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Antônio Cícero Correia Lima (Rio de Janeiro RJ 1945)
Intelectual multifacetado, além de filósofo e letrista cultiva o soneto,
esmeradamente (des) composto. Eis uma amostra de sua discreta
licenciosidade e de sua licença da formalidade no gênero, que lhe valem
vaga demarcada no panorama sonetístico atual:
DITA Qualquer poema bom provém do amor narcíseo. Sei bem do que estou falando e os faço eu mesmo, pondo à orelha a flor da pele das palavras, mesmo quando assino os heterônimos famosos: Catulo, Caetano, Safo ou Fernando. Falo por todos. Somos fabulosos por sermos enquanto nos desejando. Beijando o espelho d'água da linguagem, jamais tivemos mesmo outra mensagem, jamais adivinhando se a arte imita a vida ou se a incita ou se é bobagem: desejarmo-nos é a nossa desdita, pedindo-nos demais que seja dita. ONDA Conheci-o no Arpoador: Garoto versátil, gostoso, ladrão, desencaminhador de sonhos, ninfas e rapsodos. Contou-me feitos e mentiras indeslindáveis por demais. Fui todo ouvidos, tatos, vistas e pedras, sóis, desejos, mares. E nos chamamos de bacanas e prometemo-nos a vida: comprei-lhe um picolé de manga e deu-me ele um beijo de língua e mergulhei ali à flor da onda, bêbado de amor. NARCISO Narciso é filho de uma flor aquática e de um rio meândrico. É líquido cristalizado de forma precária e preciosa, trazendo o sigilo da sua origem no semblante vívido conquanto reflexivo. Ousaria defini-lo como aquele em que a vida mesma se retrata. É pois fatídico que, logo ao se encontrar, ele se perca e ao se conhecer também se esqueça, se está na confluência da verdade e da miragem quando as verdes margens da fonte emolduram sua imagem fluida e fugaz de água sobre água cerúlea. TREVO DO MARINHEIRO (a Luciano Figueiredo) Ao manobrar no trevo de concreto ao sol das duas e quinze percebo certas sombras espessas, bem embaixo do viaduto, e nelas alguns laivos de trapos sob o trânsito entrevado. Em torno desse ponto cego e vago percorro minha órbita elítica com rodas de borracha e metafísica, por pistas falsas, longe, além das orlas das cirandas financeiras ou rondas bancárias, longe, entre caracóis de línguas mortas e mundos de pó girando numa coluna de sol que entra no carro enquanto perco a hora. ECO A pele salgada daquele surfista parece doce de leite condensado. Como seu olhar, o mar é narcisista e, na vista de um, o outro é espelhado. E embora, quando ele dança sobre as cristas, goste de atrair olhares extraviados de banhistas distraídos ou artistas, é claro que o mar é seu único amado. Ei-lo molhado em pé na areia: folgado, ao pôr-do-sol tem de um lado a prancha em riste, do outro lado usa uma gata e um brinco e assiste serenamente ao horizonte inflamado e a brisa o alisa e enfim ele não resiste à beleza e diz "sinistro!" e ouve eco ao lado. O PAÍS DAS MARAVILHAS Não se entra no país das maravilhas pois ele fica do lado de fora, não do lado de dentro. Se há saídas que dão nele, estão certamente à orla iridescente do meu pensamento, jamais no centro vago do meu eu. E se me entrego às imagens do espelho ou da água, tendo no fundo o céu, não pensem que me apaixonei por mim. Não: bom é ver-se no espaço diáfano do mundo, coisa entre coisas que há no lume do espelho, fora de si: peixe entre peixes, pássaro entre pássaros, um dia passo inteiro para lá. ALGUNS VERSOS As letras brancas de alguns versos me espreitam em pé, do fundo azul de uma tela atrás da qual luz natural adentra a janela por onde ao levantar quase nada o olhar vejo o sol aberto amarelar as folhas da acácia em alvoroço: Marcelo está para chegar. E de repente, de fora do presente, pareço apenas lembrar disso tudo como de algo que não há de retornar jamais e em lágrimas exulto de sentir falta justamente da tarde que me banha e escorre rumo ao mar sem margens de cujo fundo veio para ser mundo e se acendeu feito um fósforo, e é tarde. ESSE AMANTE Não é exatamente que esse amante pretenda confundir-se com a amada; o que acontece é que, no mesmo instante em que, lúcido e lúbrico, prepara, com circunspecto engenho e arte, a entrega da mulher, ele saboreia o gesto, gemido ou tremor que observa, e interpreta cada sinal de volúpia nos termos da sua própria carne. Discernir-se dela, ao olhá-la, e achá-la em si são lados reversos da mesma moeda. Ei-lo que, com o fim de seus anseios nos seios das suas mãos, vê-se compenetrado e entregue a um gozo que quiçá se finge. VITRINE Que divisa o olhar desse moreno? Namora os tênis atrás da vitrine? Ou a vidraça que os devassa e inibe os seus reflexos serve-lhe de espelho e ele recai na imagem de si mesmo, igualmente visível e intangível? É assim tantálica que ela me atinge obliquamente e ao mesmo tempo em cheio e mesmeriza, e sinto meio como se eu o despisse e ele mal percebesse. Quando olha para trás um instante, atino sonhar e, salvo engano, ter nos olhos cacos de um campo de futebol verde feito o pano das mesas dos cassinos. DECLARAÇÃO Quantas vezes lhe declarei o meu amor? Declarei-o verbalmente inúmeras vezes e o declaram todos os meus gestos tendentes a você: a minha língua, a brincar com o som do seu nome, Marcelo, o declara; e o declaram os meus olhos felizes quando o vêem chegar feito um presente e de repente elucidar a casa inteira que, conquanto iluminada, permanecia opaca sem você; e quando, tendo apagado todas as lâmpadas, juntos, no terraço, nos consignamos aos traslados dos círculos do relógio do céu noturno ou aos rios de nuvens em que nos miramos e nos perderemos, declaro-o no escuro.
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