|| | ||S|| | ||O|| | ||N|| | ||E|| | ||T|| | ||Á|| | ||R|| | ||I|| | ||O|| | ||||| | ||||| | ||||| | || |
Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (Rio de Janeiro RJ 1865-1918)
Considerado tão insuperável que até seu nome completo forma um
alexandrino perfeito, num só soneto resumiu a grandiosidade que Camões
imortalizou nos dez cantos dos Lusíadas a lusitanidade, não
territorial, mas idiomática:
LÍNGUA PORTUGUESA Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura. Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arrolo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, Em que da voz materna ouvi: "meu filho!", E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! O soneto acima foi comentado por mim, a propósito de latinismos e fetichismos, no exemplo abaixo: SONETO 40 LATINO O Lácio, cuja flor se abriu no Olavo, nos deu palavras ricas de sentido. O verbo "supplantare", definido, é pôr a sola em cima dum escravo. "Pes, pedis" é um vocábulo que gravo na pedra da memória, pra ser lido, relido, repetido e até lambido, pois lembra humilhação, ofensa, agravo. Exemplo extremo é quando o gladiador, pisando no pescoço do rival, aguarda o polegar do imperador. O público faz disso um carnaval! E o Glauco aqui se faz de perdedor só pra supor na cara o pé fatal...Glauco Mattoso Outro soneto memorável de Bilac é o que se segue: INANIA VERBA Ah! quem há-de exprimir, alma impotente e escrava, O que a boca não diz, o que a mão não escreve? Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve, Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava... O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava: A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve... E a Palavra pesada abafa a Idéia leve, Que, perfume e clarão, refulgia e voava. Quem o molde achará para a expressão de tudo? Ai! quem há-de dizer as ânsias infinitas Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta? E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo? E as palavras de fé que nunca foram ditas? E as confissões de amor que morrem na garganta?! O soneto acima foi comentado por mim, juntamente com a obra-prima de Raimundo Correia, no exemplo abaixo, um dos cem poemas podólatras do livro CENTOPÉIA: SONETOS NOJENTOS & QUEJANDOS: SONETO 80 PARNASIANO As pombas lá se foram, espantadas por um tropel de vândalos do verso; E mesmo esse escarcéu quedou disperso depois de tantas décadas passadas. Parnaso pareceu conto de fadas... O tempo, inexorável e perverso, expôs toda a pieguice do universo de estrelas, vias lácteas e jornadas. Sobrou "Inania verba", um monumento ao mourejar hercúleo do poeta. Por tê-lo escrito, só, já me contento! Mas não é meu. Prossigo nesta meta de, aos poucos, completar meu próprio cento... Versando sobre o pé, poso de esteta.Glauco Mattoso Naturalmente um poeta tão notório não poderia escapar às paródias. Entre os mais satirizados sonetos de Bilac estão os que se seguem, acompanhados das respectivas paródias: OUVIR ESTRELAS "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto A Via Láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: "Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?" E eu vos direi: "Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas." OUVIR ESTRELAS [Bastos Tigre] Ora, direis, ouvir estrelas! Vejo Que estás beirando a maluquice extrema. No entanto o certo é que não perco o ensejo De ouvi-las nos programas de cinema. Não perco fita; e dir-vos-ei sem pejo Que mais eu gozo se escabroso é o tema. Uma boca de estrela dando beijo É, meu amigo, assunto pra um poema. Direis agora: Mas enfim, meu caro, As estrelas que dizem? que sentido Têm suas frases de sabor tão raro? Amigo, aprende inglês para entendê-las, Pois só sabendo inglês se tem ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas. UVI STRELLA [Juó Bananére] Che scuitá strella, né meia strella! Vucê stá maluco! e io ti diró intanto, Chi p'ra iscuitalas moltas veiz livanto, I vô dá una spiada na gianella. I passo as notte acunversáno co'ella, Inguanto che as otra lá d'un canto Stó mi spiano. I o sol come un briglianto Nasce. Oglio p'ru céu: Cadê strella?! Direis intó: Ó migno inlustre amigo! O chi é chi as strellas ti dizia Quano illas viéro acunversá contigo? E io ti diró: Studi p'ra intendela, Pois só chi giá studô Astrolomia, É capaiz de intendê istas strella. OUVIR O MESTRE [Eno Teodoro Wanke] "Ora (direis) ouvir o mestre... Certo perdeste o senso!" Eu vos direi, no entanto, que, para ouvi-lo, muita vez desperto no meio da aula, pálido de espanto! E como fala o homenzinho, enquanto meu relógio não anda... É que, decerto, parou! Sacudo. Escuto. Não... E, em pranto, comprovo quanto o início ainda está perto. Direis agora: "Tresloucado amigo! E esse teu professor... Oh, que sentido tem o que diz?..." Mas eu nem ligo, e vos direi: "Pois queira ser doutor! Só quem tal quer, consegue ter o ouvido capaz de suportar um professor!" NEL MEZZO DEL CAMIN... Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha... E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha. Hoje, segues de novo... Na partida Nem o pranto os teus olhos umedece, Nem te comove a dor da despedida. E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do caminho extremo. AMORE CO AMORE SI PAGA [Juó Bananére] Xiguê, xigaste! Tu vigna afatigada i triste I triste i afatigado io vigna; Tu tigna a arma povolada di sogno, I a arma povolada di sogno io tigna. Ti amê, m'amasti. Bunitigno io era I tu tambê era bunitigna; Tu tigna una garigna di fera E io di fera tigna una garigna. Una veiz ti begiê a linda mô, I a migna tambê vucê begió. Vucê mi apisô nu pé, e io non pisé no da signora. Moltos abbraccio mi deu vucê, Moltos abbraccio io tambê ti dê. U fora vucê mi deu, e io tambê ti dê u fora. O próprio Bilac tinha sua faceta irreverente e até fescenina, não se furtando a satirizar clássicos perenes ou autoridades transitórias. Além dos casos que ilustram o verbete sobre O SONETO SATÍRICO, exemplifico abaixo com uma paródia bilaquiana-bocagiana: SAIBA DESCER O QUE SUBIR NÃO SOUBE (*) Meus dias consumir de terra em terra, Em banquetes com reis todos os dias; Comigo a pança encheu também Tobias Na Alemanha, na França, na Inglaterra... Oh! secretário que tão bem comias! Não sejas mole: dente agudo ferra Na própria língua, que ainda agora encerra O chorume daquelas iguarias! Marinhas, meu nêgo, se tu visses O que de bom nesta barriga coube, É impossível que ao pranto resistisses. Quando o Rio a Petrópolis me roube, Desça o trem com finas gulodices, Saiba descer o que subir não soube! Outros sonetos de Bilac que estão entre meus prediletos são estes: GUERREIRA É a encarnação do mal. Pulsa-lhe o peito Ermo de amor, deserto de piedade... Tem o olhar de uma deusa e o altivo aspeito Das cruentas guerreiras de outra idade. O lábio ao ríctus do sarcasmo afeito Crispa-se-lhe num riso de maldade, Quando, talvez, as pompas, com despeito, Recorda da perdida majestade. E assim, com o seio ansioso, o porte erguido, Corada a face, a ruiva cabeleira Sobre as amplas espáduas derramada, Faltam-lhe apenas a sangrenta espada Inda rubra da guerra derradeira, E o capacete de metal polido... MESSALINA Recordo, ao ver-te, as épocas sombrias Do passado. Minh'alma se transporta À Roma antiga, e da cidade morta Dos Césares reanima as cinzas frias; Triclínios e vivendas luzidias Percorre; pára de Suburra à porta, E o confuso clamor escuta, absorta, Das desvairadas e febris orgias. Aí, num trono ereto sobre a ruína De um povo inteiro, tendo à fronte impura O diadema imperial de Messalina, Vejo-te bela, estátua da loucura! Erguendo no ar a mão nervosa e fina, Tinta de sangue, que um punhal segura. VIA LÁCTEA, IV Como a floresta secular, sombria, Virgem do passo humano e do machado, Onde apenas, horrendo, ecoa o brado Do tigre, e cuja agreste ramaria Não atravessa nunca a luz do dia, Assim também, da luz do amor privado, Tinhas o coração ermo e fechado, Como a floresta secular, sombria... Hoje, entre os ramos, a canção sonora Soltam festivamente os passarinhos. Tinge o cimo das árvores a aurora... Palpitam flores, estremecem ninhos... E o sol do amor, que não entrava outrora, Entra dourando a areia dos caminhos. VIA LÁCTEA, VI Em mim também, que descuidado vistes, Encantado e aumentando o próprio encanto, Tereis notado que outras coisas canto Muito diversas das que outrora ouvistes. Mas amastes, sem dúvida... Portanto, Meditai nas tristezas que sentistes: Que eu, por mim, não conheço coisas tristes, Que mais aflijam, que torturem tanto. Quem ama inventa as penas em que vive: E, em lugar de acalmar as penas, antes Busca novo pesar com que as avive. Pois sabei que é por isso que assim ando: Que é dos loucos somente e dos amantes Na maior alegria andar chorando. VIA LÁCTEA, XVII Por estas noites frias e brumosas É que melhor se pode amar, querida! Nem uma estrela pálida, perdida Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas... Mas um perfume cálido de rosas Corre a face da terra adormecida... E a névoa cresce, e, em grupos repartida, Enche os ares de sombras vaporosas: Sombras errantes, corpos nus, ardentes Carnes lascivas... um rumor vibrante De atritos longos e de beijos quentes... E os céus se estendem, palpitando, cheios Da tépida brancura fulgurante De um turbilhão de braços e de seios. VIA LÁCTEA, XXI [À MINHA MÃE] Sei que um dia não há (e isso é bastante A esta saudade, mãe!) em que a teu lado Sentir não julgues minha sombra errante, Passo a passo a seguir teu vulto amado. Minha mãe! minha mãe! a cada instante Ouves. Volves, em lágrimas banhado, O rosto, conhecendo soluçante Minha voz e meu passo costumado. E sentes alta noite no teu leito Minh'alma na tua alma repousando, Repousando meu peito no teu peito... E encho os teus sonhos, em teus sonhos brilho, E abres os braços trêmulos, chorando, Para nos braços apertar teu filho! VIA LÁCTEA, XXV [A BOCAGE] Tu, que no pego impuro das orgias Mergulhavas ansioso e descontente, E, quando à tona vinhas de repente, Cheias as mãos de pérolas trazias; Tu, que do amor e pelo amor vivias, E que, como de límpida nascente, Dos lábios e dos olhos a torrente Dos versos e das lágrimas vertias; Mestre querido! viverás, enquanto Houver quem pulse o mágico instrumento, E preze a língua que prezavas tanto: E enquanto houver num canto do universo Quem ame e sofra, e amor e sofrimento Saiba, chorando, traduzir no verso. RIOS E PÂNTANOS Muita vez houve céu dentro de um peito! Céu coberto de estrelas resplendentes, Sobre rios alvíssimos, de leito De fina prata e margens florescentes... Um dia veio, em que a descrença o aspeito Mudou de tudo: em túrbidas enchentes, A água um manto de lodo e trevas feito Estendeu pelas veigas recendentes. E a alma que os anjos de asa solta, os sonhos E as ilusões cruzaram revoando, Depois, na superfície horrenda e fria, Só apresenta pântanos medonhos, Onde, os longos sudários arrastando, Passa da peste a legião sombria... POMBA E CHACAL Ó Natureza! ó mãe piedosa e pura! Ó cruel, implacável assassina! Mão, que o veneno e o bálsamo propina E aos sorrisos as lágrimas mistura! Pois o berço, onde a boca pequenina Abre o infante a sorrir, é a miniatura A vaga imagem de uma sepultura, O gérmen vivo de uma atroz ruína?! Sempre o contraste! Pássaros cantando Sobre túmulos... flores sobre a face De ascosas águas pútridas boiando... Anda a tristeza ao lado da alegria... E esse teu seio, de onde a noite nasce, É o mesmo seio de onde nasce o dia... VANITAS Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria, Trabalha. A alma lhe sai da pena, alucinada, E enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada De gritos de triunfo e gritos de agonia. Prende a idéia fugaz: doma a rima bravia; Trabalha... E a obra, por fim, resplandece acabada: "Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada! Filha do meu trabalho! ergue-te à luz do dia! Cheia de minha febre e da minha alma cheia, Arranquei-te da vida ao ádito profundo, Arranquei-te do amor à mina ampla e secreta! Posso agora morrer, porque vives!" E o Poeta Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo, E cai vaidade humana! ao pé de um grão de areia... SÓ Este, que um deus cruel arremessou à vida, Marcando-o com o sinal da sua maldição, Este desabrochou como a erva má, nascida Apenas para aos pés ser calcada no chão. De motejo em motejo arrasta a alma ferida... Sem constância no amor, dentro do coração Sente, crespa, crescer a selva retorcida Dos pensamentos maus, filhos da solidão. Longos dias sem sol! noites de eterno luto! Alma cega, perdida à toa no caminho! Roto casco de nau, desprezado no mar! E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto; E, homem, há-de morrer como viveu: sozinho! Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar! VELHAS ÁRVORES Olha estas velhas árvores, mais belas, Do que as árvores novas, mais amigas: Tanto mais belas quanto mais antigas, Vencedoras da idade e das procelas... O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas Vivem, livres de fomes e fadigas; E em seus galhos abrigam-se as cantigas E os amores das aves tagarelas. Não choremos, amigo, a mocidade! Envelheçamos rindo! envelheçamos Como as árvores fortes envelhecem: Na glória da alegria e da bondade, Agasalhando os pássaros nos ramos, Dando sombra e consolo aos que padecem! MALDIÇÃO Se por vinte anos, nesta furna escura, Deixei dormir a minha maldição, Hoje, velha e cansada da amargura, Minh'alma se abrirá como um vulcão. E, em torrentes de cólera e loucura, Sobre a tua cabeça ferverão Vinte anos de silêncio e de tortura, Vinte anos de agonia e solidão... Maldita sejas pelo Ideal perdido! Pelo mal que fizeste sem querer! Pelo amor que morreu sem ter nascido! Pelas horas vividas sem prazer! Pela tristeza do que eu tenho sido! Pelo esplendor do que eu deixei de ser!... ISRAEL Caminhar! caminhar!... O deserto primeiro, O mar depois... Areia e fogo... Foragida, A tua raça corre os desastres da vida, Insultada na pátria e odiada no estrangeiro! Onde o leite, onde o mel da Terra Prometida? A guerra! a ira de Deus! o êxodo! o cativeiro! E, molhada de pranto, a oscilar de um salgueiro, A tua harpa, Israel, a tua harpa esquecida! Sem templo, sem altar, vagas perpetuamente... E, em torno de Sião, do Líbano ao Mar Morto, Fulge, de monte em monte, o escárnio do Crescente: E, impassível, Jeová te vê, do céu profundo, Náufrago amaldiçoado a errar de porto em porto, Entre as imprecações e os ultrajes do mundo! OS BÁRBAROS Ventre nu, seios nus, toda nua, cantando Do esmorecer da tarde ao ressurgir do dia, Roma lasciva e louca, ao rebramar da orgia, Sonhava, de triclínio em triclínio rolando. Mas já da longe Cítia e da Germânia fria, Esfaimado, rangendo os dentes, como um bando De lobos o sabor da presa antegozando, O tropel rugidor dos Bárbaros descia. Ei-los! A erva, aos seus pés, mirra. De sangue cheios Turvam-se os rios. Louca, a floresta farfalha... E ei-los, torvos, brutais, cabeludos e feios! Donar, Pai da Tormenta, à frente deles corre; E a ígnea barba do deus, que o incêndio ateia e espalha, Ilumina a agonia a esse império que morre... O BRASIL Pára! Uma terra nova ao teu olhar fulgura! Detém-te! Aqui, de encontro a verdejantes plagas, Em carícias se muda a inclemência das vagas... Este é o reino da Luz, do Amor e da Fartura! Treme-te a voz afeita às blasfêmias e às pragas, Ó nauta! Olha-a, de pé, virgem morena e pura, Que aos teus beijos entrega, em plena formosura, Os dois seios que, ardendo em desejos, afagas... Beija-a! O sol tropical deu-lhe à pele doirada O barulho do ninho, o perfume da rosa, A frescura do rio, o esplendor da alvorada... Beija-a! é a mais bela flor da Natureza inteira! E farta-te de amor nessa carne cheirosa, Ó desvirginador da Terra Brasileira! PÁTRIA Pátria, latejo em ti, no teu lenho, por onde Circulo! e sou perfume, e sombra, e sol, e orvalho! E, em seiva, ao teu clamor a minha voz responde, E subo do teu cerne ao céu de galho em galho! Dos teus líquens, dos teus cipós, da tua fronde, Do ninho que gorjeia em teu doce agasalho, Do fruto a amadurar que em teu seio se esconde, De ti, rebento em luz e em cânticos me espalho! Vivo, choro em teu pranto; e, em teus dias felizes, No alto, como uma flor, em ti, pompeio e exulto! E eu, morto, sendo tu cheia de cicatrizes, Tu golpeada e insultada, eu tremerei sepulto: E os meus ossos no chão, como as tuas raízes, Se estorcerão de dor, sofrendo o golpe e o insulto! MÚSICA BRASILEIRA Tens, às vezes, o fogo soberano Do amor: encerras na cadência, acesa Em requebros e encantos de impureza, Todo o feitiço do pecado humano. Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza Dos desertos, das matas e do oceano: Bárbara poracé, banzo africano, E soluços de trova portuguesa. És samba e jongo, xiba e fado, cujos Acordes são desejos e orfandades De selvagens, cativos e marujos: E em nostalgias e paixões consistes, Lasciva dor, beijo de três saudades, Flor amorosa de três raças tristes. OS MONSTROS Não me perdi numa ilusão... Perdi-me Na existência, entre os homens. E encontrei-os, Vivos, bem vivos! estes monstros feios, Cujo peso afrontoso a terra oprime. Mas há monstros no bem, como no crime: Outros houve, que em hinos e gorjeios Talvez viveram e morreram, cheios De extrema formosura e ardor sublime. Ah! no dia da cólera tremenda, Os monstros bons, agora fugitivos Desta míngua de fé que nos infama, Ressurgirão no epílogo da lenda: Os mortos voltarão varrendo os vivos, E os maus se afogarão na própria lama! OS GOIÁSIS Ainda viveis, espíritos obscenos, Como nos dias do Brasil inculto, Na inteligência anãos, como no vulto; Como no corpo, no moral pequenos. Espremeis a impotência do ódio estulto Em pérfidos esguichos de venenos... Tendes baixeza em tudo: nem, ao menos, Força na inveja e elevação no insulto! Répteis humanos, no coleio dobre De rastos babujais templos e lares; Contra os bons, contra os fortes de alma nobre, Línguas e dentes dardejais nos ares: Mas só podeis ferir, na raiva pobre, Em vez dos corações, os calcanhares. A MONTANHA Calma, entre os ventos, em lufadas cheias De um vago sussurrar de ladainha, Sacerdotisa em prece, o vulto alteias Do vale, quando a noite se avizinha: Rezas sobre os desertos e as areias, Sobre as florestas e a amplidão marinha; E, ajoelhadas, rodeiam-te as aldeias, Mudas servas aos pés de uma rainha. Ardes, num holocausto de ternura... E abres, piedosa, a solidão bravia Para as águias e as nuvens, a acolhê-las; E invades, como um sonho, a imensa altura, Última a receber o adeus do dia, Primeira a ter a bênção das estrelas! CREPÚSCULO NA MATA Na tarde tropical, arfa e pesa a atmosfera. A vida, na floresta abafada e sonora, Úmida exalação de aromas evapora, E no sangue, na seiva e no húmus acelera. Tudo, entre sombras, o ar e o chão, a fauna e a flora, A erva e o pássaro, a pedra e o tronco, os ninhos e a hera, A água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e a fera, Tudo vozeia e estala em estos de pletora. O amor apresenta o gozo e o sacrifício na ara: Guinchos, berros, zinir, silvar, ululos de ira, Ruflos, chilros, frufrus, balidos de ternura... Súbito, a excitação declina, a febre pára: E misteriosamente, em gemido que expira, Um surdo beijo morno alquebra a mata escura... O CREPÚSCULO DA BELEZA Vê-se no espelho; e vê, pela janela, A dolorosa angústia vespertina: Pálido, morre o sol... Mas, ai! termina Outra tarde mais triste, dentro dela; Outra queda mais funda lhe revela O aço feroz, e o horror de outra ruína: Rouba-lhe a idade, pérfida e assassina, Mais do que a vida, o orgulho de ser bela! Fios de prata... Rugas... O desgosto Enche-a de sombras, como a sufocá-la Numa noite que aí vem... E no seu rosto Uma lágrima trêmula resvala, Trêmula, a cintilar, como, ao sol-posto, Uma primeira estrela em céu de opala... O CREPÚSCULO DOS DEUSES Fulge em nuvens, no poente, o Olimpo. O céu delira. Os deuses rugem. Entre incêndios de ouro e gemas, Há torrentes de sangue, hecatombes supremas, Heróis rojando ao chão, troféus ardendo em pira, Ilíadas, bulcões de gládios e diademas, Ossa e Pelion tombando, e Zeus em raios de ira, E Acrópoles em fogo, e Homero erguendo a lira Em reverberações de batalhas e poemas... Mas o vento, embocando as bramidoras trompas, Clangora. Rolam no ar, de roldão, num tumulto, Os numes e os titãs, varridos à rajada: E ódio, furor, tropel, fastígio, glória, pompas, Chamas, o Olimpo, tudo esbate-se, sepulto Em cinza, em crepe, em fumo, em sonho, em noite, em nada. MICROCOSMO Pensando e amando, em turbilhões fecundos És tudo: oceanos, rios e florestas; Vidas brotando em solidões funestas; Primaveras de invernos moribundos; A Terra; e terras de ouro em céus profundos, Cheias de raças e cidades, estas Em luto, aquelas em raiar de festas; Outras almas vibrando em outros mundos; E outras formas de línguas e de povos; E as nebulosas, gêneses imensas, Fervendo em sementeiras de astros novos; E todo o cosmos em perpétuas flamas... Homem! és o universo, porque pensas, E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas! DUALISMO Não és bom, nem és mau: és triste e humano... Vives ansiando, em maldições e preces, Como se, a arder, no coração tivesses O tumulto e o clamor de um largo oceano. Pobre, no bem como no mal, padeces; E, rolando num vórtice vesano, Oscilas entre a crença e o desengano, Entre esperanças e desinteresses. Capaz de horrores e de ações sublimes, Não ficas das virtudes satisfeito, Nem te arrependes, infeliz, dos crimes: E, no perpétuo ideal que te devora, Residem juntamente no teu peito Um demônio que ruge e um deus que chora. BENEDICITE! Bendito o que, na terra, o fogo fez, e o teto; E o que uniu a charrua ao boi paciente e amigo; E o que encontrou a enxada; e o que, do chão abjeto, Fez, aos beijos do sol, o ouro brotar do trigo; E o que o ferro forjou; e o piedoso arquiteto Que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo; E o que os fios urdiu; e o que achou o alfabeto; E o que deu uma esmola ao primeiro mendigo; E o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano; E o que inventou o canto; e o que criou a lira; E o que domou o raio; e o que alçou o aeroplano... Mas bendito, entre os mais, o que, no dó profundo, Descobriu a Esperança, a divina mentira, Dando ao homem o dom de suportar o mundo! RESPOSTAS NA SOMBRA "Sofro... Vejo envasado em desespero e lama Todo o antigo fulgor, que tive na alma boa; Abandona-me a glória; a ambição me atraiçoa; Que fazer, para ser como os felizes?" Ama! "Amei... Mas tive a cruz, os cravos, a coroa De espinhos, e o desdém que humilha, e o dó que infama; Calcinou-me a irrisão na destruidora chama; Padeço! Que fazer, para ser bom?" Perdoa! "Perdoei... Mas outra vez, sobre o perdão e a prece, Tive o opróbrio; e outra vez, sobre a piedade, a injúria; Desvairo! Que fazer, para o consolo?" Esquece! "Mas lembro... Em sangue e fel, o coração me escorre; Ranjo os dentes, remordo os punhos, rujo em fúria... Odeio! Que fazer, para a vingança?" Morre! BEETHOVEN SURDO Surdo, na universal indiferença, um dia, Beethoven, levantando um desvairado apelo, Sentiu a terra e o mar num mudo pesadelo... E o seu mundo interior cantava e restrugia. Torvo o gesto, perdido o olhar, hirto o cabelo, Viu, sobre a orquestração que no seu crânio havia, Os astros em torpor na imensidade fria, O ar e os ventos sem voz, a natureza em gelo. Era o nada, a eversão do caos no cataclismo, A síncope do som no páramo profundo, O silêncio, a algidez, o vácuo, o horror no abismo... E Beethoven, no seu supremo desconforto, Velho e pobre, caiu, como um deus moribundo, Lançando a maldição sobre o universo morto! MILTON CEGO Desvendava-se ao cego o mistério: (As idades Sem princípio; de sol a sol, de terra a terra, A eterna combustão que maravilha e aterra, Geradora de bens e de ferocidades; Cordilheiras de espanto e esplendor, serra a serra, De infinito a infinito; asas em tempestades, Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades, Luz contra luz, furor de chama e glória em guerra; E os rebeldes, rodando em rugidoras vagas; E o Éden, e a tentação, e, entre o opróbrio e a alegria, O amor florindo ao pé da amaldiçoada porta: E o Homem em susto, o céu em ira, o inferno em pragas; E, imperturbável, Deus, na sua glória!...) Ardia O poema universal numa retina morta. NO TRONCO DE GOA Camões sofre, na infâmia de clausura, Pária sem honra, náufrago sem nome; E rala, na saudade que o consome, O pobre peito contra a pedra dura. O seu gênio ilumina a abjeta lura... Mas a vida das carnes se lhe some: Míngua de pão, e, outra mais negra fome, Indigência de beijos e ventura. Do próprio fel, dos íntimos venenos, Faz a glória da pátria e a luz da raça; E chora, na ignomínia. Mas, ao menos, Possui, na mesquinhez da terra crassa E na vergonha de homens tão pequenos, O orgulho de ser grande na desgraça. CLEÓPATRA Não! que importava a queda, e o epílogo do drama: O trono, o cetro, o povo, o exército, o tesouro, As províncias, a glória, e as naus, no sorvedouro De Actium, e Alexandria entregue ao saque e à chama? Não! que importava o horror da entrada em Roma: a fama De Otávio, e o seu triunfo, entre a púrpura e o louro, E a plebe em grita, e o céu cheio de águias de ouro, E o Egito, e o seu império, e os seus troféus, na lama? Não! Que importava o amor perdido? Que importava O naufrágio do orgulho, a vergonha, a tortura Do ódio do vencedor ou da piedade alheia? Mas entrar desgrenhada, envelhecida, escrava, Rota, sem o raiar da sua formosura, Sol sem fulgor... Matou-a o medo de ser feia. AOS MEUS AMIGOS DE SÃO PAULO Se amo, padeço e sonho, a recompensa É a melhor que me dais, neste agasalho: Desta ternura, sobre mim suspensa, Desce todo o valor do quanto valho. Não tenho aroma que vos não pertença; Vêm de vós a doçura e o bem que espalho; Valemos todos pela nossa crença, Na comunhão do amor e do trabalho. Operário modesto, abelha pobre, De vós e para vós o mel fabrico, E abençôo a colméia que nos cobre. Só do labor geral me glorifico: Por ser da minha terra é que sou nobre, Por ser da minha gente é que sou rico. A UM POETA Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino, escreve! No aconchego Do claustro, na paciência e no sossego, Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! Mas que na forma se disfarce o emprego Do esforço; e a trama viva se construa De tal modo, que a imagem fique nua, Rica mas sóbria, como um templo grego. Não se mostre na fábrica o suplício Do mestre. E, natural, o efeito agrade, Sem lembrar os andaimes do edifício: Porque a Beleza, gêmea da Verdade, Arte pura, inimiga do artifício, É a força e a graça na simplicidade. NEW YORK Resplandeces e ris, ardes e tumultuas; Na escalada do céu, galgando em fúria o espaço, Sobem do teu tear de praças e de ruas Atlas de ferro, Anteus de pedra e Brontes de aço. Gloriosa! Prometeu revive em teu regaço, Delira no teu gênio, enche as artérias tuas, E combure-te a entranha arfante de cansaço, Na incessante criação de assombros em que estuas. Mas, com as tuas Babéis, debalde o céu recortas, E pesas sobre o mar, quando o teu vulto assoma, Como a recordação da Tebas de cem portas: Falta-te o Tempo, o vago, o religioso aroma Que se respira no ar de Lutécia e de Roma, Sempre moço perfume ancião de idades mortas... ÚLTIMO CARNAVAL Íncola de Suburra ou de Sibáris, Nasceste em saturnal; viveste, estulto, Na folia das feiras, no tumulto Dos caravançarás e dos bazares; Morreste, em plena orgia, entre os esgares Dos arlequins, no delirante culto: E a saudade terás, depois sepulto, Herói folião, dos carnavais hilares... Talvez, quem sabe? a cova, que te esconda, Uma noite, entre fogos-fátuos, se abra, Como uma boca escancarada em risos: E saltarás, pinchando, numa ronda De espectros aos tantãs, dança macabra De esqueletos e lêmures aos guizos... OS AMORES DA ARANHA Com o veludo do ventre a palpitar hirsuto E os oito olhos de brasa ardendo em febre estranha, Vede-a: chega ao portal do intrincado reduto, E na glória nupcial do sol se aquece e banha. Moscas! podeis revoar, sem medo à sua sanha: Mole e tonta de amor, pendente o palpo astuto, E recolhido o anzol da mandíbula, a aranha Ansiosa espera e atrai o amante de um minuto... E ei-lo corre, ei-lo acode à festa e à morte! Um hino Curto e louco, um momento, abala e inflama o fausto Do aranhol de ouro e seda... E o aguilhão assassino Da esposa satisfeita abate o noivo exausto, Que cai, sentindo a um tempo, invejável destino! A tortura do espasmo e o gozo do holocausto. OS AMORES DA ABELHA Quando, em prônubo anseio, a abelha as asas solta E escala o espaço, ardendo, exul do corcho céreo, Louca, se precipita a sussurrante escolta Dos noivos zonzos, voando ao nupcial mistério. Em breve, sucumbindo, o enxame arqueja, e volta... Mas o mais forte, um só, senhor do excelso império, Segue a esquiva, e, em zunzum zeloso de revolta, Entoa o epitalâmio e o cântico funéreo: Toca-a, fecunda-a, e vence, e morre na vitória... A esposa, livre, ao sol, no alto do firmamento, Paira, e, rainha e mãe, zumbe de orgulho e glória; E, rodopiando, inerte, o suicida sublime, Entre as bênçãos da luz e os hosanas do vento, Rola, mártir feliz do delicioso crime. ASSOMBRAÇÃO Conheço um coração, tapera escura, Casa assombrada, onde andam penitentes Sombras e ecos de amor, e em que perdura A saudade, presença dos ausentes. Evadidos da paz da sepultura, Num tatalar de tíbias e de dentes, Revivem os fantasmas da ternura, Arrastando sudários e correntes. Rangem os gonzos no bater das portas, E os corredores enchem-se de prantos... Um mundo de avejões do chão se eleva, Ressuscitado pelas horas mortas: Frios abraços gemem pelos cantos, Beijos defuntos fogem pela treva. CONSOLAÇÃO Penso às vezes nos sonhos, nos amores, Que inflamei à distância pelo espaço; Penso nas ilusões do meu regaço Levadas pelo vento a alheias dores... Penso na multidão dos sofredores, Que uma bênção tiveram do meu braço: Talvez algum repouso ao seu cansaço, Talvez ao seu deserto algumas flores... Penso nas amizades sem raízes, Nos afetos anônimos, dispersos, Que tenho sob os céus de outros países... Penso neste milagre dos meus versos: Um pouco de modéstia aos mais felizes, Um pouco de bondade aos mais perversos... PENETRALIA (**) Falei tanto de amor!... de galanteio, Vaidade e brinco, passatempo e graça, Ou desejo fugaz, que brilha e passa No relâmpago breve com que veio... O verdadeiro amor, honra ou desgraça, Gozo ou suplício, no íntimo fechei-o: Nunca o entreguei ao público recreio, Nunca o expus indiscreto ao sol da praça. Não proclamei os nomes, que, baixinho, Rezava... E ainda hoje, tímido, mergulho Em funda sombra o meu melhor carinho. Quando amo, amo e deliro sem barulho; E, quando sofro, calo-me, e definho Na ventura infeliz do meu orgulho. /// (*) paródia do seguinte soneto de Bocage: SAIBA MORRER O QUE VIVER NÃO SOUBE Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões, que me arrastava. Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana. De que inúmeros sóis a mente ufana Existência falaz me não dourava! Mas eis sucumbe Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua orgia dana. Prazeres, sócios meus e meus tiranos! Esta alma, que sedenta em si não coube, No abismo vos sumiu dos desenganos. Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube Ganhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube. (**) Os mais maliciosos conseguem enxergar neste soneto a velada confissão duma pederastia que o poeta teria que disfarçar a todo custo, devido à imagem de "exemplo de civismo" (e militarismo) que cultivava. Mas nos bastidores circulavam fofocas até em forma de trova, como esta: Ao ver o Bilac inerme Na cova, tão jururu, Um verme fala a outro verme: "Defuntos, tapai o cu!"
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