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Paulo Mendes Campos (Belo Horizonte MG 1922-1991)
Popularizou-se como cronista naquela geração de mineiros radicados no
Rio, que um menos avisado suporia fossem apenas cronistas mas que foram
também ficcionistas e ensaístas de primeira. No caso de Paulo, também
poeta e, no caso específico do soneto, quase que um soneto de vanguarda
embora, historicamente, estivesse filiado à Geração de 45. Se chamei
Marcus Accioly de "rei da caixa baixa" pela ausência de maiúsculas, devo
chamar Paulo de "rei da caixa alta" ou mais que isso: "rei da bagunça
estrófica", lembrando que, apesar de tudo, o poeta mantém o vínculo com
o decassílabo heróico e salva a pátria da barbárie total. Louvado seja
DEUS, ou, como diria meu computador falante, "caps lock ligado"...
NESTE SONETO Neste soneto, meu amor, eu digo, Um pouco à moda de Tomás Gonzaga, Que muita coisa bela o verso indaga Mas poucos belos versos eu consigo. Igual à fonte escassa no deserto, Minha emoção é muita, a forma, pouca. Se o verso errado sempre vem-me à boca, Só no meu peito vive o verso certo. Ouço uma voz soprar à frase dura Umas palavras brandas, entretanto, Não sei caber as falas de meu canto Dentro da forma fácil e segura. E louvo aqui aqueles grandes mestres Das emoções do céu e das terrestres. TEMPO-ETERNIDADE O instante é tudo para mim que ausente Do segredo que os dias encadeia Me abismo na canção que pastoreia As íntimas nuvens do presente. Pobre do tempo, fico transparente A luz desta canção que me rodeia Como se a carne se fizesse alheia À nossa opacidade descontente. Nos meus olhos o tempo é uma cegueira E a minha eternidade uma bandeira Aberta em céu azul de solidões. Sem margens, sem destino, sem história, O tempo que se esvai é minha glória E o susto de minh'alma sem razões. SONETO DE PAZ Cismando, o campo em flor, eu vi que a terra Pode ser outra terra, de outra gente, Para o prazer armada e competente E desarmada para a voz da guerra. No chão, olhando o céu que nos desterra, Sem terminar falei, presente, ausente, Ó vento desatado da vertente, Ó doce laranjal sem fim da serra! Mais tarde me esqueci, mas esse instante De muito antiga perfeição campestre Fez-me constante um pensamento errante: Era o sem tempo, a paz da eternidade Unindo a luz celeste à luz terrestre Sem solução de amor e de unidade. AMOR CONDUSSE NOI AD UNA Quando o olhar adivinhando a vida Prende-se a outro olhar de criatura O espaço se converte na moldura O tempo incide incerto sem medida As mãos que se procuram ficam presas Os dedos estreitados lembram garras Da ave de rapina quando agarra A carne de outras aves indefesas A pele encontra a pele e se arrepia Oprime o peito o peito que estremece O rosto a outro rosto desafia A carne entrando a carne se consome Suspira o corpo todo e desfalece E triste volta a si com sede e fome. O VISIONÁRIO Debaixo dos lençóis, a carne unida, Outro alarme mais forte nos separa. Vai ficar grande e feia a mesma cara Com que surgimos cegos para a vida. Vemos o que não vemos. Quando, erguida A parede invisível, o olhar pára De olhar, abre-se além uma seara Muito real porém desconhecida. São dois mundos. Um deles não tem jeito: Cheio de gente, é só como o deserto, Duro e real, parece imaginário. Também dois corações temos no peito Mas não sei se o que bate triste e certo Vai reunir-se além ao visionário. REI DA ILHA No fim da rua, um pônei rubro, rubro, No fim da tarde, um muro escuro, um muro. Descubro alguma coisa mais? Descubro: Um coração impuro, tão impuro. Querer guardar este sinal (querer) De que minh'alma não morreu? Morreu. Ser ou não ser como esta tarde (ser) Que apareceu e desapareceu? Ser como a tarde que voltou, voltou Além de meus enganos, muito além... Eu vou por um país, por onde eu vou, Onde existe uma ilha, a minha ilha. Ali não há ninguém. Ninguém? Alguém Regressará por mim, ó minha filha. CANTIGA PARA TOM JOBIM Quem for além simplesmente deste espelho transparente há de sumir? ou se ver? relembrar? ou esquecer? Quem for além simplesmente deste espelho transparente há de sentir? ou sonhar? prosseguir? ou regressar? Mas quem achar uma seta que lhe apontar o sentido neste espelho, há de se achar no paraíso, perdido, onde achará o poeta, de repente ou devagar. EPITÁFIO Se a treva fui, por pouco fui feliz. Se acorrentou-me o corpo, eu o quis. Se Deus foi a doença, fui a saúde. Se Deus foi o meu bem, fiz o que pude. Se a luz era visível, me enganei. Se eu era o só, o só então amei. Se Deus era a mudez, ouvi alguém. Se o tempo era o meu fim, fui muito além. Se Deus era de pedra, em vão sofri. Se o bem foi nada, o mal foi um momento. Se fui sem ir nem ser, fiquei aqui. Para que me reflitas e me fites estas turvas pupilas de cimento: se devo a vida à morte, estamos quites. "FOGÃO: DOLORES" DOLORES ERA O NOME DE DOLORES. CHAGAS VIVAS DE CRISTO SUAS DORES. TAL QUAL NO SEU ALTAR FOI ABRAÃO. SOBRE O FOGO ESTENDIA O CORAÇÃO. EU LIA-LHE LOBATO TODO DIA. ESCURA COM OS ÓLEOS DE MARIA. O SEU PERNIL DO CÉU ERA UM PERNIL. COMO SÃO JOÃO DA CRUZ SANTO E SUTIL. DOLORES DE VELUDO ERA DOLORES. CHICOTADAS DE CRISTO SEUS AMORES. SEU ESPAÇO NO MUNDO FOI BEM GRANDE. E AQUELA PAZ DE BRAQUE OU DE MORANDI. MENINICE DE CRISTO SUAS FLORES. DOLORES ERA A GRAÇA DE DOLORES. "SALA DE JANTAR" FALTAVA UM TEMA A NOSSA COMPANHIA, FALTAVA A NOSSA MESA CERTO ESPAÇO: O MAR EM NOSSA CASA NÃO BRAMIA, MAR DE GRAVURA DÁ CERTO EMBARAÇO. A CHUVA DE REPENTE ERA ALEGRIA, À FALTA DE AMPLIDÃO PARA O FRACASSO: A SERRA DO CURRAL NOS ELIDIA, O MAR DAS ELEGIAS TRAZ CANSAÇO. O MAR A NOSSA GENTE NÃO CURTIA, SÓ O CÉU NOS ABRIA SEU COMPASSO: SÓ O DENTE DO SAL NOS CONHECIA, SÓ NO PRATO DE SOPA ERA O SARGAÇO. SÓ NO PIANO UM BRIGUE ESTREMECIA, SÓ NA VAGA DO VENTO NOSSO ABRAÇO. "PORÃO" DESLAÇANDO AS MEADAS DESTE VÉU, ENCONTRO OS OUTROS ONDE ESPERO O SÓ ENQUANTO VOU CAINDO PARA O CÉU. NO REVERSO DO MUNDO EM PROPAGANDA, UM DOCE DESCOMPASSO DE CIRANDA TRAZ A MIM, SOMBRA EM FLOR, A MINHA AVÓ. MENINO-SOL REINANDO NO PORÃO, AQUI ANDEI SEM MEDO E SEM DEGREDO, BRINCANDO DE BUSCAR O MEU BRINQUEDO AONDE SÓ SE VÊ ESCURIDÃO. A ODISSÉIA DO PORÃO COSTURA A LUZ DO SOL ÀQUELA LUZ ESCURA QUE VAI ABRINDO OS OLHOS DA CRIANÇA. NO SUBSOLO TAMBÉM HÁ ESPERANÇA. "ESCRITÓRIO: ACHANDO ELEGIA" DAQUI RESTA DE MIM O REPERTÓRIO DAS MÁSCARAS, UM DRAMA DE VIVÊNCIAS, FUGAS, SUBLIMAÇÕES, AMBIVALÊNCIAS, MARES, TEATROS, FAIAS, DE ESCRITÓRIO. MENINO, AQUI, NUMA SEMANA SANTA, CURVO E SEM RUMO, A REVOAR, ACHEI O JARDIM SEPULCRAL DE THOMAS GRAY: QUE, DESDE CEDO, AQUELE QUE SE ESPANTA, SOZINHO, EM FESTA, MONTA A SUA VIDA NAS PEÇAS DE CORDEL DO CLAUSTRO HUMANO, PARA SEGUIR ALÉM DE SEU ENGANO, E DESTE LABIRINTO ACHAR SAÍDA. NAS TRAMAS DO ABAJUR, ARTE POÉTICA, A VIDA TEM DE SER A LUZ HERMÉTICA. "SOLITUDE BLEUE": CONVERSA FIADA NO JARDIM A BUGANVÍLIA BRINQUE SUTILIZA UM EROS SONOLENTO E SEM NARIZ. PODE UM DEUS ALEIJADO SER FELIZ? QUANDO TE RIS EM FLOR, SE RI A BRISA. QUE FAZ UM ESPANTALHO CONTROVERSO NESTE JARDIM MADURO? PROSA. VERSO. MEU MAL DE MALLARMÉ FOI EM PARIS: A SOLIDÃO AZUL NÃO ME HORRORIZA. A TARDE, POR UM FIO, NARCOTIZA O AMOR DE TERRACOTA EM VERDE-GRIS. O RELÓGIO DE SOL FOI O MEU ERRO. QUE PASSO INCERTO AMAR ESTE DESTERRO! O SEM-FIM VIM BUSCAR NESTE JARDIM DO QUAL ME CABEM SÓ HORAS DE MIM. "FINIS CORONAT OPUS" ESTE SONETO COMO UM CEGO EM GAZA. ESTE SONETO CHORA DE SE VER. ESTE SONETO CHORA POR QUERER, POR CHORAR, POR DOER, CHORA UMA CASA. ESTE SONETO CHORA PORQUE TRAZ NA SUA SALVA O BEM QUE NOS FAZ MAL. CHORA NO ETERNO A GRAÇA TEMPORAL. SE A CASA SE DESFAZ QUANDO SE FAZ, ESTE SONETO CHORA SEM SENTIDO. TALVEZ CHORE DO ASSOMBRO DE TER SIDO SÓ GLOSA DO REFLEXO DUMA ROSA. ESTE SONETO CHORA POR SER PROSA. PROSA CERZIDA POR UM ARQUITETO QUE JÁ SE DEMOLIU NO SEU PROJETO. "PROJETO" DE PAPEL E NANQUIM É UM BRINQUEDO PERIGOSO, IDEAL, NOSSA MORADA. DAS SUAS DIMENSÕES NOS É VEDADA A QUARTA, QUE, TORCIDA PELO MEDO, DOS PROJETOS HUMANOS FAZ PERGUNTAS. SÃO REENTRANTES ESTAS DUAS PLANTAS: NA PLANTA ALTA VÃO CHORAR INFANTAS, NA PLANTA BAIXA VÃO SORRIR DEFUNTAS. ESTE DIEDRO GEME COMO UM CÃO. MAS DAS ARESTAS MIARÁS À LUA. PARA ABRIR OU FECHAR A TUA RUA, ESTES DOIS RISCOS TRAMAM TEU PORTÃO: REGRESSA HORIZONTAL DAS PARALELAS QUEM VERTICAL, GENTIL, ENTROU POR ELAS. "TANQUE DE ROUPA; SCHERZO" ERA UMA TARDE PASTORIL MINEIRA, ERAM CIRROS E CÚMULOS MENTAIS, ERA O DOLCE STACCATO DA TORNEIRA, VIRAÇÕES DE OFFENBACH PELOS VARAIS, ERAM TRÊMULOS BARROCOS DE ROSEIRA, TRISSOS DE AMOR NAS FRINCHAS DOS BEIRAIS, ERA UMA TARDE ABRIL À BRASILEIRA, ERA UMA TARDE ARDIL MINAS GERAIS. E ERA NA TARDE TARDE REDUNDANTE LONGE VESTÍGIO EM MEIGO PERGAMINHO UM REFLUIR AZUL DE MAR DISTANTE. ERA UMA TARDE ESTÁTICA DE DEUS. MAS A BOCA DA NOITE DE MANSINHO... E A TARDE ANIL RENDEU A ALMA. ADEUS. "JARDIM NOTURNO: SCHERZO" AS BRUXAS CATAM RÃS PELAS BROMÉLIAS. DA NOITE DE VALPÚRGIS CORRE SANGUE. SUGA O VAMPIRO OS SAPOTIS DO MANGUE. TUBERCULOSAS, TOMBAM AS CAMÉLIAS. SEM SABER SE NASCEU OU É O FIM, O GURI GRUDA A ALMA NA VIDRAÇA: EM LUFADAS SONORAS DE DESGRAÇA BEETHOVEN ANDA SOLTO NO JARDIM. ROMPEM DO CHÃO DIABOS A GUINCHAR, ANÕES FELPUDOS MIJAM NA PISCINA. DÁ GRITOS INFELIZ CASUARINA ACORRENTADA ÀS TRANÇAS DO LUAR. DEPOIS (NUM DOCE ANDANTE) O CÉU SE DESINFLAMA. E AÍ BEETHOVEN (BOM MENINO) VAI PRA CAMA. "NOVENA" EM MAIO DE MARIA DAVA À SALA UM HÁLITO DE MURCHAS LABIAIS, UM MARULHAR TARDIO DE SENZALA, UMAS CARCAÇAS PURGATORIAIS, MAGRIÇAS CONVULSIVAS DA CABALA, ENFISEMAS, MANTÉUS IMPERIAIS, UM CORCUNDA GOYESCO DE BENGALA, E CRIANÇAS DE TRANÇAS SEPULCRAIS. AS REZAS CREPITANTES ERAM FESTAS NAS QUAIS JAMAIS DEU FLOR UM MORIBUNDO: IA-SE A MORTE EM BOGARIS QUE O VENTO A TAPAS ENFIAVA PELAS FRESTAS. NAS NOVENAS LATIA DO ALÉM-MUNDO O CÃO QUE ME APARTAVA DO MOMENTO. "MURO, JARDIM, PAI" DEPOIS DO MAL NOTURNO, UM SOL PROFUNDO É A CASA DE MEU PAI NO FIM DO MUNDO. APARECE O PAI, MAS DESAPARECE, E O DOM DE SEU OLHAR NOS AMANHECE. POR ESTA LUZ QUE VAI E NÃO SE ESVAI, PELO JARDIM ESCURO, CLARO, ESCURO, A GLÓRIA DE MEU PAI ENTROU NO MURO. NA GLÓRIA DESTE MURO ESTÁ MEU PAI. EXILADO NA GLÓRIA, O PAI ME ESPIA DA IRA EM QUE SE ACABA A LUZ DO DIA, E A LUZ DE SEU OLHAR, QUANDO ANOITECE, DESAPARECE, MAS REAPARECE. E, APARECENDO E DESAPARECENDO, OS FIOS DESSE OLHAR ME VÃO TECENDO.
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