[8] DECÁLOGO DO DECASSÍLABO

Com base nas generalidades que comentei acerca do soneto, sistematizo aqui as normas pelas quais, na minha concepção, deve-se pautar o verso decassílabo. Não são regras rígidas, pois nada é inflexível em poesia, e me servem mais como bússola que como itinerário, divergindo, aqui e ali, dos tratadistas da versificação. O importante é que a fuga da regra, pessoal ou alheia, ocorra conscientemente e não a esmo. [8.1] Escandir o deca segundo o método tradicional português, desprezando as sílabas átonas posteriores à última tônica, a qual será obrigatoriamente a décima. Destarte, se a última palavra for oxítona, nada se despreza, e o deca será agudo; se a última palavra for paroxítona, despreza-se uma sílaba, e o deca será grave; se a última palavra for proparoxítona, desprezam-se duas sílabas, e o deca será esdrúxulo. Exemplos: Ainda somos bons de futebol. [Mattoso, 113] (A){in}(da){so}(mos){bons}(de)(fu)(te){bol} [agudo] Já não se fazem craques como dantes. [Mattoso, 114] {Já}{não}(se){fa}(zem){cra}(ques){co}(mo){dan}(tes) [grave] As frases memoráveis da República [Mattoso, 172] (As){fra}(ses)(me)(mo){rá}(veis)(da)(Re){pú}(bli)(ca) [esdrúxulo] [8.2] Considerar na escansão todas as licenças poéticas cabíveis (diérese, sinérese, aférese, sinalefa, anaptixe, ectlipse e outros metaplasmos), sem, todavia, privá-las do caráter opcional que lhes é inerente. Exemplos: de diérese ["druída" em vez de "druida"]: Mas, para algum profeta, algum druída, [Mattoso, 173] (Mas){pa}(raal){gum}(pro){fe}(taal){gum}(dru){í}(da) de sinérese ["ca-rio-cas"; "a-téon-de"]: Cariocas se envaidecem da sua praia. [Mattoso, 89] (Ca){rio}(cas)(seen)(vai){de}(cem)(da)(sua){pra}(ia) de bruços, vou no embalo até onde der. [Mattoso, 138] (de){bru}(ços){vou}(noem){ba}(loa){téon}(de){der} de aférese ["inda" em vez de "ainda"]: Se inda me queixo dessa zica brava, [Mattoso, 26] {Sein}(da)(me){quei}(xo){de}(ssa){zi}(ca){bra}(va) de sinalefa ["prum" em vez de "pra um" ou "para um"]: Soneto, prum filósofo, é bobagem. [Mattoso, 201] (So){ne}(to)(prum)(fi){ló}(so){foé}(bo){ba}(gem) de anaptixe ["obiscurantismo"; "subistância"]: ao obscurantismo associado, [Mattoso, 128] (ao)(o)(bis)(cu)(ran){tis}(moa)(sso)(ci){a}(do) É tanta substância proibida! [Mattoso, 115] {É}{tan}(ta)(su)(bis){tân}(cia)(pro)(i){bi}(da) de ectlipse ["cuma" em vez de "com uma"]: virou gato e casou cuma pantera. [Mattoso, 132] (vi){rou}{ga}(toe)(ca){sou}{cu}(ma)(pan){te}(ra) [8.3] Acentuar o deca preferencialmente como um pentâmetro jâmbico, isto é, cinco jambos justapostos [-+-+-+-+-+]. Destarte, sendo todas as sílabas ímpares átonas e as pares tônicas, todo heróico poderia ser entoado também como sáfico, e vice-versa. Exemplos: Mas não venero um Pai, venero o Avô, [Mattoso, 131] (Mas){não}(ve){ne}(roum){Pai}(ve){ne}(rooA){vô} Por isso só versejo nesse pé, [Mattoso, 99] (Po){ri}(sso){só}(ver){se}(jo){ne}(sse){pé} [8.4] Se, na prática, este ideal compasso binário é pouco viável, acentuar preferencialmente a segunda, sexta e décima, de modo a privilegiar o icto heróico. Para tanto, aplicar duas cesuras, uma na sexta, outra na segunda, reagrupando os teóricos cinco jambos em três pés: um jambo e dois dijambos [-+/-+-+/-+-+]. Exemplos: Mas não venero um Pai, venero o Avô, [Mattoso, 131] (Mas){não} / (ve){ne}(roum){Pai} / (ve){ne}(rooA){vô} Por isso só versejo nesse pé, [Mattoso, 99] (Po){ri} / (sso){só}(ver){se} / (jo){ne}(sse){pé} [8.5] Considerar, no heróico, como imóvel a cesura propriamente dita, na sexta, e como móvel a pré-cesura na segunda, a qual poderá ser deslocada para a terceira ou a quarta, conforme a posição das tônicas. Destarte, o trímetro ou "tripé" poderá ser composto por dois trissílabos e um tetrassílabo,ou por um tetra, um jambo e um tetra. Exemplos: Não, colendos colegas tabajaras! [Mattoso, 174] {Não}(co){len} / (dos)(co){le} / (gas)(ta)(ba){ja}(ras) e a tradição oral, contradição, [Mattoso, 107] (ea)(tra)(di){ção} / (o){ral} / (con)(tra)(di){ção} [8.6] Não cesurar tônica ímpar, exceto a terceira sílaba, se precedida de átona. Destarte, nenhum pé terá menos que duas sílabas ou mais que quatro. Caso as palavras iniciais sejam polissilábicas e/ou as tônicas incidirem na primeira e/ou na quinta, procurar manter a pré-cesura na segunda, ainda que artificialmente e recorrendo a licenças como a sístole e a diástole. Exemplos: de sístole ["Fêmini+lidade" em vez de "feminil+idade"]: a feminilidade no seu trato. [Mattoso, 313] (a){fe} / (mi)(ni)(li){da} / (de)(no)(seu){tra}(to) de sístole ["indúbita+velmente" em vez de "indubitável+mente"]: indubitavelmente, é não ser sério! [Mattoso, 174] (in){du} / (bi){ta}(vel){men} / {teé}{não}{ser}{sé}(rio) de diástole ["Masóque" em vez de "Másoque"]: Masoch, travestido de Gregório, [Mattoso, 60] (Ma){so} / (que)(tra)(ves){ti} / (do)(de)(Gre){gó}(rio) de diástole ["metá" em vez de "méta"]: Metamorfoseado de barata, [Mattoso, 109] (Me){ta} / (mor)(fo)(se){a} / (do)(de)(ba){ra}(ta) [8.7] Considerar o sáfico como esporádico e empregá-lo preferencialmente como alternativa para quando não for possível encaixar o icto na sexta, aplicando, neste caso, as duas cesuras na quarta e oitava. Destarte, os hipotéticos cinco jambos serão substituídos por três pés, sendo a ordem inversa à do tripé heróico: dois dijambos e um jambo (ou equivalentes) [-+-+/-+-+/-+]. Exemplos: No verso sáfico, Delfino é dez: [Mattoso, 236] (No){ver}(so){sá} / (fi)(co)(Del){fi} / {noé}{dez} Parece incrível que o fazer poético [Mattoso, 99] (Pa){re}(cein){crí} / (vel)(queo)(fa){zer} / (po){é}(ti)(co) [8.8] Considerar, tanto no heróico quanto no sáfico, os dijambos como padrão ideal, mas não repudiar outras possibilidades tetrassilábicas, desde que a quarta sílaba seja tônica. Destarte, nada impede que em qualquer dos casos um pé soe como coriambo [+--+], um jônico menor [--++], um dispondeu [++++], um epítrito [exceto o quarto] ou um peão quarto [---+]. Exemplos: de espondeu / peão quarto / dispondeu: pes, pedis, que vem dar pé, pie, pied, piede. [Mattoso, 179] {pes}{pe} / (dis)(que)(vem){dar} / {pé}{pie}{pied}{pie}(de) de jambo / peão quarto / jônico menor: Um outro radical atenção chama: [Mattoso, 179] (Um){ou} / (tro)(ra)(di){cal} / (a)(ten){ção}{cha}(ma) de coriambo / jambo / coriambo: Quanto ao inglês, tem foot, termo que mede [Mattoso, 179] {Quan}(toao)(in){glês} / (tem){foot} / {ter}(mo)(que){me}(de) de jambo / coriambo / epítrito primeiro: Está o Santa Efigênia mais pra lá, [Mattoso, 220] (Es){táo} / {San}(taE)(fi){gê} / (nia){mais}{pra}{lá} de jambo / epítrito terceiro / dijambo: até os tais sais que fazem surdo ouvir. [Mattoso, 55] (a){téos} / {tais}{sais}(que){fa} / (zem){sur}(doou){vir} [8.9] Já que o parâmetro jâmbico, alternando ímpares fracas e pares fortes, é menos exeqüível que preferível, e o próprio jambo [-+] pode ser substituído por um espondeu [++], também no caso de pés trissilábicos não se pode pretender um padrão exclusivo. A única regra inflexível é que a terceira sílaba seja tônica. Destarte, os dois primeiros pés poderiam variar entre o anapesto [--+], o crético [+-+], o báquico [-++] e o molosso [+++]. Exemplos: de anapesto / anapesto / dijambo (chamado "martelo agalopado"): Mas a língua do Glauco, tão falada, [Mattoso, 115] (Mas)(a){lín} / (gua)(do){Glau} / (co){tão}(fa){la}(da) de anapesto / crético / dijambo: e qualquer dia desses vão passar [Mattoso, 59] (e)(qual){quer} / {di}(a){de} / (sses){vão}(pa){ssar} de crético / molosso / dijambo: como quem já deu dez e não agüenta. [Mattoso, 108] {co}(mo){quem} / {já}{deu}{dez} / (e){não}(a){güen}(ta) de crético / anapesto / jônico menor: duma lúcida dúvida a fé cega [Mattoso, 250] {du}(ma){lú} / (ci)(da){dú} / (vi)(daa){fé}{ce}(ga) [8.10] Considerar como irrestrito o emprego do enjambement e de pontuações internas, que em nada interferirão no comportamento das tônicas ou na escansão. Destarte, nada impede que o verso comece com minúscula, que a frase termine no meio do verso, e que a frase seguinte, iniciada por maiúscula nesse ponto intermediário, também continue até o meio do próximo verso. Exemplos: Pessoas imprudentes são defuntas mais cedo. Quando posso, ajudo e empurro cova adentro. Me chamem de casmurro, mas não tolero críticas bestuntas. [Mattoso, 254] O livro de Isaías diz, comigo: "Os reis serão teus aios", na tramóia divina (Que "divina", uma pinóia!); "O pó dos teus pés lambem..." (Que castigo!) [Mattoso, 84]
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Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes