|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Antônio Cândido Gonçalves Crespo (Rio de Janeiro RJ 1846-1883)

Naturalizou-se português e pertenceu à Academia Real de Lisboa, mas dizem que continuou sendo brasileiro justamente pela saudade, vocábulo luso porém transplantado para os trópicos, cuja natureza ainda marcava a poesia de Crespo. Poetou na linha do realismo luso, correspondente ao nosso parnasianismo. Mas foi romântico na tuberculose, de que morreu, para variar, precocemente.


QUIMERAS

O mar já me tentou: aspirações fogosas
Fizeram-me idear fantásticas viagens;
Eu sonhava trazer de incógnitas paragens
Notícias imortais às gentes curiosas.

Mais tarde desejei riquezas fabulosas,
Um palácio escondido em múrmuras folhagens,
Onde eu fosse ocultar as cândidas imagens
Das virgens que evoquei por noites silenciosas.

Mas, tudo isso passou: agora só me resta
Das quimeras que tive, uma visão modesta,
Um sonho encantador, de paz e de ventura.

É simples: uma alcova, um berço, um inocente,
E uma esposa adorada, envolta, a negligente!
De um longo penteador na imaculada alvura...


[SONETO DA NUDEZ]

Há um misto de azul e trevas agitadas
Nesse felino olhar de lúbrica bacante.
Quando lhe cai aos pés a roupa flutuante,
Contemplo, mudo e absorto, as formas recatadas.

Nessa mulher esplende um poema deslumbrante
De volúpia e langor; em noites tresloucadas
Que suave não é nas rosas perfumadas
De seus lábios beber o aroma inebriante!

Fascina, quando a vejo à noite seminua,
Postas as mãos no seio, onde o desejo estua,
A boca descerrada, amortecido o olhar...

Fascina, mas sua alma é lodo, onde não pousa
Um raio dessa aurora, o amor, sublime cousa!
Raio de luz perdido em tormentoso mar!


[SONETO DA PENUMBRA]

No alvorecer das minhas primaveras
Tu me surgiste, aparição mimosa,
E eu pude ver logradas as quimeras
Da minha escura vida procelosa!

Com tanto ardor não cingem verdes heras
O tronco da palmeira voluptuosa,
Como quando no abraço dilaceras
Este meu seio nu, pagã formosa!

Eu quero desvendar este mistério:
Se alguma cousa em ti de vago e etéreo
Existe meio oculta na penumbra...

Quero sentir, palpar a realidade;
Mas ante o brilho augusto da verdade
A luz do meu amor toda se obumbra.


[SONETO DO OCASO]

Sara, quando me vês, suave e brando,
Repelir os teus beijos amorosos,
Talvez julgues, mulher, ir declinando
O alegre sol dos dias teus formosos.

Como te enganas, flor! choro pensando
Que foste irmã dos lírios cetinosos,
E que talvez o céu fulgiu brilhando
De teus olhos nos raios luminosos...

Quem te colheu o beijo primitivo?
Que Fausto ou Mefistófeles altivo
Te enodoou as vestes, Margarida?

Escuta: enquanto dormes, impudente,
Talvez nalguma estrela resplendente
Chore tua alma triste e arrependida.


FERVET AMOR (ao Dr. Antônio Cândido)

Dá para a cerca a estreita e humilde cela
Dessa que os seus abandonou, trocando
O calor da família ameno e brando
Pelo claustro que o sangue esfria e gela.

Nos florões manuelinos da janela
Papeiam aves o seu ninho armando,
Vêem-se ao longe os trigos ondulando...
Maio sorri na pradaria bela.

Zumbe o inseto na flor do rosmaninho;
Nas giestas pousa a abelha ébria de gozo;
Zunem besouros e palpita o ninho.

E a freira cisma e cora, ao ver, ansioso,
Do seu catre virgíneo sobre o linho
Um par de borboletas amoroso.


NA ALDEIA (a Cristóvão Aires)

Duas horas da tarde. Um sol ardente
Nos colmos dardejando, e nos eirados.
Sobreleva aos sussurros abafados
O grito das bigornas estridente.

A taberna é vazia; mansamente
Treme o loureiro nos umbrais pintados;
Zumbem à porta insetos variegados,
Envolvidos do sol na luz tremente.

Fia à soleira uma velhinha: o filho
No céu mal acordou da aurora o brilho
Saiu para os cansaços da lavoura.

A nora lava na ribeira, e os netos
Ao longe correm seminus, inquietos,
No mar ondeante da seara loura.


MODESTA (a minha irmã)

Se lembro esse momento
Mais belo d'esta vida!
Voava desprendida
A tua coma ao vento...

O teu olhar, querida,
Desceu ao meu tormento,
E após enternecida
Disseste em brando acento:

"Tua alma sofre e chora,
Quando o porvir se inflora,
Quando a teu lado estou!..."

Doce te olhei tremendo;
A noite ia descendo,
Um beijo se escutou.


MODESTA (II)

Um beijo se escutou,
E eu via mal seguro
A luz que ele traçou
No azul do meu futuro.

Um beijo se escutou.
Depois... teu lábio puro
Mais brando suspirou
Que a pomba em ermo escuro.

Voz doce e piedosa!
Não fujas, mariposa,
Não tremas, Galatéia!

Gwinplaine, extasiado,
De um ósculo sagrado
Os pés ungia a Déia...


MODESTA (X)

Morreu! Assim a prece
Na catedral sombria
Se esvai; à luz do dia
A lâmpada esmorece.

Curva-se a loura messe
Se passa a aragem fria.
Tão bela assim! dormia...
Se à vida renascesse!

Levava às mãos ao peito,
Goivos n'aquela trança
Que tanta vez beijei.

Oh sonho meu desfeito!
Voaste-me, criança!
Deus sabe se te amei!


O CAMARIM

A luz do Sol afaga docemente
As bordadas cortinas de escumilha,
Penetrantes aromas de baunilha
Ondulam pelo tépido ambiente.

Sobre a estante do piano reluzente
Repousa a "Norma", ao lado uma quadrilha;
E do leito francês nas colchas brilha
De um cão de raça o olhar inteligente.

Ao pé das longas vestes, descuidadas
Dormem nos arabescos do tapete
Duas leves botinas delicadas.

Sobre a mesa emurchece um ramilhete,
E entre um leque e umas luvas perfumadas
Cintila um caprichoso bracelete.


MIMI

Recreia-se a minh'alma se à tardinha
Na janela diviso essa inocente;
Que nunca vi olhar mais transparente,
Nem figura gentil como a vizinha!

Desce às vezes a tímida avezinha
Ao seu jardim, e afaga docemente
Da Cochinchina um galo refulgente,
Que em seu regaço lânguido se aninha.

Ajeita, ao ver-me, o seu vestido curto,
E, as longas tranças concertando a furto,
Fita os olhos no azul toda tristeza.

E nesse tempo acode-me à lembrança
O já ter visto assim uma criança
Numa gravura ideal da escola inglesa.


NA ROÇA

Cercada de mestiças no terreiro,
Cisma a Senhora Moça; vem descendo
A noite, e pouco a pouco escurecendo
O vale umbroso e o monte sobranceiro.

Brilham insetos no capim rasteiro
E vêm das matas os negros colhendo;
Na longa estrada ecoa esmorecendo
O monótono canto de um tropeiro.

Atrás das grades, pardas borboletas
Crianças nuas lá se vão inquietas
Na varanda correndo ladrilhada.

Desponta a lua; o sabiá gorjeia;
Enquanto às portas do curral ondeia
A mugidora fila da boiada.


Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes