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Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (Santa Rita do Rio Negro RJ
1866-1909)
Paulo Leminski chamou atenção, no primeiro número da revista ATRAVÉS,
para o seguinte soneto de Euclides:
DEDICATÓRIA (1905)
SE ACASO uma alma se fotografasse
De sorte que, nos mesmos negativos,
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;
E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos... Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos;
Amigo! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando deste grupo bem no meio
Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido, o mais feio.
Segundo Leminski, o soneto seria uma paródia de Raimundo Correia, cujo
original está no respectivo verbete deste SONETÁRIO e reproduzo abaixo:
MAL SECRETO
Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
Na verdade nem se trata de paródia (como aquelas que registrei no
referido verbete), mas daquilo que Leminski chama de "extraordinária
tradução" da então inovadora arte da fotografia na "petrarquesca
velharia do soneto", matriz que, ainda nas palavras de Leminski, não
passaria de "mero beletrismo", "amenidades anódinas bordadas por
bacharéis verbalistas e ornamentais", os quais teriam sido "reduzidos"
pelo engenheiro/militar positivista Euclides, este sim voltado para o
moderno e para o futuro, segundo Leminski. Não creio que Leminski deva
ser levado a sério (alguém acredita que algo de Petrarca, Shakespeare ou
Homero seja "velharia" ou que Euclides seja melhor poeta que Raimundo?),
mas acho que, como bom publicitário, o relaxado caprichoso fazia bem o
gênero "viva a tecnologia a serviço da vanguarda!" até porque é
discutível se todo esse cientificismo ajudou ou prejudicou a poesia,
depois de tantas décadas de "modernidade"...
Ler Leminski contrapondo o "tecnológico/industrial" de Euclides ao
"artesanal" de Raimundo me faz sentir ainda mais saudade do artesanal,
nestes tristes tempos de globalização e automatismo; em todo caso,
Leminski foi suficientemente "zen" para absorver as boas vibrações da
contracultura, e sua interpretação do soneto euclidiano como processo
metalingüístico (falando da foto numa paródia, ou seja, numa cópia
distorcida) foi bem oportuna. E por falar em cópias, segue uma seleção
dos outros sonetos do autor de OS SERTÕES a partir de versões
reproduzidas na internet, donde o meu lavar de mãos quanto a possíveis
distorções...
DANTÃO PARECE-ME que o vejo iluminado. Erguendo delirante a grande fronte De um povo inteiro o fúlgido horizonte Cheio de luz, de idéias constelado! De seu crânio vulcão a rubra lava Foi que gerou essa sublime aurora Noventa e três e a levantou sonora Na fronte audaz da populaça brava! Olhando para a história um século e a lente Que mostra-me o seu crânio resplandente Do passado através o véu profundo... Há muito que tombou, mas inquebrável De sua voz o eco formidável Estruge ainda na razão do mundo! MARAT Foi A ALMA cruel das barricadas!... Misto de luz e lama!... se ele ria, As púrpuras gelavam-se e rangia Mais de um trono, se dava gargalhadas!... Fanático da luz... porém seguia Do crime as torvas, lívidas pisadas. Armava, à noite, aos corações ciladas, Batia o despotismo à luz do dia. No seu cérebro tremente negrejavam Os planos mais cruéis e cintilavam As idéias mais bravas e brilhantes. Há muito que um punhal gelou-lhe o seio. Passou... deixou na história um rastro cheio De lágrimas e luzes ofuscantes. ROBESPIERRE ALMA INQUEBRÁVEL bravo sonhador De um fim brilhante, de um poder ingente, De seu cérebro audaz, a luz ardente É que gerava a treva do Terror! Embuçado num lívido fulgor Su'alma colossal, cruel, potente, Rompe as idades, lúgubre, tremente, Cheia de glórias, maldições e dor! Há muito que, soberba, ess'alma ardida Afogou-se cruenta e destemida Num dilúvio de luz: Noventa e três... Há muito já que emudeceu na história Mas ainda hoje a sua atroz memória É o pesadelo mais cruel dos reis!... COMPARAÇÃO "Eu sou FRACA e pequena..." Tu me disseste um dia. E em teu lábio sorria Uma dor tão serena, Que em mim se refletia Amargamente amena, A encantadora pena Que em teus olhos fulgia. Mas esta mágoa, o tê-la É um engano profundo. Faze por esquecê-la: Dos céus azuis ao fundo É bem pequena a estrela... E no entretanto é um mundo! AMOR ALGÉBRICO ACABO DE ESTUDAR da ciência fria e vã, O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente, Acabo de arrancar a fronte minha ardente Das páginas cruéis de um livro de Bertrand. Bem triste e bem cruel decerto foi o ente Que este Saara atroz sem aura, sem manhã, A Álgebra criou a mente, a alma mais sã Nela vacila e cai, sem um sonho virente. Acabo de estudar e pálido, cansado, Dumas dez equações os véus hei arrancado, Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz. É tempo, é tempo pois de, trêmulo e amoroso, Ir dela descansar no seio venturoso E achar do seu olhar o luminoso X. SAINT-JUST QUANDO à tribuna ele se ergueu, rugindo, Ao forte impulso das paixões audazes Ardente o lábio de terríveis frases E a luz do gênio em seu olhar fulgindo, A tirania estremeceu nas bases, De um rei na fronte ressumou, pungindo, Um suor de morte e um terror infindo Gelou o seio aos cortesãos sequazes Uma alma nova ergueu-se em cada peito, Brotou em cada peito uma esperança, De um sono acordou, firme, o Direito E a Europa o mundo mais que o mundo, a França Sentiu numa hora sob o verbo seu As comoções que em séculos não sofreu! A FLOR DO CÁRCERE NASCERA ALI no limo viridente Dos muros da prisão como uma esmola Da natureza a um coração que estiola Aquela flor imaculada e olente... E ele que fôra um bruto, e vil descrente, Quanta vez, numa prece, ungido, cola O lábio seco, na úmida corola Daquela flor alvíssima e silente!... E ele que sofre e para a dor existe Quantas vezes no peito o pranto estanca!.. Quantas vezes na veia a febre acalma, Fitando aquela flor tão pura e triste!... Aquela estrela perfumada e branca, Que cintila na noite de sua alma... RIMAS ONTEM quando, soberba, escarnecias Dessa minha paixão louca suprema E no teu lábio, essa rósea algema, A minha vida gélida prendias... Eu meditava em loucas utopias, Tentava resolver grave problema... Como engastar tua alma num poema? E eu não chorava quando tu te rias... Hoje, que vivo desse amor ansioso E és minha és minha, extraordinária sorte, Hoje eu sou triste sendo tão ditoso! E tremo e choro pressentindo forte, Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso, Esse excesso de vida que é a morte... D. QUIXOTE ASSIM À ALDEIA volta o da "triste figura" Ao tardo caminhar do Rocinante lento: No arcaboiço dobrado um grande desalento, No entristecido olhar uns laivos de loucura... Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura Do ideal e da Fé, tudo isto num momento A rolar, a rolar, num desmoronamento, Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura. Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco O brilho da Ilusão do espírito doente; Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente E ardentes ilusões e não se ficar louco! PÁGINA VAZIA QUEM VOLTA da região assustadora De onde eu venho, revendo, inda na mente, Muitas cenas do drama comovente De guerra despiedada e aterradora. Certo não pode ter uma sonora Estrofe ou canto ou ditirambo ardente Que possa figurar dignamente Em vosso álbum gentil, minha senhora. E quando, com fidalga gentileza Cedestes-me esta página, a nobreza De nossa alma iludiu-vos, não previstes Que quem mais tarde, nesta folha lesse Perguntaria: "Que autor é esse De uns versos tão mal feitos e tão tristes?"
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |