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Domingos Pellegrini Jr. (Londrina PR 1949)

Um dos maiores ficcionistas paranaenses sempre foi, também, poeta equipado de armas e bagagens. Aquilo que pouco se sabia, no entanto, é agora revelado pelo próprio autor: sua dedicação aos sonetos, praticados desde os dezesseis anos e hoje reunidos em livro recém-saído da tigela para o forno. Tigela inteira, diga-se, a julgar pela amostra abaixo, selecionada por ele mesmo.


A CHE GUEVARA

Desejo ou sonho faça enquanto moço
enquanto tens a graça de ignorar
falência do tesão ou falta de ar
ou a porosa corrosão dos ossos

Lança teu barco de aventura  ao mar
pega o trem sem saber onde vai dar
o caminho que o coração mandar
e vai feliz entre a fé e os destroços

Grita sem eco por ecologia
cuida de quem depois te assaltará
investe teus tostões na utopia

Deixa a paixão mandar no teu percurso
e em recompensa um dia colherás
boas lembranças em vez de soluços


AMIGOS

Velho amigo, solitário monge
deste morro que já foi pinheiral:
foi você que de longe me viu primeiro
ou eu que te vi desde longe afinal?

O que importa é que estamos aqui
dois sobreviventes de devastações
eu e a alma cicatrizadamente
você sitiado de plantações

Tempo parece que te fortalece
e a mim tem dado ótimas lições
mas não nos iludamos, companheiro:

você perdendo galhos e eu cabelos
vamos para o destino das estrelas
não deixando de dar nossos pinhões


SONHOS

Por que sonhamos? Que mistério há
na seriedade entre saltimbancos?
Por que esperar a vez naquele banco
onde te atende uma gerente má?

Por que sorri o seu sorriso branco
o inimigo com quem tomas chá
e mesmo sabendo que te trairá
propões acordo consistente e franco?

Se lógica existisse nessas tramas
terias conclusões e direção
pra chegar talvez a ser mais gente

Mas o coelho de Alice te chama
para dizer que não não não não não:
sonhar é apenas diversão da mente



ALBERTO

Diziam que balões deviam ser
grandes para enfrentar a ventania
mas o teu balãozinho subiria
miúdo e genial como você

Diziam que um balão explodiria
com motor —  ou cairia a arder
porém ninguém pensou em inverter
o escapamento e pronto, quem diria

Quem diria que de bambu e seda
farias o primeiro aeroplano
contudo todavia e apesar de

Sem o peso do preconceito ou medo
és de todos heróis o mais humano
em sonhar criar ousar e acontecer


VISÃO

Um céu amanhecendo eternamente
e rosas que sempre desabrochassem
num mundo onde não existisse quase
nem talvez —  um mundo plenamente

Pessoas que a toda gente amassem
como a si mesmas —  tão cristãmente
que disso nem se dessem conta: gente
tão cristã que de Cristo nem lembrasse

Países só com cidadãos felizes
pois tão felizes quanto cidadãos
de todas cores, modos e matizes

Tolerância a suprema religião
entre estertores das últimas crises
da ganância, do ódio e da ambição


SONHA

Pé de milho nascido na calçada
filho de alguma semente perdida
conseguirás erguer a tua espiga
entre trânsito tão desatinado?

Pareces um caipira na avenida
esperando do céu a chuvarada
imprevisível mas única amiga
nesse campo de asfalto ressecado

Pois então sonha, pé de milho, sonha:
tua espiga ninguém perceberá
não virará fubá e nem pamonha

Será comida pelos passarinhos
e tuas folhas em tantos beirais
reviverão na alegria dos ninhos


UFA

O centro da cidade me aperreia
onde o deus Caos é quem comanda tudo
ditando pressa aos homens carrancudos
e nas mulheres pondo cara feia

Mendigo exige e o guarda olha mudo
o transeunte o trânsito receia
enquanto alto-falante alardeia
a falta de respeito sobretudo

Fala-se por buzinas e por gestos
agride-se o bom gosto com cartazes
e o bom senso com preços desonestos

Como os meninos a cheirar bagulhos
o ar parece viciado em gases
e as ruas roças de plantar barulho


CINEMA AMERINGANO

Os bandidos dão muitos tiros
e não acertam nenhum
O mocinho dá poucos tiros
e eles caem um a um

Todos sacam seus cigarros
e fumam, fumam como se
fossem todos empregados
da indústria de fumacê

Os policiais trancafiam
os assassinos seriais
depois de mil peripécias

Mas os bandidos reais
(a platéia nem desconfia)
depositam na Suécia


CICLO

O galo sangra a noite e a hemorragia
é não só vermelha: também amarela
apagando a clareza das estrelas
na claridade azulada do dia

Ao meio-dia o céu se incendeia
enquanto as sombras colam nas pessoas
nos brejos amolecem as taboas
cai mornamente na ampulheta a areia

No fim da tarde a brisa é enfermeira
a refrescar as caixas-dágua quentes
no deserto argiloso dos telhados

Com o rosto dourado de poeira
o sol se banha em cores novamente
a se olhar nos frutos madurados


BAIRRO

Os cheiros que te assaltam suavemente
floradas  de quintais e de jardins
de murta na calçada ou alecrim
ou santa-bárbara a chover sementes

A fragrância envolvente do jasmim
esse cheiro de chuva já no vento
e nos escuros entre vagalumes
o perfume moleque dos capins

Um fedor de lixeira de repente
carroçalmente aqui cheiro de estrume
ali cheiro de graxa e de trabalho

E duma casa pobre mas contente
aquele cheiro que o bairro resume
bife fritando com cebola e alho


BALANÇO

Se ambição te pregou já tantas peças
e a ganância só foi má conselheira
também fizeste da dor companheira
e do desastre sempre recomeço

Revirando os revezes pelo avesso
aprendeste  bem que o céu por inteiro
só se abre além dos despenhadeiros
e é perigosa a trilha do sucesso

Enquanto tantos foram por desvios
mesmo cruzando desertos e rios
foste pelo longo caminho certo

O sol está poente porém doura
anunciando estrelas —  e agora
podes em paz fechar os teus sonetos


Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes