|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Raimundo da Mota Azevedo Correia (Baía de Mogúncia MA 1859-1911)

Se Bilac é o maior nome do parnasianismo, Correia tem, em compensação, os sonetos mais populares, como "As pombas" ou "Mal secreto":


AS POMBAS

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...


MAL SECRETO

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!


O primeiro soneto acima foi comentado por mim (juntamente com uma das
obras-primas de Bilac) no exemplo abaixo:


SONETO 80 PARNASIANO

As pombas lá se foram, espantadas
por um tropel de vândalos do verso;
E mesmo esse escarcéu quedou disperso
depois de tantas décadas passadas.

Parnaso pareceu conto de fadas...
O tempo, inexorável e perverso,
expôs toda a pieguice do universo
de estrelas, vias lácteas e jornadas.

Sobrou "Inania verba", um monumento
ao mourejar hercúleo do poeta.
Por tê-lo escrito, só, já me contento!

Mas não é meu. Prossigo nesta meta
de, aos poucos, completar meu próprio cento...
Versando sobre o pé, poso de esteta.


Glauco Mattoso Antes de mim, várias paródias glosaram aqueles sonetos imortais, como nos exemplos abaixo: OS VOTOS [Ângelo Bitu (*)] Vai-se a primeira votação passada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas De votos vão-se da Assembléia, apenas A sessão começou da bordoada! Sopra sobre Ele a rígida nortada... Que saudades das épocas serenas Em que Ele e os outros, aparando as penas, Tinham apurações de cambulhada! O seu bom-senso todos apregoam... Afastando-se d'Ele, os votos voam, Como voam as pombas dos pombais... As esperanças o seu vôo soltam... E Ele vê que aos pombais as pombas voltam, Mas esses votos não lhe voltam mais! AS POMBIGNA [Juó Bananére, P'ru aviadore chi pigó o tombo] Vai a primiéra pombigna dispertada, I maise otra vai disposa da primiéra; I otra maise, i maise otra, i assi dista maniera Vai s'imbora tutta pombarada. Pássano fóra o dí i a tardi intêra, Catáno as furmiguigna ingoppa a strada; Ma quano vê a notte indisgraziada, Vorta tuttos in bandos, in filêra. Assi tambê o Cícero avua, Sobi nu spaço, molto alê da lua, Fica piqueno uguali d'un sabiá. Ma tuttos dia avua, allegre, os pombo!... Inveis chi o Muque, desdi aquílio tombo, Nunga maise quis sabê di avuá. A REVOADA [Lisindo Coppoli] O primeiro ministro lá vai indo; Outro o segue, outro mais, enfim o bando Inteiro solta as asas azulando, Antes que a demissão os vá impelindo. Também as pombas do soneto lindo, Na rósea madrugada, vão deixando O ninho amigo, ao qual irão voltando, Ansiosas, quando a tarde for caindo. Mas aqui não há pombas nem pombais: Há ministros que partem em surdina, Certos de não voltarem nunca mais. Deixam o ministério sem alarde; E o povo que lhes deve a triste sina, Olhando o vôo, suspira: — Já vão tarde! AS MINHAS NOTAS [Zé Fidélis] Bai-se a primãira pomba dispertada, I, após iéla, oitra, mais oitra i oitra mais! Aimfim, uma purçãon bai indo aim buarada, Nunca bi uma squadrilha aim prupurções tais! Lá bão iélas! Pra longe, pra bãim longe até! Talbêz quêir na farra, num pumbal distante, Vrincare, guzare a bida qui bãim curta ié! I pra bultare nãon prucisam di sistãite... Tambãim, como as tais pombas du Reimundo, Sai u dinhãiro buando du meu volso fundo. Cada notinha linda, cada p'lega nóba! Mas as pombas boltam logo qu'anoitece, Que ficare nu sireno não lhis ap'tece E as minhas notas, essas... boltam uma óba!... MAL DISCRETO [Bastos Tigre] Se a prontidão, a pinda, a quebradeira E os vários males desta mesma classe, Tudo o que punge a tísica algibeira, Sobre o rosto do "pronto" se estampasse; Se se pudesse a crise financeira Ler "através da máscara da face", Quanta gente, talvez, que da primeira Fila, então, para a última passasse... Quanta gente nós vemos, quanta gente, Cuja gravata, cautelosamente, Uma camisa enxovalhada esconde!... Quanto moço elegante e perfumado Que anda, imponente, de automóvel... fiado, Porque lhe faltam níqueis para o bonde! MAL SICRETO [Furnandes Albaralhão] S'a cólera que põe danada a gente, Distrói a paz da bida disijada, Tudo o que nos vilisca intiriormente Suvisse à nossa cara, qu'istupada!... Si si pudesse, a ialma padicente, Bêre pur trás de muita guergalhada, Canta gente a se rire vestamente, Que era muito milhóre estar calada! Canta gente só ri pra disfarçare Um turco à porta que lhe bem cuvrare A quemisa, a ciloira, a maia, u cinto... Cantos há nesse mundo a três por dois, Que tendo à janta só cumido arroz, Arrotam p'ru, laitão e binho tinto! SUNETTO FUTURÍSSIMO [Juó Bananére] Si a gólere lhe spuma come vigno Tenia gaido inzima da gabeza du Hermeze Fonseca Uguali come a garnesega Na boca do mio gaxorigno; Si també na gabeza du Pinhêro Tenia gaido un furacó... Evvivo o Piedadó Chi non tê dinhêro! Quanta gente che ri, tarveiz ti scriva Non iva Dizê p'ro Hermeze come o Lencaro; Xirósa griatura! Bunita gavargatura!! O gapino stá molto caro. Se Correia foi muito parodiado, é porque deu motivo e mereceu, mas também ele achou motivo para usar humoristicamente o soneto, como exemplifico no verbete sobre O SONETO SATÍRICO. Mas em se tratando de outro tipo de gozo, julgo interessante notar certo fetichismo podólatra em Correia; observo porém que, ao contrário de Delfino (cuja podolatria tinha em Helena pés reais, em ambos os sentidos), as musas do maranhense são figuras imaginárias e artificiais, como nestes exemplos: CONCHITA Adeus aos filtros da mulher bonita; A esse rosto espanhol, pulcro e moreno; Ao pé que no bolero... ao pé pequeno, Pé que, alígero e célere, saltita... Lira do amor, que o amor não mais excita, A um silêncio de morte eu te condeno; Despede-te; e um adeus, no último treno, Soluça às graças da gentil Conchita: A esses, que em ondas se levantam, seios Do mais cheiroso jambo; a esses quebrados Olhos meridionais de ardência cheios; A esses lábios, enfim, de nácar vivo, Virgens dos lábios de outrem, mas corados Pelos beijos de um sol quente e lascivo. PRIMAVERIL Despertou; e ei-la já, fresca e rosada, Na várzea em flor, que se atavia e touca Da primavera ao bafo, e onde é já pouca A neve, ao sol fundida e descoalhada... E em sua trêmula, infantil risada, A boca abrindo, patenteia, a louca, Rico escrínio de pérolas da boca. Na pequenina concha nacarada... Voa, as papoilas esflorando e as rosas... Passa entre os jasmineiros que se agitam, Às vezes célere e pausada às vezes... E, sob as finas roupas vaporosas, Seus leves pés, precípites, saltitam, Pequenos, microscópicos, chineses... LUBRICUS ANGUIS Quando a Mulher perdeu a deleitosa Paz e os jardins da habitação primeva, Chata a cabeça inda não tinha a seva Serpente que a seus pés silva raivosa; Mas a língua trissulca que na treva Falaz vibra, é a mesma venenosa Língua que à luz puríssima e radiosa Do Paraíso, outrora, enganou Eva... Bendita a planta da Mulher, que a esmaga! Bendita! A este vil monstro, de ora avante, Ninguém mais sobre a terra desconheça! E ele a marca indelével sempre traga Do rijo calcanhar firme e possante, Que lhe achatou, impávido, a cabeça! CHUVA E SOL Agrada à visita e à fantasia agrada Ver-te, através do prisma de diamantes Da chuva, assim ferida e atravessada Do sol pelos venábulos radiantes... Vais e molhas-te, embora os pés levantes: — Par de pombos, que a ponta delicada Dos bicos metem n'água e, doidejantes, Bebem nos regos cheios das calçadas... Vais, e, apesar do guarda-chuva aberto, Borrifando-te, colmam-te as goteiras De pérolas o manto mal coberto; E estrelas mil cravejam-te, fagueiras, Estrelas falsas, mas que, assim de perto, Rutilam tanto, como as verdadeiras... Outros sonetos de Raimundo Correia: A CHEGADA Vimos de longe; o guia vai na frente; É longa a estrada... Aos ríspidos estalos Do impaciente látego, os cavalos Correm veloz, larga e fogosamente... Já estranho rubor inflama o Oriente; Rompe a manhã; cantam ao longe os galos... Que ledo campo entre risonhos valos Se vê! que fresco matinal se sente! Eis de uma ponte rústica a passagem; Embaixo as águas refervendo bramam... Está próximo o termo da viagem — Eis a cidade enfim; os sinos clamam, E as casas brancas — que feliz paisagem! — Pelo pendor da serra se derramam... EVITERNO AMOR Essa história do amor, que a uma só vida Bilhões extrai, prolífico e fogoso, Essa — ó gênero humano desditoso! — Enche o tempo, enche o espaço, indefinida... Adão, o arrependido, e a arrependida Eva, ei-los avexados, ante o iroso, Bíblico Deus, severo e rigoroso, De quem toda essa história é já sabida. E ele, que em beijos e ais no Éden surpreende O ágil mancebo e a adolescente linda, Sobre ambos vingadora a dextra estende. Arrependem-se? Embora! O amor não finda, Pois o par amoroso se arrepende De ter amado, mas... amando ainda! PASSEIO MATINAL Desperta e vem! O vento burburinha Pelos coqueiros trêmulos; dardeja O sol; e a luz sadia a alma deseja Bebê-la aos goles... Ergue-te e caminha... Minh'alma os teus anelos acarinha, E unida à tua, junto dela adeja... Mas tão unida, que eu não sei qual seja, Qual seja a tua, nem qual seja a minha... Rasga o cofre dos risos, como a aurora; E ambos vamos, assim, rindo e cantando, Cantando e rindo, pelo bosque a fora... E aí, das aves o medroso bando Nos ninhos a espantar, vamos agora, Como aves de outro gênero, enxotando... BEIJOS DO CÉU Sonhei-te assim, ó minha amante, um dia: — Vi-te no céu; e, enamoradamente, De beijos, a falange resplendente Dos serafins, teu corpo inteiro ungia... Santos e anjos beijavam-te... Eu bem via! Beijavam todos o teu lábio ardente; E, beijando-te, o próprio Onipotente, O próprio Deus nos braços te cingia! Nisto, o ciúme — fera que eu não domo — Despertou-me do sonho, repentino... Vi-te a dormir tão plácida a meu lado... E beijei-te também, beijei-te... e, ai! como Achei doce o teu lábio purpurino, Tantas vezes assim no céu beijado! A UMA CANTORA Cantavas. Sobre mim, frecha ligeira Passou zumbindo no ar... Amor, que estava Junto a ti, contra um'alma, dele escrava, Despedira-a com mão pouco certeira. Mas vendo assim baldada essa primeira Frecha, outra arranca da luzente aljava; Vibra-a; e esta, enfim, aguda se me crava N'alma... Arranca depois uma terceira... E eu clamo: "Estou ferido! Estou ferido; Suspende, Amor!" O amor não nos faz brecha Só pelos olhos, minha doce amada; Pelos olhos não foi; foi pelo ouvido, Foi pelo ouvido que me entrou a frecha: Sinto inda nele a dor dessa frechada. PLENA NUDEZ Eu amo os gregos tipos de escultura; Pagãs nuas no mármore entalhadas; Não essas produções que a estufa escura Das modas cria, tortas e enfezadas. Quero em pleno esplendor, viço e frescura Os corpos nus; as linhas onduladas Livres; da carne exuberante e pura Todas as saliências destacadas... Não quero, a Vênus opulenta e bela De luxuriantes formas, entrevê-la Da transparente túnica através: Quero vê-la, sem pejo, sem receios, Os braços nus, o dorso nu, os seios Nus... toda nua, da cabeça aos pés! TRISTEZA DE MOMO Pela primeira vez, ímpias risadas Susta em prantos o deus da zombaria; Chora, e vingam-se dele, nesse dia, Os silvanos e as ninfas ultrajadas; Trovejam bocas mil escancaradas, Rindo; arrombam-se os diques da alegria; E estoira descomposta vozeria Por toda a selva, e apupos e pedradas... Fauno o indigita; a Náiade o caçoa; Sátiros vis, da mais indigna laia, Zombam. Não há quem dele se condoa! E Eco propaga a formidável vaia, Que além, por fundos boqueirões reboa E, como um largo mar, rola e se espraia... DESDÉNS Realçam no marfim da ventarola As tuas unhas de coral — felinas Garras com que, a sorrir, tu me assassinas, Bela e feroz... O sândalo se evola; O ar cheiroso em redor se desenrola; Pulsam os seios, arfam as narinas... Sobre o espaldar de seda o torso inclinas Numa indolência mórbida, espanhola... Como eu sou infeliz! Como é sangrenta Essa mão impiedosa que me arranca A vida aos poucos, nesta morte lenta! Essa mão de fidalga, fina e branca; Essa mão, que me atrai e me afugenta, Que eu afago, que eu beijo, e que me espanca! A AVE-MARIA Ave-Maria! Enquanto nas campinas As "boas-noites" abrem, misteriosas Bocas exalam no ar frases divinas, Como suave emanação as rosas... Ó noivas do infortúnio lacrimosas, Crianças loiras, mórbidas meninas, Órfãs de lar e beijos, que, piedosas, Ergueis ao céu as magras mãos franzinas! Quando rezais, às horas do sol posto, A ave-maria assim, no azul parece Sorri-se a Virgem-Mãe aos desvalidos; Nossa Senhora inclina um pouco o rosto Para escutar melhor tão meiga prece, Hino tão doce e grato aos seus ouvidos. ANOITECER Esbraseia o Ocidente na agonia O sol... Aves em bandos destacados, Por céus de oiro e de púrpura raiados, Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia... Delineiam-se, além, da serrania Os vértices de chama aureolados, E em tudo, em torno, esbatem derramados Uns tons suaves de melancolia... Um mundo de vapores no ar flutua... Como uma informe nódoa, avulta e cresce A sombra à proporção que a luz recua... A natureza apática esmaece... Pouco a pouco, entre as árvores, a lua Surge trêmula, trêmula... Anoitece. SOZINHA É tarde, e eles não vêm! O dia finda, E, extinto archote, tomba o sol... À estrada Lança os olhos, ansiosa, e não vê nada! Recolhe-se à cabana, e espera ainda... Cerra-se a noite em toda a curva infinda Dos céus... E eles não voltam da caçada! E ela tão só!... Já pende fatigada, Cheia de sono, a sua fronte linda. Dorme. Alta noite acorda. Os cães latiam Fora, e julgou ouvir, confusamente, Como um tropel, na solitária rua... Antojou-se-lhe logo que seriam Eles, e a porta abriu... Ninguém! Somente, Por trás da serra, ia-se erguendo a lua... A CAVALGADA A lua banha a solitária estrada... Silêncio!... Mas além, confuso e brando, O som longínquo vem-se aproximando Do galopar de estranha cavalgada. São fidalgos que voltam da caçada; Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando. E as trompas a soar vão agitando O remanso da noite embalsamada... E o bosque estala, move-se, estremece... Da cavalgada o estrépito que aumenta Perde-se após no centro da montanha... E o silêncio outra vez soturno desce... E límpida, sem mácula, alvacenta A lua a estrada solitária banha... FASCINAÇÃO Todo o teu ser contemplo agora; e é quando, Só para o contemplar até prescindo Do meu; e enquanto o meu se vai sumindo, Vai o teu aos meus olhos avultando... Assim quem vai o píncaro galgando De uma alta serra, do horizonte infindo, Nota que, à proporção que vai subindo, Se vai em torno o círculo ampliando... E, ínfimo em face da amplidão tão grande, Fosco, a pupila com pavor expande... Abaixo mares vê, selvas, cidades, Montanhas... E até onde o olhar atinge, À imensidade esplêndida que o cinge, Vê ligarem-se mais imensidades... TENTAÇÕES DO ERMO O asceta que trocara os bens mundanos Pelo místico pão amargurado, Deixa agora o retiro, onde, isolado, Ia, na paz de Deus, contando os anos?! É que ele, quando aos laços e aos enganos Do mundo se esquivou, tinha um pecado: Em Virgílio e em Catulo era versado, Em Ovídio e outros clássicos profanos... E um dia, indo apanhar ervas ao monte, E o púcaro de barro encher na fonte, Viu... (Ou seria uma ilusão talvez) Viu surgir entre as moitas a Serpente: Uma ninfa... e vestida unicamente Da tentadora, feminil nudez. MADRIGAL O loiro Júlio um passarinho caça, E a doce Estela vem-lhe ao pensamento: "Vou dá-lo à Estela, diz com brando acento, À Estela cheia de candura e graça". Põe-no sob o chapéu (que em tal momento Lhe falta uma gaiola), e, enquanto passa A catar algum vime com que faça A gaiola, estas frases solta ao vento: "Em paga disso um beijo, um só me dares, É pouco: mais de dez, mimosa Estela, Te hão de roubar meus sôfregos desejos..." Mas o vento o chapéu lhe arroja aos ares: A ave, liberta assim, voa... e com ela Lá se foram também todos os beijos... NA PONTA DE UMA FLECHA O deus loiro, rosado e nu, que os poetas Pintam de aljava ao ombro e arco cingindo, E, como os serafins e as borboletas, Com um par de asas palpitante e lindo; O menino pagão que, nas inquietas Pupilas de alguns olhos, mora; e, rindo, Aí às vezes se diverte, setas, De dentro para fora, despedindo; Um dia a tais prazeres se abandona Dentro dos vossos olhos, e, imprudente, Em um dos olhos fere a própria dona... Ei-la a flecha nefasta; eu vo-la entrego... Resta um dos olhos só, mostrando à gente Que o amor não é completamente cego. VULNUS Com bons olhos, quem ama, em torno tudo vê! Folga, estremece, ri, sonha, respira e crê; A crença doira e azula o círculo que o cinge; Da volúpia do bem o grau supremo atinge! Eu também atingi esse supremo grau: Também fui bom e amei, e hoje odeio e sou mau! E as culpadas sois vós, visões encantadoras, Virgínias desleais, desleais Eleonoras! Minha alma juvenil, ígnea, meridional, Num longo sorvo hauriu o pérfido e letal Filtro do vosso escuro e perigoso encanto! A vossos pés rasguei tantos castelos! Tanto Sonho se esperdiçou! Tanta luz se perdeu!... Amei: nem uma só de vós me compreendeu! O MONGE "O coração da infância — eu lhe dizia — É manso". E ele me disse: — "Essas estradas, Quando, novo Eliseu, as percorria, As crianças lançavam-me pedradas..." Falei-lhe então na glória e na alegria; E ele — alvas barbas longas derramadas No burel negro — o olhar somente erguia Às cérulas regiões ilimitadas... Quando eu, porém, falei no amor, um riso Súbito as faces do impassível monge Iluminou... Era o vislumbre incerto, Era a luz de um crepúsculo indeciso Entre os clarões de um sol que já vai longe E as sombras de uma noite que vem perto!... SAUDADE Aqui outrora retumbaram hinos; Muito coche real nestas calçadas E nestas praças, hoje abandonadas, Rodou por entre os ouropéis mais finos... Arcos de flores, fachos purpurinos, Trons festivais, bandeiras desfraldadas, Girândolas, clarins, atropeladas Legiões de povo, bimbalhar de sinos... Tudo passou! Mas dessas arcarias Negras, e desses torreões medonhos, Alguém se assenta sobre as lájeas frias; Em torno os olhos úmidos, tristonhos, Espraia, e chora, como Jeremias, Sobre a Jerusalém de tantos sonhos!... O MISANTROPO À boca, às vezes, o louvor escapa E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto Mentem: tapa o louvor a inveja, enquanto O pranto a vesga hipocrisia tapa. Do louvor, com que espanto, sob a capa Vejo tanta dobrez, ludíbrio tanto! E o pranto em olhos vejo, com que espanto, Que escarnecem dos mais, rindo à socapa! Por que, desde que esse ódio atroz me veio, Só traições vejo em cada olhar venusto? Perfídias só em cada humano seio? Acaso as almas poderei sem custo Ver, perspícuo e melhor, só quando odeio? E é preciso odiar para ser justo?! PESADELO Penetro a estância fúnebre e sombria, Extremo leito da mulher amada; E ergo a loisa que a cobre — despojada De toda a graça ideal que a revestia: Da beleza, onde um casto amor sorria, Pudica e doce, nada resta, nada! Nua de carnes, só a branca ossada, Que apalpo e sinto fria, fria, fria... E, o sono seu eterno interrompendo, Clamo... Da noite o vento álgido corta, Cai neve e é gélido o esplendor da lua... Então, a erguer-se, pávida, tremendo De frio e com pudor, me diz a "morta": "Cobre-me! Há tanto frio e estou tão nua!" BANZO Visões que n'alma o céu do exílio incuba, Mortais visões! Fuzila o azul infando... Coleia, basilisco de ouro, ondeando O Níger... Bramem leões de fulva juba... Uivam chacais... Ressoa a fera tuba Dos cafres, pelas grotas retumbando, E a estralada das árvores, que um bando De paquidermes colossais derruba... Como o guaraz nas rubras penas dorme, Dorme em nimbos de sangue o sol oculto... Fuma o saibro africano incandescente... Vai coa sombra crescendo o vulto enorme Do baobá... E cresce n'alma o vulto De uma tristeza, imensa, imensamente... NUA E CRUA Doire a poesia a escura realidade E a mim a encubra! Um visionário ardente Quis vê-la nua um dia; e, ousadamente, Do áureo manto despoja a divindade; O estema da perpétua mocidade Tira-lhe e as galas; e ei-la, de repente, Inteiramente nua e inteiramente Crua, como a Verdade! E era a Verdade! Fita-a em seguida, e atônito recua... — Ó Musa! exclama então, magoado e triste, Traja de novo a louçainha tua! Veste outra vez as roupas que despiste! Que olhar se apraz em ver-te assim tão nua?... À nudez da Verdade quem resiste?! FETICHISMO Homem, da vida as sombras inclementes Interrogas em vão: — Que céus habita Deus? Onde essa região de luz bendita Paraíso dos justos e dos crentes?... Em vão tateiam tuas mãos trementes As entranhas da noite erma, infinita, Onde a dúvida atroz blasfema e grita, E onde há só queixas e ranger de dentes... A essa abóbada escura, em vão elevas Os braços para o Deus sonhado, e lutas Por abarcá-lo; é tudo em torno trevas... Somente o vácuo estreitas em teus braços; E apenas, pávido, um ruído escutas, Que é o ruído dos teus próprios passos!... VAE VICTIS! Homem! Ao torvo Deus, que há derribado Do humano orgulho as torres de Babel; — Deus, que nos cria para a dor, cruel; — Deus, que nos cria e que não foi criado... Em vão blasfemas, espremendo, irado, A alma — esponja de lágrimas e fel —; Deus dorme, surdo à nossa voz rebel, Nos fumos do holocausto embriagado. E hão de ir-se os orbes, como naus, a pique; E, do Orco estremo na hórrida caverna, Há de a raiva espumar, morder-se a dor! Dor é tudo; e nada há que justifique Essa revolta universal, eterna, Da criatura contra o criador! BÁLSAMO NOS PRANTOS Chora. Uma grande dor te punja e corte E de prantos te inunde a face austera, Já que uma dor pequena prantos gera Na alma de um fraco, só, por que a suporte. Certo, não torce um coração que é forte, A dor que um frágil coração torcera; Peitos de bronze, não; peitos de cera É que a dor amolece desta sorte. Prantos, bálsamo e alívio de quem chora, Sejam frutos do amor, ou sejam frutos Do ódio, bem haja a dor que os faz chorar! Bem haja a dor que pôde, enfim, agora, Na aridez desses olhos sempre enxutos, Duas fontes de lágrimas rasgar. ÚLTIMO PORTO Este o país ideal que em sonhos douro; Aqui o estro das aves me arrebata, E em flores, cachos e festões, desata A Natureza o virginal tesouro; Aqui, perpétuo dia ardente e louro Fulgura; e, na torrente e na cascata, A água alardeia toda a sua prata, E os laranjais e o sol todo o seu ouro... Aqui, de rosas e de luz tecida, Leve mortalha envolva estes destroços Do extinto amor, que inda me pesam tanto; E a terra, a mãe comum, no fim da vida, Para a nudeza me cobrir dos ossos, Rasgue alguns palmos do seu verde manto. JUNTO A ESTA CRUZ Junto a esta cruz os ossos dum asceta Jazem... Do claustro as frias solidões Amou, e, em vez da truculenta e inquieta Vida, a paz, o cilício e as orações; E do mundo, afogando toda a abjeta Concupiscência e todas as paixões, Ileso enfim saiu, como o profeta Daniel, da caverna dos leões. Hoje no eterno céu, misticamente, Goza a face do Altíssimo... É somente Depois da morte, que se faz a luz. A cruz é da Verdade o emblema santo... Mas... se assim é, de que se ri, no entanto, Esta caveira imunda aos pés da cruz?...
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(*) Ângelo Bitu é pseudônimo coletivo de Bilac, Alberto de Oliveira e Pedro Tavares Júnior. Veja-se o verbete sobre O SONETO SATÍRICO.
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