O SONETO FILOSÓFICO

Se é certo que a finalidade última da filosofia coincide com a das religiões, ou seja, atingir a Verdade, o Bem e a Felicidade, é fundamental um ponto de divergência: ao contrário da religião, a filosofia se perde no meio do caminho, ou seja, na dúvida. De tanto indagar, acaba-se por chegar a respostas contraditórias e antagônicas. Foi pensando nesses dualismos e antíteses que selecionei esta página, deixando para outra, intitulada O SONETO SAGRADO, as manifestações mais místicas e devotas. Também reservei outras duas páginas para o soneto otimista e para o pessimista, quando o teor filosófico ou religioso se coloca a serviço duma perspectiva decididamente positiva ou negativa. Aqui o que interessa é basicamente a dúvida em si, mais que respostas numa ou noutra direção. [GM] SONETO DAS PERGUNTAS [Abgar Renault] Por que uma vária vela vento em fora me arrasta para além daquela curva, e esta âncora, revendo atrás e aurora, prende meu lenho sob uma água turva? Quando eu não for, como será o mundo? Houvera o mesmo chão, se eu não houvesse? A reta mão não toca o céu profundo; como o tocara a voz de oblíqua prece? Por que sou mais mortal e mais ausente na distância fechada à minha frente? Quem me esvaziou de mim, de hoje e de aqui? Entre que relva, em que porão nefando ou absurda cisterna está vagando aquele que já foi — e que perdi? A BELEZA [Afonso Schmidt] Neste crisol do coração, Beleza Que iluminas a nossa noite escura, És a Bondade — que se fez Grandeza E a Dor sofrida — que se fez Doçura. És a muda expressão da Natureza; Beijo no amor, sorriso na candura, Prece na morte, pranto na tristeza E, para os poetas, mística tortura. Ninféia azul no pântano estagnado, Flores brotando na aridez das lousas, Ou mistério no páramo estrelado, Em tudo o que nos cerca, tu repousas, Porque a Beleza é Deus manifestado, A nos sorrir pela expressão das cousas. PRANTO E RISO [Alfredo de Assis] No pranto da criança não diviso Mágoa nenhuma, é tudo luz e encanto; Tem, nuns restos de céu e paraíso, Toda a alegria matinal de um canto. Mas, de um velho, num rápido sorriso, Mágoas profundas eu percebo entanto! No pranto da criança há quase riso, No sorriso do velho há quase pranto!... Ri-se o velho, é um pôr de sol que chora; Chora a criança, é como se uma aurora Num chuveiro de pérolas se abrisse; E tem muito mais luz, mais esperança, A lágrima nos olhos da criança Que o sorriso nos lábios da velhice!... CONTRASTES [Augusto dos Anjos] A antítese do novo e do obsoleto, O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina, O que o homem ama e o que o homem abomina, Tudo convém para o homem ser completo! O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto, Uma feição humana e outra divina São como a eximenina e a endimenina Que servem ambas para o mesmo feto! Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes! Por justaposição destes contrastes, Junta-se um hemisfério a outro hemisfério, Às alegrias juntam-se as tristezas, E o carpinteiro que fabrica as mesas Faz também os caixões do cemitério!... CRER [Bastos Tigre] Entre o crer e o não crer o homem vacila; E vacila e duvida porque pensa. Não pode a mente repousar, tranqüila, Nem mesmo na certeza da descrença. Ora, na Fé, o espírito se asila; Crê. Da Razão as deduções dispensa... Ora, analisa, decompõe, destila E, da ciência ao crisol, exclui a crença. Mas a crença subsiste, onipresente; Argumentos aos mil o sábio emprega E, afirmando o "não crer", é, em suma, um crente. Deus, como a luz do sol, deslumbra e cega; E, por querer fitá-lo frente a frente, O ateu se ofusca, fecha os olhos — nega. ETERNA INCÓGNITA [Bastos Tigre] Não sei quem sou nem sei por que motivo Vim ao mundo e o que nele vim fazer. Sei que penso e, portanto, sei que vivo, Neste anseio instintivo de viver. Porque procedo do homem primitivo, Há rugidos de fera no meu ser. Bom e mau, triste e alegre, humilde e altivo, Não me posso, a mim mesmo, compreender. Pois se, de mim, não sei causa e destino, Que dos outros, do mundo, saberei? Que definir, se a mim não me defino? E sigo, ao léu da vida, a ignota lei, Descrendo das verdades que imagino E acreditando em tudo o que não sei. LOUCA FANTASIA [Cláudio Manuel da Costa] Sonha em torrentes d'água, o que abrasado Na sede ardente está; sonha em riqueza Aquele, que no horror de uma pobreza Anda sempre infeliz, sempre vexado: Assim na agitação de meu cuidado De um contínuo delírio esta alma presa, Quando é tudo rigor, tudo aspereza, Me finjo no prazer de um doce estado. Ao despertar a louca fantasia Do enfermo, do mendigo, se descobre Do torpe engano seu a imagem fria: Que importa pois, que a idéia alívios cobre, Se apesar desta ingrata aleivosia, Quanto mais rico estou, estou mais pobre. IRONIA DE LÁGRIMAS [Cruz e Souza] Junto da Morte é que floresce a Vida! Andamos rindo junto à sepultura. À boca aberta, escancarada, escura da cova é como flor apodrecida. A Morte lembra a estranha Margarida do nosso corpo, Fausto sem ventura... ela anda em torno a toda a criatura numa dança macabra indefinida. Vem revestida em suas negras sedas e as marteladas lúgubres e tredas das ilusões o eterno esquife prega. E adeus caminhos vãos, mundos risonhos! Lá vem a loba que devora os sonhos, faminta, absconsa, imponderada, cega! A DÚVIDA [Emílio de Meneses] É nova a aparição, mas, sendo nova, é a mesma Que, há muito, me procura e se me foge há muito! Se a palpo, ei-la a esgueirar-se em coleios de lesma, Se a sigo, só lhe encontro um rastilho fortuito. Para bem defini-la, embalde, resma a resma, Todo o papel estrago. Em vão traço o circuito Em que a devo prender. Se agora é atra avantesma, Logo é o jogral que ri um ridículo intuito. Ora é o duro pedrouço, ora é um frouxel de paina; Ora o olhar amortece, ora lhe aviva o lume; Ora agita as paixões, ora as paixões amaina. O gesto do perdão e o gesto ultriz resume. E eis-te mal esboçada em tua eterna faina, Sócia eterna do Amor, fonte do eterno Ciúme. REFLEXÕES (VI) [Gilka Machado] Ó meu santo pecado, ó pecadora virtude minha! ó minha hesitação! bem diferente esta existência fora, ermo de ti tão frágil coração!... Se ora és sensualidade cantadora, instinto vivo, alegre volição, logo és consciência calma, pensadora, silenciosa tortura da razão. Contudo, eu te bendigo, eu te bendigo, ó dúbio sentimento, que comigo vives, minha agonia e meu prazer! Quanto lourel minha existência junca, por ti, pecado, que não foste nunca, por ti, virtude, que ainda sabes ser! SONETO 173 ONTOLÓGICO [Glauco Mattoso] Não sei se o ser é somos ou estamos; se somos ser somente estando em vida, ou se já está de fato resolvida a máxima questão: "Para onde vamos?". Se depender do sábio Nostradamus, a vida sobre a Terra é destruída. Mas, para algum profeta, algum druída, é bom que as esperanças não percamos. Questão não é "to be or not to be"; Questão é termos crença de não ser inútil que estejamos por aqui. Não é coisa difícil de entender: O pensamento é válido por si. Pensamos que existimos. Resta crer. PRAZER E PESAR [Gregório de Matos] Um prazer, e um pesar quase irmanados, Um pesar, e um prazer, mas divididos Entraram nesse peito tão unidos, Que Amor os acredita vinculados. No prazer acha Amor os esperados Frutos de seus extremos conseguidos, No pesar acha a dor amortecidos Os vínculos do sangue separados. Mas ai fado cruel! que são azares Toda a sorte, que dás dos teus haveres, Pois val o mesmo dares, que não dares. Emenda-te, fortuna, e quando deres, Não seja esse prazer em dois pesares, Nem prazer enterrado nos Prazeres. DOR OCULTA [Guilherme de Almeida] Quando uma nuvem nômade destila gotas, roçando a crista azul da serra, umas brincam na relva; outras, tranqüila, serenamente entranham-se na terra. E a gente fala da gotinha que erra de folha em folha e, trêmula, cintila, mas nem se lembra da que o solo encerra, da que ficou no coração da argila! Quanta gente, que zomba do desgosto mudo, da angústia que não molha o rosto e que não tomba, em gotas, pelo chão, havia de chorar, se adivinhasse que há lágrimas que correm pela face e outras que rolam pelo coração! A VIDA [Henrique Lagden] Só o Passado é real; o futuro, fantasma Com que a mente dá forma à coisa inexistente. E o minuto, que voa, e chamamos Presente Já ficou para trás tão depressa entusiasma. Toda a vaga ilusão que a humana ambição plasma E supõe realizar hoje mesmo, fremente, Lembra a sorte cruel da gota intercadente Que mal tomba e já abriga o infusório e o miasma. Toda vida é um Passado. O Presente subsiste Como ideal concepção de um desejo, que insiste Nesta glória de abrir ao sonho novas portas. Mas a vida, em si mesma, a existência, afinal, No Presente, fugaz, falaciosa, irreal, Essa existe, direi, mas são as coisas mortas. SENSAÇÕES [Hermes Fontes] Sensações de tristeza ou de alegria, dá-no-las a Alma, como ideal produto das impressões vitais de cada dia engalanado em luz, sombreado em luto. Pode o Espírito estar tranqüilo e enxuto: mas, se os olhos se inquietam, à porfia, a lágrima, que esponta, é já o fruto das sensações... É o coração que expia... E, ao transcorrer desse diamante bruto, a Vida, toda, se consubstancia, tal, um século, às vezes, num minuto! Ilumina-se, assim, a Alma sombria: — o que sinto, olho, gosto, palpo, escuto... — sensações de tristeza ou de alegria... MORAL [Hermes Fontes] Bocas que contra mim e contra a minha suposta ingratidão, Ódio, desatas, são para mim — qual delas mais mesquinha — são para mim, por sua vez — ingratas. Guardam-se nesse afã nomes e datas: bem de ontem, posto à face, hoje espezinha. — Mão que nos afagaste e nos maltratas, só para o afago queres louvaminha... E tem razão quem faz o bem, é exato. E tem razão o favorito, em suma: — são ingratos os dois, nenhum é ingrato... Dessa verdade efêmera ressuma que a moral é de todos, ou, de fato, nunca a moral é de pessoa alguma. SONETO ANCESTRAL [Homero Prates] Homem e estrela, pedra e flor, nuvem e inseto, Fonte e pássaro e planta e verme e águia dos cimos, Exilados irmãos da mesma Pátria, vimos Do oculto sol comum de um só mistério inquieto. Bendizendo o esplendor da Vida em que sorrimos, Unidos sob o Azul natal do mesmo teto, Como os vagos clarões de um astro ermo e secreto, Vamos todos voltando à Luz de onde provimos... Em nossa voz milhões de vidas anteriores Cantam saudosamente, e choram se sofremos, Num clamor ancestral de alegrias e dores... Assim, à ignota paz da mesma Noite, vamos Entre a esperança e o amor do céu para onde iremos E a saudade imortal do céu que ainda choramos! CERTEZA [Iveta Ribeiro] Vim do nada... sou nada... e para o nada Um dia voltarei quando morrer... Fui névoa da manhã... fui madrugada, Meio-dia já fui... entardecer... Acordei vendo a vida, deslumbrada... Depois fui despertando sem querer... Cantei... sorri... amei e fui amada... Tive todos os sonhos de mulher!... Agora vou descendo da montanha... Caminho para o fim que deve estar Bem perto... E a caminhada é já tamanha!... Mas quando a minha vida se findar, O meu olhar terá a luz estranha, De um sol que morre à tarde... e há de voltar! FILOSOFIA [J. G. de Araújo Jorge] Dentro do meu olhar altivo de descrença não tenho uma atitude humilde e irrefletida, — olho os homens de cima, e trago de nascença um íntimo desdém superior pela vida... Não me irrito e não choro. À pedra desferida contra mim — que em minha alma abre uma chaga imensa — sorriso... E o meu sorriso é a dor, quase esquecida, que nos lábios transformo em fria indiferença... A vida toda é vã. Resumo a vida nessa mistura com que fiz minha filosofia: — um verso de Leoni e um mau sorriso de Eça... Um olhar de desdém numa alma de fumaça, e a superioridade fina da ironia de quem sabe que tudo é uma ilusão que passa! SER E NÃO SER [José Bonifácio] Se te procuro, fujo de avistar-te, E se te quero, evito mais querer-te, Desejo quase... quase aborrecer-te, E se te fujo, estás em toda parte. Distante, corro logo a procurar-te, E perco a voz e fico mudo ao ver-te, Se me lembro de ti, tento esquecer-te, E se te esqueço, cuido mais amar-te. O pensamento assim partido ao meio, E o coração assim também partido, Chamo-te e fujo, quero-te e receio! Morto por ti, eu vivo dividido, Entre o meu e o teu ser sinto-me alheio, E sem saber de mim, vivo perdido! ÚLTIMA PÁGINA [José Oiticica] A alma do poeta errou pelo universo afora, Concentrou-se em si mesma, auscultou seu mistério, E fez dos sons do mundo uma tuba sonora, E dos salmos da vida a voz do seu saltério. Viu, nos sem-fins do caos como o ser se incorpora, Que o "fiat" sideral provém do vácuo etéreo; Ouviu a dor do peito humano quando chora Mas não lhe pôde dar, na rima, um refrigério! Volta, assim, da excursão cheia de luz, mais triste... Sente que tudo é um logro; ama a glória e, no entanto, Sofre, por não saber a causa do que existe! E abrindo o olhar sem fé para o antro ou para a serra, Vê que o pranto de agora é o mesmo e amargo pranto Que há seis mil anos cai sobre as mágoas da terra! CRER E NÃO CRER [Luís Delfino] Contradizer-nos sempre dia a dia, Hora a hora, talvez instante a instante! Tem tantas faces o cristal iriante, Que em cada volta a cor da luz varia. O universo visões estranhas cria: É, não é; minha Helena, é ir adiante: São os séculos degraus da escadaria, Que vai calcando espírito gigante: E ele aí fica em dúvida perene! E nos vaivéns terríveis, que o consomem, Só tem de certo a dor... a dor infrene. Somem-se os céus com os deuses que se somem: Nenhum ditame, que alma enfim serene: Crer e não crer!... Que verme hediondo é o homem!... CRENÇA E DÚVIDA [Luís Delfino] Mas isto é uma hipótese sublime: No fim de tudo a dúvida nos resta! Há de durar continuamente a festa, Que nos embala? A crença? Esta sorri-me. Mas dobra o homem, como a brisa ao vime: A alma vacila, sempre à idéia infesta: Quando saímos finalmente desta Existência — a outra vida enfim que exprime? Somos um elo desta natureza, Nos fundimos em Deus... Mas há certeza? Razão, és bola, e como bola és oca!... À terra, por que então mandados fomos? Seremos verme? ou somos Deus? — Que somos? Abismo, fala: para que tens boca?... A LÁGRIMA [Luís Edmundo] Há uma lágrima sempre atenta em nossos olhos; Branca, redonda, clara, adamantina, pura, E assim como no mar os traiçoeiros escolhos, Ela, escondida, a flor das pálpebras procura, E, aí fica parada. Os íntimos refolhos De nossa alma reflete, e quando uma ventura Em riso nos entreabre os lábios com doçura, Ela, a lágrima, fica a nos tremer nos olhos. Tu que és moça e que ris, e não sabes da mágoa Da vida, tem cuidado! Olha essa gota d'água; Se não queres, da vida, achar-te entre os abrolhos Ri, mas ri devagar, que a lágrima traiçoeira, Talvez por te ver rir assim dessa maneira, Trema e caia, afinal, um dia dos teus olhos! EU [Maria Antônia Sampaio] Cabeça e coração — o meu ser, como um elo, Para sempre os uniu. Inextinguível chama Que a vida me consome; introvertido duelo Vibrando sempre em mim... Motivo do meu drama. Sentimento e razão — aquele como é belo E este como é sublime... O destino conclama De ambos o antagonismo e a um e a outro apelo, Pois um ordena: pensa e outro, segreda: — ama! Que imenso turbilhão na minha alma se agita! Para os dois agregar, equilibrando-os, pois Não sendo por nenhum quero ser pelos dois Na luta exasperada, indômita, infinita... Entre o anseio e a renúncia, o querer e a repulsa De um cérebro que pensa e um coração que pulsa! CRÍTICA DA RAZÃO PURA [Martins Fontes] Interrogando os astros, induzindo, Vendo que a forma contrafaz o fundo, Analisamos, no mistério infindo, O mecanismo ilógico do mundo. Estudando, entendendo, concluindo, Dói no cérebro o cálculo profundo: Para o espírito, os anos-luz medindo, Equivalem a menos de um segundo. E vendo quanto a ciência é fátua e frustra, Para a ilusão ficando de alcatéia, Ávido, o olhar toda a amplidão perlustra. E, sobre a Torre de Marfim da idéia, Mudos, rugimos como Zaratustra, No silêncio das noites da Iduméia. SER FELIZ! [Menotti del Picchia] Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora... Este sonho que ergui, o poderia pôr Onde quisesse, longe até da minha dor, Em um lugar qualquer onde a ventura mora; Onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora, Tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador, Eu coloquei muito alto o meu sonho de amor... Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora. O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade Teme levar consigo o próprio sonho, a esmo, E oculta-o sem saber se depois o achará... E, quando vai buscar sua felicidade, Ele, que poderia encontrá-la em si mesmo, Escondeu-a tão bem que não sabe onde está! DUALISMO [Olavo Bilac] Não és bom, nem és mau: és triste e humano... Vives ansiando, em maldições e preces, Como se, a arder, no coração tivesses O tumulto e o clamor de um largo oceano. Pobre, no bem como no mal, padeces; E, rolando num vórtice vesano, Oscilas entre a crença e o desengano, Entre esperanças e desinteresses. Capaz de horrores e de ações sublimes, Não ficas das virtudes satisfeito, Nem te arrependes, infeliz, dos crimes: E, no perpétuo ideal que te devora, Residem juntamente no teu peito Um demônio que ruge e um deus que chora. MICROCOSMO [Olavo Bilac] Pensando e amando, em turbilhões fecundos És tudo: oceanos, rios e florestas; Vidas brotando em solidões funestas; Primaveras de invernos moribundos; A Terra; e terras de ouro em céus profundos, Cheias de raças e cidades, estas Em luto, aquelas em raiar de festas; Outras almas vibrando em outros mundos; E outras formas de línguas e de povos; E as nebulosas, gêneses imensas, Fervendo em sementeiras de astros novos; E todo o cosmos em perpétuas flamas... — Homem! és o universo, porque pensas, E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas! CONTRASTE [Padre Antônio Tomás] Quando partimos, no vigor dos anos, Da vida pela estrada florescente, As esperanças vão conosco à frente, E vão ficando atrás os desenganos. Rindo e cantando, céleres e ufanos, Vamos marchando, descuidosamente... Eis que chega a velhice de repente, Desfazendo ilusões, matando enganos! E é só então que vemos claramente Quanto a existência é rápida e fugaz! E vemos que sucede exatamente O contrário dos tempos de rapaz: — Os desenganos vão conosco à frente, E as esperanças vão ficando atrás! DILEMA [Pretextato da Silveira] "Quero morrer primeiro, um dia tu disseste, Pois não suportarei a tua ausência!" E, ansiosos, Ergueste para a azúlea abóbada celeste Teus olhos a exorar por mim, meigos, piedosos! Então, já comovido e de olhos lacrimosos, Eu implorei ao Céu: "Senhor, tu que me deste A vida e o seu carinho e os dias venturosos, Consente que antes dela à sombra do cipreste Eu vá dormir!" E assim ficamos abraçados Pensando com terror que um dia a mão dos fados O laço romperá deste amor verdadeiro! E os nossos corações interrogando a sorte, Sofriam! Qual de nós irá primeiro à morte, A qual dos dois virá o martírio primeiro? SEI DE TUDO [Raul de Leoni] Sei de tudo o que existe pelo mundo. A forma, o modo, o espírito e os destinos. Sei da vida das almas e aprofundo O mistério dos seres pequeninos. Sei da ciência do Espaço, sei o fundo Da terra e os grandes mundos submarinos, Sei o Sol, sei o Som e o elo profundo Que há entre os passos humanos e os divinos. Sei de todas as cousas, a teoria Do Universo e as longínquas perspectivas Que emergem da expressão das cousas vivas. Sei de tudo e — oh! tristíssima ironia! — Pelo caminho eterno por que vou, Eu, que sei tudo, só não sei quem sou... SONETO DA RAZÃO TRANSCENDENTAL [Silva Dultra] Eu vivo a cada instante a minha vida, assim como quem vive a própria morte, e levo esta existência dividida entre o ser e não ser que me conforte. Sou onde não estou; e a minha sorte em coisas que não tenho está medida, até que a mesma vida me transporte à morte desde o início já sentida. Vão-se-me os dias de desejos plenos em horas que se somam sempre a menos, por onde o tempo passa e a vida flui. O meu destino escorre num sentido e sobre o pó do que terei eu sido repousa a sombra do que sempre fui. ESPERANÇA [Vicente de Carvalho] Só a leve esperança, em toda a vida, Disfarça a pena de viver, mais nada; Nem é mais a existência, resumida, Que uma grande esperança malograda. O eterno sonho da alma desterrada, Sonho que a traz ansiosa e embevecida, É uma hora feliz, sempre adiada E que não chega nunca em toda a vida. Essa felicidade que supomos, Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos, Existe, sim: mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos. O VERBO NO INFINITO [Vinicius de Moraes] Ser criado, gerar-se, transformar O amor em carne e a carne em amor; nascer Respirar, e chorar, e adormecer E se nutrir para poder chorar Para poder nutrir-se; e despertar Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir E começar a amar e então sorrir E então sorrir para poder chorar. E crescer, e saber, e ser, e haver E perder, e sofrer, e ter horror De ser e amar, e se sentir maldito E esquecer tudo ao vir um novo amor E viver esse amor até morrer E ir conjugar o verbo no infinito...
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Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes