1 Quando a morte cerrar meus olhos duros — Duros de tantos vãos padecimentos, Que pensarão teus peitos imaturos Da minha dor de todos os momentos? Vejo-te agora alheia, e tão distante: Mais que distante — isenta. E bem prevejo, Desde já bem prevejo o exato instante Em que de outro será não teu desejo, Que o não terás, porém teu abandono, Tua nudez! Um dia hei de ir embora Adormecer no derradeiro sono Um dia chorarás... Que importa? Chora. Então eu sentirei muito mais perto De mim feliz, teu coração incerto. SONETO INGLÊS Nº 2 Aceitar o castigo imerecido, Não por fraqueza, mas por altivez. No tormento mais fundo o teu gemido Trocar num grito de ódio a quem o fez. As delícias da carne e pensamento Com que o instinto da espécie nos engana Sobpor ao generoso sentimento De uma afeição mais simplesmente humana. Não tremer de esperança nem de espanto. Nada pedir nem desejar senão A coragem de ser um novo santo Sem fé num mundo além do mundo. E então Morrer sem uma lágrima, que a vida Não vale a pena e a dor de ser vivida. SONETO EM LOUVOR DE AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT Nos teus poemas de cadências bíblicas Recolheste o som das coisas mais efêmeras: O vento que enternece as praias desertas, O desfolhar das rosas cansadas de viver, As vozes mais longínquas da infância, Os risos emudecidos das amadas mortas: Matilde, Esmeralda, a misteriosa Luciana, E Josefina, complicado ser que é mulher e é também o Brasil. A tudo que é transitório soubeste Dar, com a tua grave melancolia, A densidade do eterno. Mais de uma vez fizeste aos homens advertências terríveis. Mas tua glória maior é ser aquele Que soube falar a Deus nos ritmos de sua palavra. SONETO PLAGIADO DE AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT E de súbito nalma incompreendida Esta mágoa, esta pena, esta agonia; Nos olhos ressequidos a sombria Fonte de pranto, quente e irreprimida. No espírito deserto, a impressentida Misteriosa presença que não via; A consciência do mal que não sabia, Aparecida, desaparecida... Até bem pouco, era uma imagem baça. Agora, neste instante de certeza, Surgem do claro, como nunca o vi! E nesse olhar tocado pela graça Do céu, não sei que angélica pureza, — Pureza que não tenho, que perdi. A ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO Scorn not the sonnet, disse o inglês. Ouviste O conselho do poeta e um dia, quando Mais o espinho pungiu da ausência triste, O primeiro soneto abriu cantando. Musa do verso livre, hoje ela insiste Na imortal forma, da paterna herdando. Todos em louvor dessa que ora assiste Em teu lar, dois destinos misturando. No molde exíguo, onde infinita a mágoa Humana vem caber, como o universo A refletir-se numa gota d'água, Disseste o mal da ausência. E ais e saudades E vigílias e castas soledades Choram lágrimas novas no teu verso. O LUTADOR Buscou no amor o bálsamo da vida, Não encontrou senão veneno e morte. Levantou no deserto a roca-forte Do egoísmo, e a roca em mar foi submergida! Depois de muita pena e muita lida, De espantoso caçar de toda sorte, Venceu o monstro de desmedido porte — A ululante Quimera espavorida! Quando morreu, línguas de sangue ardente, Aleluias de fogo acometiam, Tomavam todo o céu de lado a lado, E longamente, indefinidamente, Como um coro de ventos sacudiam Seu grande coração transverberado! NOTURNO DO MORRO DO ENCANTO Este fundo de hotel é um fim de mundo! Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto Que deu nome a este morro, põe no fundo De cada coisa o seu cativo canto. Ouço o tempo, segundo por segundo, Urdir a lenta eternidade. Enquanto Fátima ao pó de estrelas sitibundo Lança a misericórdia do seu manto. Teu nome é uma lembrança tão antiga, Que não tem som nem cor, e eu, miserando, Não sei mais como o ouvir, nem como o diga. Falta a morte chegar... Ela me espia Neste instante talvez, mal suspeitando Que já morri quando o que eu fui morria. A NINFA Estranha volta ao lar naquele dia! Tornava o filho pródigo à paterna Casa, e não via em nada a antiga e terna Jubilação da instante cotovia. Antes, em tudo a igual monotonia, Tanto mais flébil quanto mais eterna. A ninfa estava ali. Que alvor de perna! Mas, em compensação, como era fria! Ao vê-la assim, calou-se no passado A voz que nunca ouviu sem que direito Lhe fosse ao coração. Logo a seu lado Buliu na luz do lar, na luz do leito, Como um brasão de timbre indecifrado, O ruivo, raro isóscele perfeito. VITA NUOVA De onde me veio esse tremor de ninho A alvorecer na morta madrugada? Era todo o meu ser... Não era nada, Senão na pele a sombra de um carinho. Ah, bem velho carinho! Um desalinho De dedos tontos no painel da escada... Batia a minha cor multiplicada, — Era o sangue de Deus mudado em vinho! Bandeiras tatalavam no alto mastro Do meu desejo. No fervor da espera Clareou a distância o súbito alabastro. E na memória em nova primavera, Revivesceu, candente como um astro, A flor do sonho, o sonho da quimera. VARIAÇÕES SÉRIAS EM FORMA DE SONETO Vejo mares tranqüilos, que repousam, Atrás dos olhos das meninas sérias. Alto e longe elas olham, mas não ousam Olhar a quem as olha, e ficam sérias. Nos recantos dos lábios se lhes pousam Uns anjos invisíveis. Mas tão sérias São, alto e longe, que nem eles ousam Dar um sorriso àquelas bocas sérias. Em que pensais, meninas, se repousam Os meus olhos nos vossos? Eles ousam Entrar paragens tristes de tão sérias! Mas poderei dizer-vos que eles ousam? Ou vão, por injunções muito mais sérias, Lustrar pecados que jamais repousam? PEREGRINAÇÃO Quando olhada de face, era um abril. Quando olhada de lado, era um agosto. Duas mulheres numa: tinha o rosto Gordo de frente, magro de perfil. Fazia as sobrancelhas como um til; A boca, como um o (quase). Isto posto, Não vou dizer o quanto a amei. Nem gosto De me lembrar, que são tristezas mil. Eis senão quando um dia... Mas, caluda! Não me vai bem fazer uma canção Desesperada, como fez Neruda. Amor total e falho... Puro e impuro... Amor de velho adolescente... E tão Sabendo a cinza e a pêssego maduro... MAL SEM MUDANÇA Da América infeliz porção mais doente, Brasil, ao te deixar, entre a alvadia Crepuscular espuma, eu não sabia Dizer se ia contente ou descontente. Já não me entendo mais. Meu subconsciente Me serve angústia em vez de fantasia, Medos em vez de imagens. E em sombria Pena se faz passado o meu presente. Ah, se me desse Deus a força antiga, Quando eu sorria ao mal sem esperança E mudava os soluços em cantiga! Bem não é que a alma pede e não alcança. Mal sem motivo é o que ora me castiga, E ainda que dor menor, mal sem mudança. SONHO BRANCO Não pairas mais aqui. Sei que distante Estás de mim, no grêmio de Maria Desfrutando a inefável alegria Da alta contemplação edificante. Mas foi aqui que ao sol do eterno dia Tua alma, entre assustada e confiante, Viu descender à paz purificante Teu corpo, ainda cansado da agonia. Senti-te as asas de anjo em mesto arranco Voejar aqui, retidas pelo aceno Do irmão, saudoso de teu riso franco. Quarenta anos lá vão. De teu moreno Encanto hoje que resta? O eco pequeno, Pequeno de teu sonho — um sonho branco! SONETO SONHADO Meu tudo, minha amada e minha amiga, Eis, compendiada toda num soneto, A minha profissão de fé e afeto, Que à confissão, posto aos teus pés, me obriga. O que n'alma guardei de muita antiga Experiência foi pena e ansiar inquieto. Gosto pouco do amor ideal objeto Só, e do amor só carnal não gosto miga. O que há melhor no amor é a iluminância. Mas, ai de nós! não vem de nós. Viria De onde? Dos céus?... Dos longes da distância?... Não te prometo os estos, a alegria, A assunção... Mas em toda circunstância Ser-te-ei sincero como a luz do dia. IMPROVISO (para Odylo e Nazareth) Por ser quem era e filho de quem era, Eu queria-lhe bem. Pouco eu sabia Do que no coração ele trazia. Era discreto. A sua primavera Não gritava. Tranqüilo em sua espera, Não se apressava. O que é que pretendia? Fazer o bem aos outros, e o fazia: Pelos que amava tudo, e a vida, dera. E a noite veio em que, quando contente Findava ele o seu dia, a sorte fera Lhe surgiu de improviso pela frente. E o que pelos que amava a vida dera, Pela que amava a deu valentemente, Por ser quem era e filho de quem era. À SUA SANTIDADE PAULO VI Quando em torno de nós raiva o funesto Desvairo, e na infernal perplexidade Erramos o caminho da verdade Nos Santos Evangelhos manifesto, Baixem as luzes do divino Texto Pela boca de Vossa Santidade Para reconduzir a cristandade Ao aprisco do Pai, ó Paulo VI! Nest'hora em que de cada continente Vêm mil gemidos e incessantemente Em sangue humano o duro chão se empapa, Falai, falai, que ouvir a vossa isenta Palavra é ouvir em meio da tormenta A voz de Deus na voz de um grande Papa. IRMÃ Irmã — que outra expressão, por mais que a tente Achar, poderei dar-te? —, em teu ouvido Quero a queixa vazar confiantemente Desta vida sem cor e sem sentido. Amei outras mulheres, mas a urgente Compreensão, sem a qual, por mais subido, Falece o amor, esteve sempre ausente. Em nenhuma encontrei o bem querido. Em ti tudo é perfeito e incomparável. E tudo o que de injusto e duro e amargo Sofri, vieste delir com o teu carinho: Com esse frescor de fruta desejável; Com esse gris de teus olhos, que do largo Me traz o ar sem mistura, o sal marinho. VONTADE DE MORRER Não é que não me fales aos sentidos, À inteligência, o instinto, o coração: Falas demais até, e com tal suasão, Que para não te ouvir selo os ouvidos. Não é que sinta gastos e abolidos Força e gosto de amar, nem haja a mão, Na dos anos penosa sucessão, Desaprendido os jogos aprendidos. E ainda que tudo em mim murchado houvera, Teu olhar saberia, senão quando, Tudo alertar em nova primavera. Sem ambições de amor ou de poder, Nada peço nem quero e — entre nós —, ando Com uma grande vontade de morrer. SONETO PARNASIANO E ACRÓSTICO EM LOUVOR DE HELENA OLIVEIRA Houve na Grécia antiga uma beleza rara (Em versos de ouro o grande Homero celebrou-a), Linda mais do que a mente humana imaginara, E cuja fama sem rival inda ressoa. Não a compararei porém (quem a compara?) À que celebro aqui: a outra não era boa. O esplendor da beleza é sol que só me aclara Luzindo sob o véu do pudor que afeiçoa. Inspiremo-nos, pois, não na Helena de Tróia, Versátil coração, frio como uma jóia, Em cujo lume ardeu uma cidade inteira. Inspiremo-nos, sim, de uma Helena mais pura. Ronsard mostrou na sua uma flor de ternura: A mesma flor que orna esta Helena brasileira. NOSSA SENHORA DE NAZARETH Jantando uma vez em casa de Odylo, Seu amigo Couto, na animação Do papo — papo que é um deleite ouvi-lo — Subitamente perdeu a razão (Só assim se pode explicar aquilo) E fez o clássico gesto vilão, Obsceno gesto que a Vênus de Milo Jamais poderia fazer, pois não? Desaprovei a licença de Couto Diante de Nazareth. Que afoito (ou afouto)! Pois a intemerata piauiense é A mulher que já encontrei até agora Mais parecida com Nossa Senhora: É Nossa Senhora de Nazareth. A AFONSO Recebi o seu telegrama, Afonso. Obrigado, obrigado: Sempre é bom ganhar um agrado Dos amigos a quem mais se ama. Gastão gentil como uma dama, Esse merece ser chamado Pinheiro, como você o chama. E Otávio, nunca assaz louvado. Não me sinto pinheiro, Afonso, Eu velho bardo, entre mil vários, À espera da hora do responso. Sou apenas um setentão Adido à estranha legação Dos pinheiros septuagenários. O PALACETE DOS AMORES Um dia destes a saudade (Saudade, a mais triste das flores) Me deu da minha mocidade No Palacete dos Amores. O Palacete dos Amores. Criação que a força de vontade Do velho Gomes, em verdade, Atestava. Linhas e cores. Compunham quadro de um sainete Tal, que os amores eram mato Nos três pisos do palacete. Mato, não — jardim: por maiores Que fossem, sempre houve recato No Palacete dos Amores. VIRIATO OCTOGENÁRIO "Queixem-se outros de gota, reumatismo", Diz Viriato, "e de falta de memória. Nada disso conheço. Nula é a escória Do tempo em meu minúsculo organismo. "Não ouço bem? Freqüentemente cismo Que estou gripado? Dizem que é ilusória Minha gripe (ao revés de minha glória), E que a minha surdez é comodismo. "Se eu vos confiar que escassa é a obesidade Nos meus quadris e de ano em ano o cinto Aperto um ponto mais, quem de vós há de "Acreditar-me? E jurareis que minto Quando eu disser que quanto mais idade Tenho, mais moço e lépido me sinto!" À MANEIRA DE ALBERTO DE OLIVEIRA Esse que em moço ao Velho Continente Entrou de rosto erguido e descoberto, E ascendeu em balão e, mão tenente, Foi quem primeiro o sol viu mais de perto; Águia da Torre Eiffel, da Itu contente Rebento mais ilustre e mais diserto, É o florão que nos falta (e não no tente Glória maior), Santos Dumont Alberto! Ah que antes de morrer, como soldado Que mal-ferido da refrega a poeira Beija do chão natal, me fora dado Vê-lo (tal Febo esplende e é luz e é dia) Na que chamais de Letras Brasileira, Ou melhor nome tenha, Academia. À MANEIRA DE OLEGÁRIO MARIANO Triste flor de milonga ao abandono, Betsabé, Betsabé, que mal me fazes! Ontem, a coqueluche dos rapazes, E agora? pobre pássaro sem dono. Primavera e verão foram-se. O outono Chegou. Folhas no chão... Névoas falazes... E aí vem o inverno... O fim das lindas frases... O último sonho, e após, o último sono! As cigarras calaram-se. Era tarde! E hoje que no teu sangue já não arde O fogo em que tanta alma se abrasou, Choras, sem compreenderes que a saudade É um bem maior do que a felicidade, Porque é a felicidade que ficou! A CÓPULA Depois de lhe beijar meticulosamente O cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce O moço exibe à moça a bagagem que trouxe: Culhões e membro, um membro enorme e turgescente. Ela toma-o na boca e morde-o, incontinenti Não pode ele conter-se e, de um jato, esporrou-se Não desarmou porém. Antes, mais rijo, alterou-se E fodeu-a. Ela geme, ela peida, ela sente Que vai morrer: "Eu morro! ai, não queres que eu morra?!" Grita para o rapaz, que aceso como um Diabo, Arde em cio e tesão na amorosa gangorra. E titilando-a nos mamilos e no rabo (Que depois irá ter sua ração de porra) Lhe enfia cono a dentro o mangalho até o cabo.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes