|| | ||S|| | ||O|| | ||N|| | ||E|| | ||T|| | ||Á|| | ||R|| | ||I|| | ||O|| | ||||| | ||||| | ||||| | || |
Luís Delfino dos Santos (Florianópolis SC 1834-1910)
Caso curioso e fenomenal, é recordista absoluto em sonetos (folgadamente
mais de mil, enquanto seu conterrâneo Cruz e Souza e outros
contemporâneos acercavam-se dos trezentos) e ao mesmo tempo morreu sem
publicar uma única coletânea sempre planejada mas abandonada, já que,
segundo o poeta, "minhas predileções" lhe prejudicariam a avaliação
pública, sendo ele um homem público. "Predileções"? Entendo...
Postumamente, seu filho reuniu e publicou tudo que saíra em jornais e
revistas, mas já era tempo dos modernistas e os volumes não foram
devidamente recebidos. Recentemente, o acadêmico Lauro Junkes conseguiu
apoio oficial para consolidar numa só edição calhamaçal (mas jamais
calhamaçante) todo o acervo sonetífero do hoje celebrado senador
catarinense.
Mas aquele que chegou a ser considerado o maior poeta vivo de seu tempo
e foi disputado por várias escolas acabou relegado a segundo plano entre
os parnasianos, ainda que reivindicado pelos simbolistas. Dentre seus
sonetos (muitos dedicados a uma ideal Helena) interessam-me
particularmente os que revelam a confessa podolatria do poeta, como
nestes exemplos:
HELENA Helena, ideal como os da Grécia antiga, Trabalhados nos mármores de Paros, Tu que refulges, como estrela amiga, Do meu prazer entre os instantes raros, Tu, a quem mão de deuses não ignaros Por um divino e puro amor me liga, Que és a criatura dos meus sonhos caros, A força doce que a viver me obriga, Tu, cuja imagem luminosa e casta Ver, só, e amar, para viver me basta, Tu, que não sabes mesmo inda quem és, Tu, que o não saberás, mulher, aceita O manto d'oiro e azul, que no chão deita Quem calçara, a poder, com sóis teus pés... MEDO Sabes? Não sei de ti o que penso e o que quero: Não devo amar-te, eu sei, nem eu procuro amar-te: E tua imagem vai comigo a toda parte; Vai, onde eu vou; e vai, onde eu jamais a espero. Meu semblante entre altivo e tristemente austero Deve estar, quando enfim preciso, ou devo olhar-te, Meu profundo segredo eu temo revelar-te: E junto a ti me esqueço, ou talvez persevero. Quantas vezes porém me tem já parecido, Que longas horas eu sob os teus pés me olvido, Bem como num vulcão, abrasado em desejos! E ergo-me, e fujo, quando irado e delirante Vejo, que vão tragar-te a carne palpitante, Leões rugindo em bando, os meus famintos beijos... NO LEITO Como estátua de mármore, na cama Feita de linho, e sobre o nevoeiro De rendas, em que rola o travesseiro, Que luar doce o corpo teu derrama. Azula-o brandamente etérea chama, Molha-o a luz do teu olhar fagueiro; E o sol, nos teus dois sóis prisioneiro, Embalde ir para o céu forceja e clama. Deixa-o ir. Fica tu serena e casta No calor desta alcova pequenina, Que a imensa curva azul talvez mais vasta. Deixa-me após na luz que me fascina, Deste céu em que estás, e que me basta, Cair morto aos teus pés, mulher divina. PELA PRAIA Vão mais depressa... Deixa-os. Dá-me o braço; Vem das sombras do monte, em roda, o escuro; Há muita tarde; o medo é prematuro; Não temas: vá, mais devagar o passo. Mais devagar... assim. Esse cansaço Cura-se, haurindo lentamente ar puro; Não receies; teu corpo ao meu seguro, Encostado, é mais leve, encurta o espaço. Olha os teus pés; levanta um pouco a saia, Qué-los beijar o mar, os quer, e afaga: Cai a noite? Que tem que a noite caia? Com que delícias o terror nos paga, Quando vamos tão bem a sós na praia, Ouvindo a flauta ao vento, e o búzio à vaga!... CAPRICHO DE SARDANAPALO "Não dormi toda a noite! A vida exalo Numa agonia indômita e cruel! Ergue-te, ó Radamés, ó meu vassalo! Faço-te agora amigo meu fiel... Deixa o leito de sândalo... A cavalo! Falta-me alguém no meu real dossel... Ouves, escravo, o rei Sardanapalo? Engole o espaço! É raio o meu corcel! Não quero que igual noite hoje em mim caia... Vai, Radamés, remonta-te ao Himalaia, Ao sol, à lua... voa, Radamés, Que, enquanto a branca Assíria aos meus pés acho, Quero dormir também, feliz, debaixo Das duas curvas dos seus brancos pés!..." SOBRE O PÉGASO Upa, ginete, aos céus, em marcha. Espora às ancas, Rédeas presas às mãos, a velha estrada mudo... Rasguemos regiões mais límpidas, mais francas, Quero ver se esta eterna dor da vida iludo. Vamos. Sinto-me alado, e firme, e ereto, e mudo; Amor, nem mesmo tu destes azuis me arrancas: Vôo como envolvido em duas asas brancas, Que são a minha guarda e a minha força em tudo. Aqui de longe, aqui, por uma esfera vasta, Tendo sob os meus pés o globo, que se arrasta, O dardo ao flanco, ao passo o tédio do cansaço; Vendo o orgulho com que vão nele os homens todos, Num alarido, como um turbilhão de doudos. Upa! grito ao ginete, em marcha, espaço... espaço!... OS PÉS Hum!... Qualquer coisa como um passarinho Nevado e azul, polido e luzidio, Como o fluido cristal d'água de um rio, Que a luz cinzela, e aroma o rosmaninho... Alvo... da casta alvura de um arminho... Azul... do azul do céu, franzino, esguio, Trêmulo, arfando, em susto, em medo, eu vi-o Buscando o fundo tépido do ninho. Ela no leito tinha-o prisioneiro; E a mim me parecia que o infinito Era o que ele queria... o espaço inteiro... Deve ser lindo, disse-lhe, e esquisito: Não deixes ir, sem dar-mo a ver primeiro... São dois?!... Sentou-se, e às mãos os pôs num grito... A UNHA DO DEDO MÍNIMO DO PÉ É um gigante, e acaso uma hora excede-o: O seu alto valor se verifica Quando, em noite de amor tão curta e rica, Crê-se tudo acabado e sem remédio. Vence o cansaço e o sono; o sono e o tédio... De ambos a inércia é a morte, e a calma a explica: Vênus de Amor são grupo em bronze, e aí fica... Eco um beijo inda pede... embalde pede-o... Mas esta unha, num dedo escuso, é certo, Roça-te a carne, um nada, aos pés... desperto Logo, logo o teu sangue às armas grita. Ferve dentro de ti toda uma aurora; E vibra a seta, a seta rubra agora De um sol, que o céu, em todo fundo, agita... O FORTE (a Machado de Assis) O varão forte mutilado a meio É qual Deus, que o escultor em pé levanta, Nessa atitude respeitosa e santa Que a pedra guarda no divino seio. O bárbaro pisou-o sob a planta; Lançou-o o tempo ao chão, qual fraco esteio; Mas o mármore um dia ergue-se, e canta Belo, como das mãos de Fídias veio. Basta que caia a gota de água em cima, E que um raio de sol a enxugue instantes, Para irromper a sonorosa rima Do coro dessas linhas cintilantes; E no meio da luz, que o beija e anima, O Deus de pedra inda é maior que dantes. O FLANCO E OS PÉS Nesse momento eu via o que somente Se pode ver em súbita paisagem, Quando a vaga do mar empluma a aragem De uma penugem branca e reluzente; E essa traz numa concha alvinitente Alguma Vênus, o ideal, a imagem Do belo, que ali surge de passagem, Mas fica avassalando a toda gente. Assim da nuvem sai a claridade Em que anda envolta alguma divindade, Que podem ver acaso alguns felizes, Que isto o destino a muitos não permite: Tal vi teu flanco, Helena, o de Afrodite, E os pentélicos pés de estátua de Ísis... EXPERIÊNCIA DE EVA Quando Eva só ensaia algum caminho, Há de alegria em tudo uma vertigem: Quando ela um pé levanta, chilra um ninho; Dá de um pássaro a um canto novo origem. Do bosque as feras todas se dirigem, Para vê-la passar, deixando o arminho Escuro; a neve dele é só caligem, Tanto ela esplende Adão ficou sozinho... Hoje é sua a apoteose. O Éden toma Uma estranha beleza; e maravilha, O que de bom na natureza assoma: Em cada galho de árvore um sol brilha; Da selva vem mais novo e doce o aroma; Mesmo, como aos seus pés, o céu se humilha!... UMA DESESPERADA Tristeza é coroa régia, alta e robusta, Que em cada volta tem agudo espinho, Como a que teve um Deus, quando escarninho Espírito a deitou na fronte augusta. Ela faz parte de mim mesmo e assusta Como a serpente, que rodeia um ninho: Farei com ela todo o meu caminho; Mas... carregar seu grande peso, custa. Helena, há dentro em mim escura mágoa, Como o nenúfar negro dentro d'água, Como uma fase triste enluta um carme. Mas se te beijo a mão, o pé, a perna A minha dor, desesperada, eterna, Fica então à penumbra a olhar-me... a olhar-me. PERNAS E PÉS Estas pedras inclinam-se, formando Uma caverna, um antro quase obscuro: As moscas negras zumbem dentro em bando; Das fendas desce um fio d'água puro. Arroio é já: gazeia adiante, e andando Abre na relva verde um branco furo: Já estende-se; é lago: em vão murmuro... Cais, Helena, no lago eu vou gritando... Cai. Belo é ver-lhe as pernas na corrente, Blocos vivos de um mármore esplendente: São duas hastes, que sustêm com graça Os seus pés nus, os seus dois pés nevados, Claros, como dois lírios inclinados À beira d'água, que os oscula e passa... SOB A MADONA Helena, eu ontem sério te dizia, (Quando estou sério e triste estou contente) Que todo o céu, e o que ele tem, queria Para eles encher-te o chão somente, Como a Virgem fazer nos quadros via, Entre estrelas e a lua no crescente, À luz de um riso, que em teus olhos via... Disseste: Vê, esquece-lhe a serpente... Pois sim: quero ser ela um só instante, E entre sóis e os clarões do teu semblante Ver que em ti a Madona se renova: Pouco e pouco ir perdendo os meus sentidos, E entre o aroma sutil dos teus vestidos, Achar na cova dos teus pés a cova... O AMOR CEGO Quando sobre uma pele de pantera Mais negra do que a noite mais escura, Via-te nua e branca, ó formosura, Como a estrela na sombra pela esfera Se destaca melhor, tem luz mais pura, Sei lá dizer-te, angélica quimera, Se mesmo, o que eu sentia, era ventura, Se dentro em mim cousa melhor não era. Sei só que enchia o vale dos teus seios De beijos; eram beijos e gorjeios Da fronte à curva dos teus pés gentis. Sentia o amor, que vive, e se abandona, Não o de Miguel Ângelo e Colonna, Petrarca e Laura, Dante e Beatriz... INTUS ET IN CUTE Desde manhã, e mesmo desde a aurora, Havia já uma espantosa ameaça: Nuvens à beira do horizonte em massa; Um calor que aumentava d'hora em hora... Realiza-se tudo, Helena, agora: Ouves o vento, que esbraveja e passa, Ouves bater a chuva na vidraça, E zig'zagueando o raio vês lá fora. Eu vejo tudo por um outro espelho: Eu vejo o espaço azul, o sol vermelho, Vejo cheios de flores os vergéis. De verdes luzes coalham-se as colinas, Beijando os céus de tuas mãos divinas, Beijando as curvas dos teus lindos pés... Versos de alguns destes sonetos foram por mim enxertados no soneto abaixo, para o qual, além do tema fetichista, escolhi propositalmente o acento sáfico, mais raro no decassílabo porém freqüente em Delfino: SONETO 236 DEGENERADO No verso sáfico, Delfino é dez: "Da fronte à curva dos teus pés gentis". Faz no Parnaso o mesmo que hoje fiz, "Beijando as curvas dos teus lindos pés". Prefiro o heróico, sem grilhões, galés, mas sou forçado à punição feliz de rebaixar estes meus lábios vis a pés mais reles, nas cruéis ralés. "Achar na cova dos teus pés a cova", diz o Poeta, entre dois ais coitados. Mas sua musa é moça linda e nova: "Os seus pés nus, os seus dois pés nevados"; Já meu escopo é quando a língua escova o pó do couro em borzeguins surrados.Glauco Mattoso Já à delfiniana obra-prima "A Valsa" respondi com o "Recalcado" que se segue: A VALSA Move-se, treme, anseia, empalidece, Cai, agoniza; acaba-lhe nos braços: Resfolga, arqueja, torna, reaparece, Solda-lhe o seio, a boca, as mãos, os passos... Gira, volta, circula... Os olhos lassos Têm langue, mole, voluptuosa prece: A fronte branca ao colo dele esquece... Atam-lhe as carnes invisíveis laços... Na sala, a um vão, inquieto a vejo... e o vejo! Sofrer?!... não sei... mas toma-me um desejo, Ao ver um só nos dois, o grupo enleado... Rojar-me ao chão, à terra de repente, E nas voltas daquela valsa ardente Morrer em baixo de seus pés calcado! SONETO 515 RECALCADO Valsando vê Delfino a sua amada com outro, em cujo peito ela se apóia. Vestida em pano fino, ornada em jóia, a dama lembra a célebre enteada. Seu par, como na história das de fada, de príncipe se faz e reconstrói-a. Delfino, vitimado na tramóia, apenas presencia e se degrada. Na sala ninguém nota-lhe o despeito. Consome-se o poeta e, mentalmente, se põe no meu lugar e age a meu jeito: Abjeto, sob o olhar de toda a gente, aos pés do astral casal no chão me deito e o macho é quem me pisa, sorridente.Glauco Mattoso Em outros exemplos, Delfino não se prende ao culto do amado pé, mas continua transpirando sensualidade, a julgar por esta breve seleção: ÂNGELA - SIRENA Tinha doze anos; chego; de repente Enlaça-me com força: vou fugi-la; Aperta-me inda mais, feroz, tranqüila, Como uma fera angélica e inocente. Quase achei-me sem mim no atrito quente; E ao ver-lhe o azul da límpida pupila Molhar-se todo de um vapor luzente, E uma inquieta tristeza enfim cobri-la, Lento e lento arranquei-me dela, e a custo, E sem que disso idéia exata forme, Logo um pouco a tremer, num vago susto, Como cansada de um trabalho enorme, Sobre o meu colo reclinando o busto, A face em fogo, e soluçando, dorme. EPITALÂMIO Deixa lançar-te ao colo o meu hálito quente, Derreter-lhe com o lábio em fogo, e em torno, a neve. O tempo, que nos dão, é curto, é pouco, é breve, É nosso o instante só, e lá vai de repente. Quem este epitalâmio, amor, cantar se atreve? Como o vento demora e arrasta a asa fremente! Como é alegre a luz mesmo do sol ao poente! Como a noite aparece alta, estrelada, leve!... Depois que minha boca encontrou tua boca, Depois que eu fiquei louco, e tu ficaste louca, Os grupos de ilusões, mandemo-los embora... Pede cousa melhor ao universo; e ei-lo mudo: Olha: este último beijo é tudo, é tudo, é tudo!... Qualquer deus não tem mais, não tem mais outra aurora! O AMOR DO MENDIGO Gosto de todas: amo-as loucamente... Uma, em que palpo o escultural contorno, Dispo, tiro-lhe até o último adorno: E ouço a forma cantar num corpo quente. Fremindo o coração, em fogo a mente, Chispa, cintila, como aceso forno; E o meu olhar, vulcão sangrento e morno, Dardeja-lhe punhais, que ela não sente... Mendigo, em descalcez, roto, esgrouviado, Tendo-a nua ao meu seio, amor ensaio... Abre-me o sol um leito aveludado: Aureola-me a fronte, em deus, com um raio De um sonho róseo ao fundo, ela a meu lado... Sob a umbela do céu azul desmaio. FEVER Entrei: e ouvi uma harmonia doce, E um silêncio tão baixo, e assim tão triste, Como se tudo ajoelhado fosse: Na mesma posição fiquei: tu viste. E ao ver-me então na sala, te sorriste; Do riso teu meu coração banhou-se; E quando logo a persiana abriste, De pedras d'oiro todo o chão calçou-se. Beijei-te a mão, e achei-a árida e quente, E acompanhei a sala descontente No mudo treno, em que ela te embalava. Vinha das cousas trêmulo soluço; E a voz dormia à sombra do teu buço, Num leito onde há só pérolas e lava. ANDANDO PARA O INFINITO Sou aos teus pés, como o areal sedento: A água toda do céu nunca o sacia; E pode, a noite remendada ao dia, Cair-lhe de pancada, ou lento e lento. Sou um faminto a precisar sustento, Sempre a febre, que o forno acende e cria, Morda-lhe o seio esplêndido e opulento, Beba-lhe à boca, um cíato, a ambrosia. O meu amor trabalha em refazê-la, Quando a gole ou de vez a vou haurindo... Creio que engulo estrela sobre estrela, Feita das carnes do seu corpo lindo: Já não me afundo em céus: para contê-la, Sinto o infinito em mim abrindo... abrindo... AND MORE... Quando um dia tristíssimo e cinzento Da muita névoa, que no céu havia, Quase à beira da noite, (e era tão fria, Que era um ninho de penas o aposento) Eu te pedi que fosses um momento Ver como a luz sangrenta inda escorria Longe, do flanco nu da penedia, Porta aberta, que ao céu rasgara o vento: E insisti, e partimos: vendo o poente Deserto, e turvo o espaço simplesmente, Então? gemeste trêmula, e espantada: Antes que alguém atrás de nós chegasse, Eu te beijava o seio, o colo, a face, Céu e luz, te dizendo, és tu; mais nada... SURPRESA Vais dormir. Como sai do oceano a aurora, Entras a alcova: rola-te nas costas O feixe astral das tranças; tens de fora As duas mãos nas longas coxas postas. De prata nova é cada estrela agora, Mosqueando o espaço, e ebriada o espaço arrostas, Revendo-as uma a uma; eis soa uma hora: Rompe a lua, iluminam-se as encostas. Fulge acesa a vidraça: o éter de opala Afunda-se, de estranhas coisas cheio; Larga nódoa de luz manchou-te a sala: Toma-te um frio, um dúbio, um vago enleio... E ante a carícia, em que o luar te embala, Ris... recuas a rir... e arfa-te o seio. O COLO Seu colo é como um lírio, alvo e elevado, Tendo o esplendor dos mármores brunidos, Sobre a espuma das rendas dos vestidos, Como a de um mar em pontas desdobrado. Ondula, como em lago o cisne a nado, Brando volita em todos os sentidos: Tem os giros dos sóis nos céus perdidos, E cheira, como o abrir-se em flor um prado. Fez dele obra de artista florentino Base em que assenta o rosto seu divino, Que de noite e de dia a beijos bordo, E a cabeça, em que um astro anda desfeito Em raios, que dão luz à espádua e ao peito, E a cuja sombra d'oiro eu durmo e acordo... OS SEIOS Nunca te vejo o peito arfar de enleio, Quando de amor, ou de prazer te ebrias, Que não ouça lá dentro as fugidias Aves, baixo alternando algum gorjeio... Aves são, e são duas aves, creio, Que em ti mesma nasceram, e em ti crias, Ao arrulhar de castas melodias, No aroma quente e ebúrneo do teu seio; Têm de uns astros irmãos o movimento, Ou de dois lírios, que balouça o vento, O giro doce, o lânguido vaivém. Oh! quem me dera ver no próprio ninho Se brancas são, como o mais branco arminho, Ou se asas, como as outras pombas, têm... CÉUS IDEAIS Por isso vou às vezes ideando Alcova quente, e leito de frouxel, Jarras com flores cheiros exalando, Taças d'oiro a beirar de leite e mel... Uma casinha, como pomba, olhando A luz do sol, num canto de vergel, O teu sorriso tudo iluminando, E à aba de um lago o lírio de um baixel. A lua à noite docemente vindo Beijar as luas do teu rosto lindo, A brisa a arfar em morna placidez: E tu deitada, e a rir, entre os meus braços, Lendo nas letras d'oiro dos espaços As histórias de amor, que amor lá fez... LOUCURA Tinha garras a voz: eu te feria, Te espostejava num ferrenho enlace; Apunhalara a mesma luz do dia, Que entre nós dois naquele instante entrasse. O rubor só falava em tua face, Era o teu calmo olhar quem só me ouvia; Eu era o oceano que aos teus pés bramia; Tu o sol que o embrandece assim que nasce. Que culpa tem o mar, se o irrita o vento? Quem o vento do mar pôs em presença? Não tira a uma alma a paz o amor violento? E há dentro em ti essa amplidão imensa, Em que Deus cabe, e cabe o firmamento... Delira um doudo, Helena: é crime? Pensa. VELOCINO Que silêncio dormia em toda sala! (Cabe bem neste quadro a formosura) Foi meu amigo, é meu amigo, e dura, Para dar tempo; enfim quer me entregá-la. Eu murmurava cousas que murmura O amor numa hora, em que ele sonha, e fala Rimas de fogo, e as asas com brandura Abre, como quem canta, e abre uma vala. Ria, chorava, convulsava um pouco: Ela estava enleada: eu 'stava louco... Ergo-a ao leito: este riu-se, ao recebê-la... Das roupas brancas, que rasguei, despida, Entre as coxas ao ver, que a vi ferida, Era ela toda o estremecer da estrela... DOR E PRAZER Por ti a dor somente hoje conheço. Como por ti me vem toda a alegria, Quando canta por cima do teu beiço Agora o riso, agora a luz do dia. Dantes homem eu era; sofreria: Mas depois, que te vi, e amei, esqueço Se há na terra soluços de agonia; Para gozar-te, Amor, aos teus pés desço. Quando ao colo te aperto, o mais olvido: E é tal a ebriez a ter-te encadeada, Que a vir um culto dar-te, a Deus convido: Porque é minha alma em ti a luz ideada, Porque o mais tudo é fugitivo ruído: Tudo, Helena, sem ti, que vale? Nada... ÍMPETO DE LOBO Helena estava em frente da janela, Por onde o vento francamente entrava; E a morder-lhe o pescoço, levantava Os fios de ouro dos cabelos dela. A cabeça inclinada à luz da vela, Que ora estava serena, ora oscilava, Escrevia: a letra miúda escorregava, Vermiculando o chão branco da tela. Eu, atrás dela, em sua alcova estreita, Como quem um qualquer segredo espreita, Ardia ao fogo atroz de mil desejos... Agarrar, como quem fizesse um roubo, A nuca, e como em fome e em sede um lobo Tragá-la aos poucos, gole a gole, em beijos... Outros sonetos que prefiro em Delfino: AOS VERMES Tendes também espaço no horizonte, Vermes, que o eterno sol redoira e anima; Dou-vos asas, subi: à minha fronte Que sombra escassa e vã lançais por cima!... Eu ato, quando quero, o vale ao monte, O Olimpo ao Céu, e os deuses que a musa intima: E estrela a estrela amarro, e lanço a ponte, Em que anda o grupo harmônico da rima. É um coche de pérola o soneto: E quando dentro dele os mundos meto, A estrofe ala-se, e canta, e canta, e o tira. No caminho saúdam-no as Quimeras: E ao vê-lo, a um tempo, calam-se as Esferas, Aos seios de oiro atravessando a lira. A RIMA Um sussurro de estrofes, que hás ouvido, Helena, que te acorda, e leva, e embala, Essa harmonia foi preciso dá-la Às canções, como o corpo ao teu vestido. Ele é sem ele um ser emudecido, Vivo sim! que respira, e que não fala; Uma flor que perfumes não exala, Um pé que pisa e passa sem ruído. É o vento que mexe o bosque inteiro; É do hálito teu o aflar e o cheiro: E o som do fogo a arder não é diverso. A rima, a rima, a sonorosa rima, Bater de asas de pássaros, que anima, E dá vida, e rumor, e vôo ao verso... O CÉU É UM CRIME Quando me lembro triste e descontente, Que essas linhas de tua forma pura, Que esses irradiamentos de brancura, Que a tua carne cetinosa e quente, Que isso morre, isso acaba, e tudo mente; Que não serás um dia a formosura, Que eu via com prazer e com ternura, Como serpe a enrolar-me um fogo ardente, Num frêmito de um gozo indefinido; O coração em dois por ti partido, Às carícias de tua voz sublime; A mão, que toca, e como um lírio afaga... E que isto tudo se esvaece e apaga... O céu depois só me parece um crime... O AMOR O amor!... Um sonho, um nome, uma quimera, Uma sombra, um perfume, uma cintila, Que pendura universos na pupila, E eterniza numa alma a primavera; Que faz o ninho, e dá meiguice à fera, E humaniza o rochedo, e o bronze, e a argila, Sem o afago do qual Deus se aniquila Dentro da própria luminosa esfera. A música dos sóis, o ardor do verme, O beijo louco da semente inerme, Vulcão, que o vento arrasta em tênues pós: Curvas suaves, deslumbrantes seios De vida e formas variegadas cheios, É o amor em nós, e o amor fora de nós. O AMOR E A ETERNIDADE Helena, o amor não é um sol bendito, Não é o idílio dentro de uma gruta; É o abismo sem fundo, é a treva abrupta, Que se abre em longo e doloroso grito; É andar neste exício em que me agito; É conhecer a dúvida na luta; Fala o universo, e temeroso o escuta O amor, o pobre escravo do infinito. Não ela a dor a dor de idade em idade; Quem não ama, e interrompe o pensamento De um Deus, emenda-o, e dele enfim se evade. Não é mais folha solta entregue ao vento; É com amor a vida a eternidade, É sem amor a vida um só momento... A DEUSA O seu pescoço esplêndido e robusto Implantado às espáduas fortemente, Presta-lhe um ar olímpico e imponente; De Vênus dá-lhe gesto altivo e augusto; E sustém-lhe a cabeça bela: é justo, Porque dos deuses vem; e se presente No andar, na voz, no riso negligente: Mete em tudo, que a cerca, estranho susto: Tão grande e superior ela parece, Que não é muito a admiração e o espanto: Segue-se ao espanto o amor; ao amor a prece. És tu, Helena, a deusa, o enleio, o encanto: É de ti, que, em mim só, todo um céu desce: A ti meus olhos, como a um céu, levanto... O TESTAMENTO Se algum dia te vir, celeste Helena, Mais branca do que os teus lençóis de linho, Como um pássaro morto no caminho, Morta em antes de vir a tarde amena, Deixa-me o gozo ao último carinho, Que podes dar-me sem remorso ou pena, E, como um'ave, que procura um ninho, Pôr meu lábio em teu rosto de açucena. Dize que cedes já ao meu desejo, Que eu posso à face bela haurir-te um beijo, O meu primeiro e último sequer... Eu nunca quis, nem quero inda outra cousa: Abre-me os braços nesse leito, esposa; Dá-me o teu seio: espera-me, mulher... CHEIRO PREFERIDO Helena, um cheiro tens na carne ardente, Que não há nos jardins, nem nas florestas; Nem sai dos vasos, nas noturnas festas, Onde há mulheres belas em torrente, Faiscando jóias lúbricas, funestas... Prende minh'alma delirantemente Esse odor, que em ti sinto, e ninguém sente Desprender-se outro igual d'algumas destas. Só em olhar-te e ver-te o tempo emprego: Eu te conheço; para o mais sou cego... Para servir-te, a natureza é pouca: Inda, para isso, o céu teus gestos toma... E enquanto eu, como abelha, ando-te à boca, Haurindo o mel, que dá seu fluido aroma... CRER E NÃO CRER Contradizer-nos sempre dia a dia, Hora a hora, talvez instante a instante! Tem tantas faces o cristal iriante, Que em cada volta a cor da luz varia. O universo visões estranhas cria: É, não é; minha Helena, é ir adiante: São os séculos degraus da escadaria, Que vai calcando espírito gigante: E ele aí fica em dúvida perene! E nos vaivéns terríveis, que o consomem, Só tem de certo a dor... a dor infrene. Somem-se os céus com os deuses que se somem: Nenhum ditame, que alma enfim serene: Crer e não crer!... Que verme hediondo é o homem!... O DESTINO O rio vem do mar, para o mar corre: Quem sabe por que nasce e por que morre? Sabe o sol que ele faz a madrugada? Quem fez de um grão de areia este universo? Não podia fazê-lo outro e diverso? Pode cousa qualquer sair do nada? Por que nos fez assim com fome e sede, Selvagem, como a fera da floresta, E não pôs tudo numa eterna festa? Quem deu a vida, não daria a rede Em que se embala o Índio do arvoredo, Mas que ele arranca ao tronco com trabalho? Ruge em torno de nós a dor e o medo. Nada vales, Helena, e eu nada valho?!... A PRETA NA CABANA Esta preta que vês junto à cabana, Velha, gasta, pedindo-te uma esmola, Teve na terra benfazeja a escola Do trabalho, do amor, da luta humana. Deixou a pátria tórrida africana Pelo Brasil, onde é soberba a flora; E, no país, em que ela é livre agora, Viveu escrava e a um tempo soberana. Misturou o seu sangue ao nosso sangue, O seu suor, no campo, ao suor da aurora, Deu força e alento ao nosso corpo langue. Helena, inda hoje embala-nos nas sestas, Como ria no lar conosco outrora, E eram suas também as nossas festas... O IMPOSSÍVEL Queres que fale em Deus? Que contra-senso!... Que falar pode a pobre criatura? Há na semente uma árvore futura; Equilibram-se os sóis no espaço imenso. Dentro e fora de nós nevoeiro denso: Sei que a vida é por mim, por ti, que dura; Há quem o veja e meça-lhe a estatura? Não o afirmo, nem nego. Cismo e penso... Deus não tem atributo algum humano: Deus é Deus, porque é Deus, Helena amada... O seu nome em meus lábios não profano. A nossa inteligência limitada Não conhece o arquiteto, a obra, o plano; E o que sabe melhor não sabe nada... DEUS PELA MULHER Basta, Helena, que em ti Vênus renasça; Teu nome é sempre Vaga e Movimento; Teu apelido eternamente Vento Que ciciando osculta tudo, e passa. Tu, Mulher, hás-de ser a ebúrnea taça, Cheia de sóis, por onde o pensamento Bebe a luz, bebe a força, e bebe o alento, E o divino esplendor, que põe na raça. Eva imortal, tu és a formosura; És Mãe; e como mãe és boa, e pura: Não tens lua aos teus pés, nem sóis tu calças: Mas por ti vai-se a Deus, e a compreendê-lo, Tu nos ensinas, mesmo a ver, sem vê-lo... E essas belas visões jamais são falsas... QUE SABEMOS? Só de ilusões, Helena, é que vivemos: Temos em nosso cérebro guardado Tudo que nossos pais já têm pensado, Tudo que de presente inda aprendemos. Sabemos muito! Então o que sabemos? Eis a cova: o que existe do outro lado? Que mundo há num argueiro guardado? Que quer este universo? O fato aí temos... O céu 'stá cheio acaso, ou 'stá deserto? Eu não sei bem se acerto, ou se me iludo! Na ilusão vivo; na ilusão desperto? Amontoando estudo sobre estudo, Sabemos muito, muito, muito, é certo... Mas que sabemos nós no fim de tudo?!... ESCURIDÃO A um Deus Ignoto o hino meu entôo? Não sei se a morte é sono, ou queda, ou vôo... Quem vela e cuida desta natureza? Quem tece a luz do sol de cada dia? Quem linho branco para o lírio fia? E o dano? não nos vem, como surpresa? Completa em nós sua vontade: esteja, Como ele quer, no Deus que o serve, e o habita; E a sua força única, infinita Erga, ou destrua a sua grande igreja... Tanto ele faz, e que ele se não veja!... Se nós pensamos, ele o que cogita? Que alvo esse Deus, Helena, ou mostra, ou fita? É... Eu sei quem é ele? Eu sei quem seja?... A COUSA ESPANTOSA Parar devemos dentro do universo: Nele o humano saber tem seu limite... Não há mais nada que a alma exalte, e irrite, E torne o ser, que pensa, um ser perverso. Helena, acaso Deus nos é adverso? Quem pois nos farta o indômito apetite? O mundo além do túmulo é diverso? Julga alguém que esse mundo o nosso imite? E o que é essência, causa, eternidade? E essa causa sem causa, esse infinito, Isso que não começa, nem acaba? Em tudo está presente a Divindade... Crê: adora... Isso basta? Oh! sonho! oh! mito!... Isso, Helena, isso tudo oprime, esmaga!... CRENÇA E DÚVIDA Mas isto é uma hipótese sublime: No fim de tudo a dúvida nos resta! Há de durar continuamente a festa, Que nos embala? A crença? Esta sorri-me. Mas dobra o homem, como a brisa ao vime: A alma vacila, sempre à idéia infesta: Quando saímos finalmente desta Existência a outra vida enfim que exprime? Somos um elo desta natureza, Nos fundimos em Deus... Mas há certeza? Razão, és bola, e como bola és oca!... À terra, por que então mandados fomos? Seremos verme? ou somos Deus? Que somos? Abismo, fala: para que tens boca?... A IMORTALIDADE DE HELENA Deixa o tempo passar; e embora passe Do corpo teu o mármore divino, Ficará impoluto: em tua face Sempre há de haver um brilho peregrino. Eu ensinei as cousas; e inda ensino O prazer a sorrir-te, onde te achasse: Segredei uma prece ao teu destino: Hás-de ser, como o sol, que morre, e nasce. Não perderás a tua mocidade; Rasguei-te funda esfera azul, serena, Onde abrirás as asas à vontade; Onde podes ser água, ou ser falena: Dei-te a beber a Imortalidade Nos versos meus. Fui o teu Deus, Helena. NO LEITO Como estátua de mármore, na cama Feita de linho, e sobre o nevoeiro De rendas, em que rola o travesseiro, Que luar doce o corpo teu derrama. Azula-o brandamente etérea chama, Molha-o a luz do teu olhar fagueiro; E o sol, nos teus dois sóis prisioneiro, Embalde ir para o céu forceja e clama. Deixa-o ir. Fica tu serena e casta No calor desta alcova pequenina, Que a imensa curva azul talvez mais vasta. Deixa-me após na luz que me fascina, Deste céu em que estás, e que me basta, Cair morto aos teus pés, mulher divina. CADÁVER DE VIRGEM Estava no caixão como num leito, Palidamente fria e adormecida; As mãos cruzadas sobre o casto peito, E em cada olhar sem luz um sol sem vida. Pés atados com fita em nó perfeito, De roupas alvas de cetim vestida, O torso duro, rígido, direito, A face calma, lânguida, abatida... O diadema das virgens sobre a testa, Níveo lírio entre as mãos, toda enfeitada, Mas como noiva que cansou da festa... Por seis cavalos brancos arrancada, Onde vais tu dormir a longa sesta Na mole cama em que te vi deitada? ÓDIO ESTÉRIL Gosta de ver a multidão rendida Esta mulher, mais velha irmã da aurora, Que, há muito tempo, do botão da vida Toda nova, a áurea fronte pôs de fora. Contudo a luz da tarde amortecida Doira-lhe a tez da cor triunfal de outrora, E inda conta, sorrindo, hora por hora Muita cabeça aos seus dois pés caída; Seu poder, cheio de desdéns, não cansa: E o alfange rubro, o seu rir voluptuoso, Abate a quantos enche de esperança. Mas eu... por lhe não dar estranho gozo, Dou-lhe o meu ódio... e sei que esta vingança É um lobo a uivar por seu luar formoso!... TELA APAGADA Como isto aqui mudou!... Agosto, o ano passado, Tinha mais sol, mais luz, mais calor, menos frio; Mas tudo o mais é o mesmo: a água do mesmo rio, A ponte de madeira, as mangueiras, ao lado, Velhas, grandes, em flor, o lanço esburacado Do muro, e o líquen nele, e a avenca, e o luzidio Lacrau, que salta, e vira, e já volta ao desvio; O cão ganindo; e a um canto, à esquerda, ao longe, o prado. Bambus em renque, em meio o caminho, e no espaço, Longe do morro, ao fundo, a casa; e no terraço Sobre o jardim, talhando o ar cintilante, a imagem De um anjo, um áureo nimbo à coma, o olhar humano Como jamais pintou Corrégio ou Ticiano: Quem, levando-a, apagou a esplêndida paisagem!... NUM CARRO DE BOIS Desde a infância, imortais, vós sonhadores sois!... Vós, ó poetas, só vós, ouvis a sinfonia Que espalhavam na estrada, ao declinar do dia, Um velho, um carro tosco e dous morosos bois!... Que véu d'opala e d'oiro em pó fino os cobria... Como, a se entrerroçar; inclinavam-se os dois!... Pelas cercas à flor a luz inda sorria, Dulias de aroma à luz cantava a flor depois!... Quando, a aguilhada ao ombro, o carreiro indolente, Deixava-me ir na caixa, agarrada aos fueiros, De lá eu via o sol descer pisando, ao poente, Espáduas colossais de deuses prisioneiros; Enquanto ouvia já passar furtivamente As Dríades no vale, os Silfos nos outeiros... GAIVOTAS Do crespo mar azul brancas gaivotas Voam de leite e neve o céu manchando, E vão abrindo às regiões remotas As asas, em silêncio, à tarde, e em bando. Depois se perdem pelo espaço ignotas, O ninho das estrelas procurando: Cerras os cílios, com teu dedo notas Que elas vêm outra vez o azul furando. Uma na vaga buliçosa dorme, Uma revoa em cima, outra mais baixo... E ronca o abismo do oceano enorme... Cai o sol, como já queimado facho... Do lado oposto espia a noite informe... Tu me perguntas se isto é belo?... e eu acho... A SULTANA Foi festa, e grande, em toda a Cachemira Quando chegou, montada no elefante... Viu-se em leve sandália de safira O seu pé de uma alvura deslumbrante; Colhendo as sedas, sua mão ferira Com luz nevada a multidão, diante Da qual o rosto apenas descobrira Na sombra do riquíssimo turbante; Mas quando viram seus nevados seios, Brancos, riscados de azulados veios, C'roados de uma auréola de cabelos, Tênues fios de estrela que irradia... Para não ofendê-la à luz do dia Fugiram dela ao trote de camelos. A CEGA A vida... quem a fez, fez a dor: punhalada; Fez-se o mar, pôs-se nele um crime: a tempestade; Inventou-se o terror servindo à crueldade; Fez-se a flor, nela dorme o veneno: emboscada. Fez-se a rosa, o que é bom, para o espinho: cilada; Fez-se o céu, um abismo; outro, o inferno: maldade; Fez-se o verme, um horror, torpe inutilidade; Enfim o homem fez Deus: Deus fez isto, e mais nada. Deus não ama a ninguém, como a ninguém odeia; Do seu nome, isto só, toda a terra está cheia; Como nós, qualquer vício ele em si mesmo traz. A força será sempre essa louca, essa cega Que tudo deixa, e logo em tudo outra vez pega, E, Penélope eterna, anda, faz e desfaz?... DEUS Deus existe? ou é Deus somente um nome em vão?... E bato às portas d'ouro e de opala da aurora, Donde o sol velho leão noite e estrelas devora: E às estrelas da noite em louco turbilhão... Ao mar, ao vento, ao raio, ao tempo, ao abismo em fora, Ao argueiro, e à montanha, às lavas, e ao vulcão, Ao passado, ao porvir, ao berço, à cova... Embora!... Cala-se a natureza ou me responde: Não. Subo à minha alma então: Chamo-a, interrogo-a... Nada E ela fica a oscilar, no abismo pendurada, Vendo o espaço afundar-se em outro espaço sem fim... Só entre o torvelim dos caos em labirinto, Como com seu bordão na areia um cego, o instinto Sobre a poeira dos sóis grava um trêmulo Sim. À HORA DO ALMOÇO Pelo sapê furado da palhoça Milhões de astros agarram-se luzindo; O pai, há muito, madrugou na roça: A mãe prepara o almoço. O sol é lindo. Canta a cigarra; o porco cheira; engrossa O fumo dos tições; anda zunindo À porta um marimbondo; e fazem troça As crianças com um ramo o perseguindo. Correm, chilram, vozeiam, tropeçando Num velho pote; a mãe, zangada, ralha. A avó lhes lança o olhar inquieto e brando. No chão um galo ajunta o milho e o espalha, Enquanto a um canto, as penas arrufando, Põe a galinha num jacá de palha. ENTRADA NA FLORESTA Há uma nódoa branca na verdura: Um novo aroma bom a selva exala: Troncos, de pé!... Quem vai, quem vai buscá-la? Honra-vos, bosque, a sua formosura! Ei-la aí. Esta mata ou treme ou fala: Tem cada galho em êxtasis; ternura A sombra; o sol ebria-se a fitá-la, Num voluptuoso espasmo de ventura. Traçam-lhe um ninho os pássaros; de esguelha Olha-a um fauno; enche-a a luz de pedrarias; O ar a oscula, a aquece, a faz vermelha. Metem-se em líquens d'oiro as penedias; Para ouvi-la, o grotão lhe estende a orelha; Cantam, para embalá-la, as ramarias. UBI NATUS SUM Na rua Augusta, em Santa Catarina, A cama em cima duns pranchões de pinho, Aí nasci, foi aí o humilde ninho De uma criatura mórbida e franzina. Nos fundos de uma loja pequenina, O lençol branco a arder na luz do linho, Da minha mãe, da minha mãe divina, Tive o primeiro tépido carinho. Meu pai foi sempre a honra em forma humana, Tinha a virtude máscula e romana, Não era austero só, era feroz. Trabalhava incessante, noite e dia, Como um leão seu antro defendia, E era uma pomba para todos nós... A COVA Faz mais larga essa cova, estúpido coveiro; Pois não vês que são dois buscando o mesmo leito? É preciso que caiba um longo travesseiro, Para dormirem face a face, peito a peito. Virei deitar-me em tempo: hoje não, não me deito Sem que nos braços meus a carregue primeiro: Quero cobri-la bem, pôr-lhe o tronco direito; Que é muito longo sempre o sono derradeiro Guarda do cemitério, o jardineiro aí fica, Quero roseiras só, quero muitas roseiras; Que ardam rosas em que seu corpo multiplica. Que os pássaros aqui cantem horas inteiras: Que esta leiva, em que está da terra a flor mais rica, Seja o teu ninho, amor, quando um ninho, amor, queiras. JESUS AO COLO DE MADALENA Jesus expira, o humilde e grande obreiro!... Sobem já, pela cruz acima, escadas; E nos cravos varados do madeiro Batem os malhos, cruzam-se as pancadas. Ouve-se o choro em torno. As mãos primeiro, Inertes, caem no ar dependuradas; A fronte oscila; arqueia o tronco inteiro Nos braços das mulheres desgrenhadas. Soltam-se os pés. Aumenta o pranto e a queixa. Só Madalena ao oiro da madeixa Limpa-lhe a face, que de manso inclina. E no meio da lágrima mais linda, Com o dedo erguendo a pálpebra divina, Busca ver se Ele a vê... beijando-o ainda!... O COLO Seu colo é como um lírio, alvo e elevado, Tendo o esplendor dos mármores brunidos, Sobre a espuma das rendas dos vestidos, Como a de um mar em pontas desdobrado. Ondula, como em lago o cisne a nado, Brando volita em todos os sentidos: Tem os giros dos sóis nos céus perdidos, E cheira, como o abrir-se em flor um prado. Fez dele obra de artista florentino Base em que assenta o rosto seu divino, Onde de noite e de dia a beijos bordo, E a cabeça, em que um astro anda desfeito Em raios, que dão luz à espádua e ao peito, E a cuja sombra d'oiro eu durmo e acordo... A PERNA Esta é bem como o limiar augusto De Éden, em que ninguém ainda há vivido: Que causa, a quem quer ir, terror e susto, Pois guarda-o um anjo de clarões vestido. Quem o caminho dele sabe ao justo? O carreiro das rosas é sabido; Das pombas brancas ao pombal hei ido: Mas... como ao paraíso ir mesmo a custo? E todavia aquela perna indica Que muito longe dela o céu não fica: Tentar, como um Titã de um raio em troco? Aquela ponte de marfim maciço Passar, subir... quem pode fazer isso? Um louco? Eu vou... Quem há do que eu mais louco? CAVERNA RUBRA Quando, caverna rubra e monstruosa, Onde habitam os deuses deslumbrantes Sobre cochins de sedas cor-de-rosa, Talhados para toros de gigantes; Quando paro ante ti alguns instantes, Na raiva doida, lúbrica, ansiosa, Sombra no rosto, os membros palpitantes, À porta augusta, viva e esplendorosa; Eu quisera furtar-me à covardia Dos sóis, dos universos afrontados, Hirtos de inveja, horrendos de ironia, Caindo em teus abismos estrelados, Caverna rubra, aberta na harmonia De um corpo feito de clarões coalhados... DEPOIS DO BANHO Sai do banho: o seu corpo alabastrino Goteja: a água murmura do abandono; Vê-se abatida, lânguida, com sono... Lança mão do lençol, quase sem tino. Mostra-lhe o espelho o corpo peregrino: Ela o admira, e busca ver-lhe o dono... Anjo, merece um céu; mulher, um trono: Cisma, e sacode as tranças d'oiro fino. Senta-se, e mostra a orla avermelhada De uma estrela, que imerge no infinito, Sob uma névoa loura ainda molhada. Seu rosto inquieto oscila alegre e aflito: Mas... numas longas asas confiada, Pensa fugir ao mais ligeiro grito... LAETITIA Morre: ninguém te há de querer tão fria, Nem contigo dormir no mesmo leito; Ninguém mais ouça, dentro do teu peito, Bater-te o coração como batia. Na tua alcova há de cantar o dia; E o ninho, onde emplumou teu corpo, feito Do que o céu tem de bom e há de harmonia, Fique a estranho ludíbrio enfim sujeito. Leva contigo a luz da tua aurora, Leva a cruz branca dos teus braços, corta Tudo que a ti me prende e vai-te embora. Como és bela ainda assim!... isso que importa? Enquanto em torno tudo é triste e chora... Oh! que alegria eu sinto em ver-te morta!... IN HER BOOK Ela andou por aqui; andou. Primeiro, Porque há traços de suas mãos; segundo, Porque ninguém, como ela, tem no mundo Este esquisito, este suave cheiro. Livro, de beijos meus teu rosto inundo, Porque dormiste sob o travesseiro Em que ela dorme o seu dormir, ligeiro Como um sono de estrela em céu profundo. Trouxeste dela o odor de uma caçoula, A luz que canta, a mansidão da rola E esse estranho mexer de etéreos ninhos... Ruflos de asas, amoras dos silvedos, Frescuras d'água, sombras e arvoredos Dando seca aos rosais pelos caminhos... UM DUELO DE MORTE Ao ver-te assim, ó! virgem deslumbrante, Sinto a ferocidade da pantera Quando nas curvas garras dilacera A carne em sangue quente e palpitante. Tu tens o olhar do caçador triunfante, Que o salto do animal feroz espera, E está firme na tua mão possante, O ferro, em que se atira, urrando, a fera... Por isso estou de longe a ver-te: estudo A voz, o riso, o teu silêncio, o porte... Triste, irado, brutal, furioso, mudo... E a emoção, que te abala o peito forte, O que te enerva, cega, irrita... tudo... Pois, ou morro, ou te dou num beijo a morte... O BELO FEMININO És tu, beleza, a cortesã primeira, És tu quem desce sobre o corpo dela No dia em que era esplêndida donzela, E que a fizeste tua prisioneira. Tu, não ela, tu és a verdadeira Prostituída e vil: és tu quem gela E mata d'alma a candidez singela, Tu, beleza funesta e traiçoeira. Por que não vestes só as almas castas? Por que não deixas tu as almas mortas? Por que não vais às regiões mais vastas? Por que não foges para os céus? Suportas Esses anjos sem luz, e não afastas Quem vai bater ao céu de suas portas!... CAPRICHO DE DEUSA Às vezes esta deusa, esta princesa Despe a clâmide branca, a toga austera, E dos degraus de estrela de onde impera Baixa à terra numa hora de fraqueza. Quer ser mulher e entrar na natureza, Vem até mim, como domada fera, Beija-me a boca e foge, e não espera... Ateia a chama e a chama aí fica acesa. De longe, só para molestar-me, insiste A olhar-me, a olhar-me!... E após, ao ver-me triste, Na voz um riso, um riso na retina, Meu coração agarra, agarra e estrinca, Como quem, por passar o tempo, brinca Com um pomo preso ao galho que se inclina... PRIMEIRA MISSA NO BRASIL (a Vítor Meireles) Céu transparente, azul, profundo, luminoso; Montanhas longe, encima, à esquerda, empoeiradas De luz úmida e branca; o oceano majestoso À direita, em miniatura; as vagas aniladas Coalham naus de Cabral; mexem-se inda ancoradas; A praia encurva o colo ardente e gracioso; Fulge a concha na areia a cintilar; grupadas As piteiras em flor dão ao quadro um repouso. Serpeja a liana a rir; a mata se condensa, Cai no meio da tela: um povo estranho a eriça; Sobre o altar tosco pau ergue-se em cruz imensa. Da armada a gente ajoelha; a luz golfa maciça Sobre a clareira; e um frade, ao ar, que a selva incensa, Nas terras do Brasil reza a primeira missa. HINO À MULHER Mulher, lírio puríssimo do vale, Eva criada, Eva renascida, Só para amar e para ser querida, Há perfeição acaso que te iguale? Antes que o alento extremo o poeta exale, Sabe que de ti sai perene a vida: Que sendo a Virgem-Mãe preconcebida, Ninguém na terra ou céu hoje te vale. Há um clarão sutil e peregrino Que em ti corre e te faz um ser divino, Tens em ti, alma e corpo, a luz dos sóis. Há um Deus? És a Mãe: Ele é teu filho; Há um Herói? De ti lhe vem o brilho: Mulher, ó Mãe de Deuses e de Heróis. TERROR Quando vejo o teu corpo doentio Tremer, como haste branda a vento forte, Amortalha-me um hirto calafrio, Como se me tocasse a asa da morte. Um pensamento lôbrego e sombrio De alguém, que o doce e tênue fio corte De tua vida, assalta-me; mas rio, Pensando que hei de ter a mesma sorte. Tu não podes descer à sepultura, Sem que leves as horas de ventura, Que em ti achou minha alma, um vasto arneiro. Em teu trespasse, pois, quando tu fores, Morram os sóis no céu, no campo as flores... E, olha, espera, até logo, eu vou primeiro... CONVENTO DA BATALHA Epopéia da pedra, hino em mármore escrito, Cada estrangeiro arranca um pouco do colosso; Cospe-lhe à fronte o raio o luminoso grito, Ladram-lhe aos pés a fome e as iras do molosso. Encostado aos poiais da escadaria, o moço Campônio a frauta ensaia indiferente: ao infinito, Águias negras em um fantástico alvoroço Alam-se as torres sobre as asas de granito. E aquela mole imensa, arcos, aterradoras Pontes, e botaréus, e zimbórios, luzernas De colunas trepando, orquestras triunfadoras, Cantos, que os carrilhões lhe arrancam das entranhas, Que fluem vales além, e além enchem montanhas, Tudo ela dá na paz das construções eternas... A ARANHA Quando na fina, complicada teia A mosca prende as asas rutilantes, E sente em cada pé uma cadeia, Que ao céu lhe furta os vôos iriantes, Stringe... que quase o ergástulo baqueia: Tempesteia, reluta alguns instantes: Porém de longe a aranha escura e feia Lhe alteia o muro, aos gritos lacerantes; Stringe... revoa, cai: stringe, desata As asas da esmeralda, e oiro, e prata, Como lutara uma águia emaranhada, E Prometeu: mas cede à força estranha. Move-se então, caminha, chega a aranha. E, antes que a empolgue, pára inda aterrada. NA REPÚBLICA Queres saber o que anda de verdade Neste nosso país, e de ano em ano? Nosso país, Helena, eu não profano, Mas o Brasil não sente a liberdade. Bárbaro é o povo, espuma de outra idade; Há vão orgulho num republicano: Nos chefes mesmo há gestos de um tirano, E de um César a cega fatuidade. Helena, te direi, por mais que pense, Estou numa república insensata: Meu tipo à Grécia de Platão pertence. Quisera, esbelta e linda aristocrata, Ao pé de mim o artista ateniense, Moldando o ouro, e num Deus dando alma à prata. A POESIA O que é poesia, Helena? O céu invade, E tudo une e desune e tudo enfeixa; E tudo mete em sonorosa endeixa, E tudo quanto foi, e inda ser há de. É a voz de Deus, o som da tempestade: Dá músicas ao mar, amor à queixa: E ela em seu manto embrulha os sóis, e deixa A ira enleá-la, e é cheia de bondade. Embala o berço, e faz dançar a boda: Mesmo ao trágico empresta os seus encantos: Dá voz sublime à ventania douda. É de existência dor, sorriso, prantos: E a grande, a rica natureza toda Luz, freme, goza, sofre, haure em seus cantos... A PASSARADA EM FESTA Helena a festa vê da passarada: Coalha todo o jardim, e todo o prado; Não há um palmo só do chão deixado, Onde não haja uma asa desdobrada: Foi como uma cascata desatada: O céu azul amanheceu toldado; Ramas de troncos, beiras de telhado... Sem vôos, sem chilrar não há mais nada. Um gato se distende, e se adelgaça, Mescla-se a relva, e nela entrar parece, Até que junto um pássaro lhe passa: Ele rápido o agarra, e o sangra, e cresce, E se encurva, e outra vez espreita a caça, Até que nova presa lhe aparece. AO PASSAR DE UM ATAÚDE Viu Helena o ataúde, que passava, Levando os restos duma forma humana; Pois o tempo, que a cria, inda a profana... E o eco da dor nas faces lhe ficava. Quando se morre, o verme não se engana, E os mesmos dentes roedores crava Nas carnes frias de uma humilde escrava, Ou nas carnes da altiva soberana. Dos longos cílios de oiro rorejados, Glóbulos trêmulos, meio pendurados Nadam na luz, que nos seus olhos brilha! Mas que grandeza vai nesse abandono! Helena tudo vê de sobre um trono, Formosa, augusta e triste, à maravilha...
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |