|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Mário Faustino dos Santos e Silva (Teresina PI 1930-1962)

Outro dos que morrem prematuramente e deixam livro único, este difere na predileção pelo molde inglês, ainda que branqueando as rimas. Não precisou ser redescoberto, pois já exercia a crítica e respaldava outros poetas experimentais, que lhe reciprocavam o apoio. Não fosse pela preservação do decassílabo, sua hipermetafórica imagética poderia ser levada à conta da escrita automática dum Roberto Piva, até pela afinidade socrática. Bem lembrou Italo Moriconi de incluir seu soneto "Divisamos assim o adolescente" na antologia OS CEM MELHORES POEMAS BRASILEIROS DO SÉCULO.


O MUNDO QUE VENCI DEU-ME UM AMOR

O mundo que venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...


NAM SIBYLLAM...

Lá onde um velho corpo desfraldava
As trêmulas imagens de seus anos;
Onde imaturo corpo condenava
Ao canibal solar seus ternos anos;
Lá onde em cada corpo vi gravadas
Lápides eloqüentes de um passado
Ou de um futuro argüido pelos anos;
Lá cândidos leões alvijubados
Às brisas temporais se espedaçavam
Contra as salsas areias sibilantes;
Lá vi o pó do espaço me enrolando
Em turbilhões de peixes e presságios
Pois na orla do mundo as delatantes
Sombras marinhas, vagas, me apontavam.


INFERNO, ETERNO INVERNO, QUERO DAR

Inferno, eterno inverno, quero dar
Teu nome à dor sem nome deste dia
Sem sol, céu sem furor, praia sem mar,
Escuma de alma à beira da agonia.
Inferno, eterno inverno, quero olhar
De frente a gorja em fogo da elegia,
Outono e purgatório, clima e lar
De silente quimera, quieta e fria.
Inverno, teu inferno a mim não traz
Mais do que a dura imagem do juízo
Final com que me aturde essa falaz
Beleza de teus verbos de granizo:
Carátula celeste, onde o fugaz
Estio de teu riso — paraíso?


AGONISTES

Dormia um redentor no sol que ardia
O louro e a cera, dons hipotecados
Da carne postulada pelo dia;
Dormia um redentor nos incensados
Lençóis que a lua póstuma cobria
De mirra e de açafrões embalsamados;
Dormia um redentor no navegante
Das mortalhas de escuma que roía
O verme de seus sonhos abafados;
E até no atol do sexo triunfante
Do mar e da salsugem da agonia
Dormia um redentor: e era bastante
Para acordá-lo o verso que bramia
No cérebro do atleta e lá morria.


ONDE PAIRA A CANÇÃO RECOMEÇADA

Onde paira a canção recomeçada
No capitel de acanto de teu lar?
Onde prossegue a dança terminada
Nas lajes de meu tempo de chorar?
Rapaz, em minhas mãos cheias de areia
Conto os astros que faltam no horizonte
Da praia soluçante onde passeia
A espuma de teu fim, pranto sem fonte.
Oh juventude, um pálio de inocência
Jamais se estenderá sobre outra aurora
Mais clara que esta clara adolescência
Onde o lupanar da noite hoje devora:
Que vale o lenço impuro da elegia
Sobre teu rosto, lúcida alegria?


EGO DE MONA KATEUDO

Dor, dor de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
Noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminaste.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria.


ESTAVA LÁ AQUILES, QUE ABRAÇAVA

Estava lá Aquiles, que abraçava
Enfim Heitor, secreto personagem
Do sonho que na tenda o torturava;
Estava lá Saul, tendo por pajem
Davi, que ao som da cítara cantava;
E estavam lá seteiros que pensavam
Sebastião e as chagas que o mataram.
Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que os atraiçoaram!
Era a cidade exata, aberta, clara:
Estava lá o arcanjo incendiado
Sentado aos pés de quem desafiara;
E estava lá um deus crucificado
Beijando uma vez mais o enforcado.


CARPE DIEM

Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar — tão nobre.
Já nele a luz da lua — a morte — mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)


A MIS SOLEDADES VOY

Noite, noite após noite, uma outra noite
Veio lembrar-me da beleza, cada
Noite pensando as úlceras do açoite
Solar sobre meus ombros. Noite herdada
De noites ancestrais, áurea cadeia
De lua entrelaçada a lua, estrela
Amalgamada a estrela... A clara teia
Pescava a solidão do sonho pela
Glória do achado faiscante desta
Líquida noite. Estranha, estranha festa
Em que hoje me embebedas, noite ardente:
Mortalhas no oriente e, no nascente,
Fogueiras de alegria... Dura sorte,
Ter de deixar para outra noite a morte.


VIAGEM

Apago a vela, enfuno as velas: planto
Um fruto verde no futuro, e parto
De escuna virgem navegante, e canto
Um mar de peixe e febre e estirpe farto —
E ardendo em festas fogo-embalsamadas
Amo em tropel, corcel, centauramente,
Entre sudários queimo as enfaixadas
Fêmeas que me atormentam, musamente —
E espuma desta vaga danço e sonho
Com címbalos e símbolos, harmônico
Onde executo a flor que em mim se embebe,
Centro e cetro, curvando-se ante a sebe
Divina — a própria morte hoje defloro
E vida eterna engendro: gero, adoro.


SONETO ANTIGO

Esse estoque de amor que acumulei
Ninguém veio comprar a preço justo.
Preparei meu castelo para um rei
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo.

Meu tesouro amoroso há muito as traças
Comeram, secundadas por ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se põe

Sozinho. Agora vou por meus infernos
Sem fantasma buscar entre fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre eternos

Desertos sem retorno, onde olharás
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro
Que até aqui deixei, seguindo um astro.


RESSUSCITADO PELO EMBATE DA RESSACA

Ressuscitado pelo embate da ressaca,
Eu, voz multiplicada, ergo-me e avanço até
O promontório onde um cadáver, posto em maca,
Hecatombado pela vaga, acusa o céu
Com cem olhos abertos. Fujo e, mais adiante,
O açor rebenta o azul e a pomba, espedaçada,
Ensangüenta-me o rastro. Avante, sombra, avante,
Cassa-me a permissão de ficar vivo. O nada
Ladra a meu lado, lambe e morde o calcanhar
Sem asas de quem passa e no espaço se arrasta
Pedindo paz ao fim, que o princípio não basta:
A vitória pertence ao tempo que no ar
Agita um homem só, troféu tripudiado
Pela noite que abate o sol no mar manchado.


NÃO QUERO AMAR O BRAÇO DESCARNADO

Não quero amar o braço descarnado,
Que se oculta em meu braço, nem o peito
Silente que se instala no meu lado,
Onde pulsa de horror um ser desfeito
Na presente visão de meu passado
Em futuro sem tempo contrafeito,
Em tempo sem compasso transmudado.
O morto que em mim jaz aqui rejeito.
Quero entregar-me ao vivo que hoje sua
De medo de perder-me em pleno leito
Rubro de vida e morte em que me deito
À luz de ardente e grave e cheia lua.
Ao que, se a Morte chama ao longe: Mário!,
Me abraça estremecendo em meu sudário.


DIVISAMOS ASSIM O ADOLESCENTE

Divisamos assim o adolescente,
A rir, desnudo, em praias impolutas.
Amado por um fauno sem presente
E sem passado, eternas prostitutas
Velavam por seu sono. Assim, pendente
O rosto sobre um ombro, pelas grutas
Do tempo o contemplamos, refulgente
Segredo de uma concha sem volutas.
Infância e madureza o cortejavam,
Velhice vigilante o protegia.
E loucos e ladrões acalentavam
Seu sono suave, até que um deus fendia
O céu, buscando arrebatá-lo, enquanto
Durasse ainda aquele breve encanto.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes