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Geir Nuffer de Campos (São José do Calçado ES 1924-1999)
O grande representante capixaba da Geração de 45 é, além de
politicamente participante, um dos poucos que, no Brasil, se aventuraram
a compor uma coroa de sonetos. Pena que não tenha (como, por exemplo,
Peixoto Júnior ou eu mesmo) herculizado o trabalho em termos de rima e
até de acróstico no décimo-quinto. Fica, contudo, o registro da façanha
e de outras proezas do guerreiro nessa Cruzada Verbal (ou palavra
cruzada) que é a arte de sonetar:
COROA DE SONETOS I Sem o verbo divino, fácil, mas sem o perigo de eternos enganos construiremos um mundo substituto, sem guerra certa e antes com certa paz. Não haverá palavras (dispensadas) nem flexibilidades a dois gumes, para que não se desamarre o todo, um todo à base de pequenos nadas; havendo luar não se acenderão luzes, de resto fracas. E o sol, mesmo quando crepuscular, nunca será tão rubro. Pleno equinócio. Eventuais relógios e calendários dirão coisas vagas num tempo dúplice de abril e outubro. II Num tempo dúplice de abril e outubro com simultâneas florações e safras perfumando alamedas, surpreendido quanto menos indago mais descubro: por exemplo descubro, minha amiga, que nunca é tarde ou cedo para amar (esta simples mas alta descoberta não me acarreta a mínima fadiga). Misturam-se as idades quando chega essa estação de fogo bem marcada que a cadência dos sangues acelera; a madrugada se abre em patamares sob as janelas de incendiados vidros força é gozar o outono e a primavera! III Força é gozar o outono e a primavera, pousando em cada flor e em cada fruto o olhar (seja porém o olhar tranqüilo de quem crê no milagre enquanto o espera): servir ao paladar o que ele escolha, mas não colher à toa o que lhe seja infenso o gosto humano não é a lei que faz brotar do caule espinho ou folha. Melhor que despaisar as flores é deixá-las pelos ramos derramadas como cristais de antigos arrebóis. Com fruto e flor de carne e de palavra o amor será mais um desses prodígios presentes nas romãs, nos girassóis. IV Presentes nas romãs, nos girassóis, as forças de equinócios conjugados subjugam-nos também, nos conduzindo a arroubos de suicidas e de heróis: o alto heroísmo é viver mortes de amor e ressurgir como quem plantou árvores com fagulhas de chão ainda nas unhas e o corpo ainda meio úmido de suor. Celebrar o propósito das ilhas não por acaso emersas; consumir-se nas praias quando o mar, doce, recua; salvar o amor e salvos pelo amor galgar a noite, asa a asa com morcegos dispostos a radarear a lua. V Dispostos a radarear a lua, contingentes de amor abrem os olhos vadeando inconsúteis firmamentos sempre na direção de cada rua. Há bólidos, em vez, e alarmas falsos que súbito aparelham (para logo desarmar sem penúltimo comando) a artilharia lépida dos braços; há nuvens, ainda mais, o que ainda mais esconde camuflados objetivos e a chusma de pupilas cedo adquire o dom de inventar paisagens não-terrenas cujas constelações baixinho acendem os astros mais propícios ao delírio. VI Os astros mais propícios ao delírio não fulguram nos mapas zodiacais: se governam destinos, são destinos volúveis como contas de hidrargírio. Órbitas hiperbólicas extensas (de "geishas" nalgum tempo feitas anjos) percorrem, a assombrar provectos mundos com as mais infantis lendas e crenças. Quando passam por nós tão de repente chegam e somem-se, confiando o rastro, mais do que aos olhos, à imaginação fundem círculos máximos de espanto, e em tal hora brotar na terra apenas flores e frutos raros ousarão. VII Flores e frutos raros ousarão debruçar-se nos ramos circunflexos: são coroas votivas desses templos onde a simples presença é uma oração. Também nós, debruçados e perplexos sobre o amor, sonharemos solução nessas águas nem sempre navegáveis cantando vaus e abismos entre os sexos. Equinócio é prodígio com reis Midas justificando a lenda nos pomares, nos jardins, em tua cabeleira ruça... E esses frutos cairão? As flores? Nós? Vertical aventura, a queda são desequilíbrios de quem se debruça. VIII Desequilíbrios de quem se debruça a ameias de castelos assombrados: sinto o chão à distância e o céu pesando nas costuras de minha carapuça. Talvez as almenaras foram vãs, e os fantasmas guardiães do meu exílio com seus uivos espantem destas pontes os palafréns de ansiadas castelãs; todavia os caminhos tenho limpos e baixadas as portas, num convite à visita impossível e às possíveis. Sei íngreme a subida mas ajudam sempre umas flores, sempre uns vagalumes a colorir faróis sobre os aclives. IX A colorir faróis sobre os aclives que palmilho, pavões empenam leques e com olhos argutos me vigiam enquanto subo aos morros em que vives. Devagar viro as páginas da altura, soletrando paisagens; organizo palavras que prefiro silenciar para manter essa atmosfera pura. Entre pássaro e pedra, Ícaro vou com meu peso de ser e um sonho de asa, sem virtude qualquer que me consagre senão esta porfia de amador desbravando em acasos quase vôos caminhos onde o passo é já um milagre. X Caminhos onde o passo é já um milagre começam neste caravansarai e entornam-se-lhe em torno, como em torno ao selo real umas pontas do lacre. Correio de tarefa consagrada, no alforge trago um roto pergaminho com rasuras de obsoletas mensagens; outras eu mesmo lavro a pó de estrada. Para entregá-las deixo este repouso e em meu camelo singro o sol a pino, com mais canícula em cada quadrante; tenho a sede e o simum por companheiros, e companheira esta crença em oásis dos muitos prometidos ao viajante. XI Dos muitos prometidos ao viajante, há além esse perigo: de ceder à tentação da carga e despagar com ela o prêmio certo mas distante. Que fleugma de guerreiro namorado, à morte e à luta afeito, preferira no bosque a apenas companhia e não (sem o biombo de espada) o amor amado? Anti-Tristão, armado pecador, não a branca vigília quero e sim a conquista em que brando a lança magra; só a batalha me encanta e, à margem dela, as libações na taça conquistada sem a espera que os vinhos avinagra. XII Sem a espera que os vinhos avinagra e faz o pão mais duro do que a fome, celebremos agora antes que seja a hora gorda engulida pela magra. Farto grão há nos silos, e nas urnas o sangue da penúltima vindima sabe a rácimos rubros sapateados por raparigas nunca taciturnas: esse outonal humor primaveril ri na boca dos copos. Vasta, a sede esconde o sonho em si como um remendo. Passageiros convivas, celebremos tantas sedes antigas, descruzadas sem vinagre e sem fel porém, sabendo. XIII Sem vinagre e sem fel, porém sabendo curta a sede, alta a cruz, breves as lanças curto o mal provisório e a improvisadas palafitas de espera as forças rendo. Ensarilho as palavras acres. Trago a saliva, que nos fornos da garganta retempera sentidos vocativos: vem, amor! Sei que vens, suporto a mágoa Como deusa de incertos mitos, para fundar comigo impérios, te aproximas e a loba que cavalgas serve-me o ubre. Luz o céu com rojões de madrugada, véus de templos estalam e além deles a amargura vencida ante-descubro. XIV A amargura vencida ante-descubro no teu corpo sangrado pelo amor, sagrado pelo amor em seus rituais de flama sobre o tálamo e delubro. Teu ser simples e o meu, ardendo a exemplo de hereditárias turibulações, farão nuvens de incenso e tais que os deuses imaginarão ter o céu no templo. Terminando esse drama nos alpendres, onde à força de sonho titereias arco-íris (sem o último anel, rubro) gozarás, Galatéia com surpresa da estátua rediviva em seus princípios o amor florindo em nós abril e outubro. XV Num tempo dúplice de abril e outubro força é gozar o outono e a primavera (presentes nas romãs nos girassóis dispostos a radarear a lua, os astros mais propícios ao delírio). Flores e frutos raros ousarão desequilíbrios de quem se debruça, a colorir faróis sobre os aclives caminhos onde o passo é já um milagre dos muitos prometidos ao viajante, sem a espera que os vinhos avinagra. Sem vinagre e sem fel, porém sabendo à amargura vencida, ante-descubro o amor florindo em nós abril e outubro. Outros sonetos de Geir Campos: SONETO FABRIL Parques, sim, mas parques industriais: neles é que passeia o nosso amor em bairros pouco residenciais onde ronrona a máquina a vapor. Das chaminés das fábricas saem mais nuvens (claras, escuras) de vapor e de fumaça, com a cor das quais o azul do céu muda-se noutra cor. Pairando entre esse céu assim mudado e a terra onde prossegue a mesma a vida com seu esquema aceito mas errado retém-se o nosso olhar em bagatelas que de pequenas coisas é tecida a glória de viver e achá-las belas. SONETO DE PEQUIM Cidade com milênios de abandono fixa o presente acima do passado, o olhar oblíquo vagamente inchado de quem teve mau sonho em vez de sono. Houve reis, mandarins... Agora o dono de tudo é todo o povo despertado que o seu trabalho enfim tem compensado como quem troca o inverno pelo outono. Os velhos bairros curvam-se em contraste junto aos quarteirões novos que o guindaste vai empinando além do antigo muro. Não há pressa de máquina ou de gente: quem mais corre é talvez o mais paciente a contar com o presente do futuro. INVENTÁRIO Esta epiderme há muitos muitos anos me cobre: guarda algumas cicatrizes, outras não lembra mais, e até mistura uns carinhos da infância a outros de agora. As unhas não direi que são as mesmas com que o seio nutriz terei vincado: são mais duras, mais feias e mais sujas pois nem sempre de amor e entrega foi o chão em que plantei, colhi nem sempre. Se os dentes não gastei, gastei meus olhos entrevendo paisagens, vendo coisas, cegando-me ante sésamos de sombra. A alma apanhou demais e vai pejada, mas vão leves as mãos cheias de nada. FILISTEU Quando a noite põe cobro ao alvoroço voltas sempre a contar na solidão como um cachorro volta a roer seu osso sem cogitar se tem mais carne ou não. Teus dentes gastos no repasto insosso tentam brilhar, tentam sorrir em vão: chegaste a velho, sem passar por moço, torneando em ouro as chaves da prisão. Por trás dos óculos de vidro grosso teus olhos piscam a qualquer visão mais generosa que a do céu de um poço. Se a vida te oferece um fruto são cospes a polpa e amealhas o caroço, rico de raiva da árvore e do chão. ENQUANTO O ESTRÔNCIO CAI Estranho é estarmos todos sossegados o mineral, a planta, o bicho, o homem: brincam boatos no ar, mas logo somem sem mutação nos fatos só nos fados. Diz-que no empíreo os numes aterrados, sem atinar qual providência tomem, em sobre-humana angústia se consomem rolando o azar em seu copo de dados. Enquanto isso, espantosos cogumelos giganteiam nas nuvens e tão belos que homem nem deus nenhum pensa impedi-los; só na chuva é que vêm frias do alto as cinzas do hidrogênio e do cobalto sobre nós tão alheios e tranqüilos. ESPERA De infinitas esperas confinadas em angras de iminência, torço os fios e vou tecendo para o meu navio bujarronas de auroras almejadas, contando o tempo de vê-las içadas aos mastaréus de proa mais esguios, ao vento panejando o desafio de quem soubera tudo por um nada trocar, quando de nada fora a vez e de palavra ancorada na voz, para não ir com afoitezas vãs por mais brilhantes, mais fáceis talvez turbando as águas em coalhos de nós contra a navegação dos amanhãs. ESCALADA Sinto que te horroriza o tom vermelho do sangue em minhas veias a pulsar, e tudo fazes para o descorar noutro que fora como o teu no espelho. Já por te conhecer, o teu conselho eu não aceito e entramos a lutar por nonadas de tempo e de lugar, quebrando magnitudes no joelho. Sem força ou argumento que te acalme, lanças teu ódio a mim feito napalm a encher de cinza uma escalada vã: imperturbado com teu desvario, retempero ao teu fogo um sangue-frio de guerrilheiro do Vietnã. ANISTIA Tantos lustros depois de tantos feios eventos, volto a perlustrar as francas paisagens a que afiz os meus passeios num tempo sem arbítrios e sem trancas, mas de várzeas macias que nem ancas e outeiros caroáveis que nem seios e oásis penteando areias brancas e olhos d'água a servir cântaros cheios. Limpos de culpa, os céus não choram mais e é música de arcanjos que se faz a cada novo som de pé na estrada: revivo itinerários da lembrança como aos braços da mãe torna a criança e o homem torna aos da mulher amada. ANUNCIAÇÃO De pássaros cadentes como estrelas a amplidão de repente se povoa e cada qual é uma notícia boa da madrugada que vem vindo pelas quebradas cordilheiras de uma espera tanto procrastinada quão doída entre pedaços de espelhos da vida onde já a hora clara reverbera; e são asas mais asas convidando a crer nelas e a ir com elas quando ruflam assim tão rente ao nosso rosto, e ponto algum é perto ou longe, e há só por horizonte uma nuvem de pó que o sol espana ao retomar seu posto. UTOPIA Abro meus olhos vagamente e vaga mais do que meu olhar meu pensamento num mapa que se acende e que se apaga nas dobras dos palimpsestos do vento parado ou disparado desdobrando em cavaletes de ar à minha frente paisagens de não sei onde nem quando entre a ilha que sou e o continente de uma fraternidade que procuro e que sinto esboçar-se em minha espera de alguma espécie nova de futuro com os homens irmãos e companheiros além do pão repartindo a quimera que os últimos põem junto dos primeiros.
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |