|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Iacyr Anderson Freitas (Patrocínio do Muriaé MG 1963)

Além de transitar idiomaticamente entre fronteiras, divulgando sua poesia no exterior, transita desenvoltamente entre moldes, habilidade pouco comum nos informais poetas das últimas décadas do século. Seus sonetos, conquanto não se prendam a ictos imóveis e metros justos, primam pela palavra incerta no lugar certo, cumprindo, a par da função léxico-sintática (fundamental ao corpo do poema), a missão que eu chamaria "dissemântica" (fundamental à alma poética) na qual o nexo se desconecta da lógica coloquial para se reconectar na magia do imaginário. Opção que nem todos os discursivos abraçam, Iacyr desempenha com o êxito que nem todos os que a abraçam alcançam. Segue-se uma amostra do que Iacyr bola em seus mirabolantes "Mirantes":


O QUANTO PODE A MORTE EM SEU DESERTO

Há também o que jamais foi presença.
O que não soube ou não teve destino.
A antiga estátua, a estátua imensa
que não coube no verso alexandrino
e que em mármore nenhum se cumpriu.
A palavra que esteve sempre fora
de qualquer livro. Uma cor entre mil
que de nenhuma tela se assenhora.
A nota musical num vão de rua,
desde muito esquecida de si mesma,
vibrando para o nada que a gradua
num silêncio cantado em vidro e lesma.

Só essas coisas conhecem, de perto,
o quanto pode a morte em seu deserto.


SEGUNDO MIRANTE

Tatuado o corpo de nomes feios,
de orfandades, desatinos, desfila
pelo salão deserto, e traz nos seios
um par de incestos em véspera e argila.
No arco dos olhos brilha um céu desfeito
e um lago sem fundo e uma lua tanta,
que é possível ver a alba no seu leito
todas as vezes em que se levanta.
Seu corpo floresce, é sempre um quando
de espera e luz, de fel e dor tamanha,
que o esquecimento a vai dilapidando.
Ela se acende, no entanto, e amanha
um caos de verbos, auroras em bando,
que cegam a moldura onde se entranha.


TERCEIRO MIRANTE

Nenhum lume conhece o que tiveste
bem adiante da incerteza minha,
para arrancar do outono a sua veste
mesmo o mar se move, e o céu caminha.
Aqui tens o rigor, visão e engenho
tão resumidos ao fulgor que finges.
De desertos, de nadas me mantenho,
e os dias claros são, em ti, esfinges.
Meu horizonte é um muro que vigias,
muro excessivo, de terríveis malhas
e onde fenecem rios, chuvas, jias.
Fenecem até mesmo as tuas falhas,
teu mais que impuro amor, mãos erradias
que tangem as manhãs em que te encalhas.


SEXTO MIRANTE

Todos os castigos, soubera tê-los
na memória, ao lado da paixão
que se derrama em mim, dos meus cabelos,
ao solo onde, um dia, irromperão.
Desce o estio. Desce sobre a mesa
uma presença, um mote, um desamparo.
Tremula ao longe uma palavra presa,
o nome da origem em que me amparo.
É esse o caos que empurra o meu degredo
contra o chão final, meu próprio inferno.
É esse o fel que cresce onde intercedo.
Mal posso ouvir desse exílio eterno
a voz que escava a infância, a medo,
e funda o incêndio em que me interno.


DÉCIMO SEGUNDO MIRANTE

Nunca, nunca me dissestes quem sois.
Quem realmente sois? Qual o jardim
que incendiastes? Céu e inferno: esses dois
lados de um mesmo lado. Não e sim
conjugados. Assim tão conjugados
que não percebestes começo ou fim.
E resido em qual desses dois reinados?
Em qual se abre a melhor parte de mim?
É bem certo que também não saibais.
Poucos governam suas próprias leis.
E até mesmo as leis têm seus carnavais.
Têm os dias que não entendereis.
Decerto não entendereis jamais,
pois para esses reinados faltam reis.


DÉCIMO QUARTO MIRANTE

Por que tudo o que procurei fugiu-me?
Só o esquecimento trago comigo,
como a antiga reprise de um filme.
É este o lugar em que, por fim, busco abrigo?
Não sei. Talvez tão certo assim não seja.
O azul que me foge há muito emoldura
essa mesa, em que bebo outra cerveja.
E agora uma cachaça. Da mais pura.
Não escolhi o que a vida me deu.
Não escolhi sequer meus semelhantes.
Semelhantes? Não: nada têm de meu.
Ou talvez tenham. Com ares distantes.
Às vezes claros. Às vezes de um breu
que encante a minha desilusão de antes.


DÉCIMO NONO MIRANTE

Irrompe do passado essa fratura
onde vivemos, e por onde desce
escada abaixo o nosso espanto, e a dura
visão do que não volta, antiga messe.
Por essa fratura jamais veremos
qualquer contorno por completo, o extinto
gesto, as águas que não volvem aos remos
de outrora, e que se alastram no recinto
em que nascemos. Ali cresce a ira,
essa ira que aos poucos se afigura
como um derradeiro amor, que respira
em nós, tão violento em nossa mais pura
iniqüidade, enquanto delira
a tormenta que tanto nos tortura.


VIGÉSIMO MIRANTE

Quando o azul anuncia tempo firme,
mil sóis crestando a paisagem, em mim
chove amargamente, e desejo ir-me
para o lugar nenhum de onde me vim.
Às vezes, de súbito, sou feliz
e rodo no ar, e desfaço o letreiro
das perdas, mas depressa algo me diz
que não há paraíso verdadeiro.
Que é falso o sábado, falsa a colheita
de domingos, e que estarei sozinho
ante uma fé tão turva e tão estreita.
Se lá fora é dia claro, adivinho
noites em mim, e um breu onde se deita
o engano que alcancei no descaminho.


VIGÉSIMO QUARTO MIRANTE

Lançaram as árvores sobre mim
o alimento que escondiam, a custo,
nas câmaras mais fundas do jardim.
Fecharam-se as flores todas, de susto.
Nada poderia abalar a busca
que essas raízes roubavam da terra
para uma luz que a mais ninguém ofusca.
E é em meu corpo que ela então se enterra.
As águas perguntavam por meu nome
enquanto aprofundavam seus esteios
no esquecimento que a tudo consome.
Fizeram-me adorar deuses alheios.
A eternidade, o ocaso, a própria fome
que me prende sem pressa em seus arreios.


VIGÉSIMO SÉTIMO MIRANTE

Trazes aos tetos desta tarde, em ti,
horas que se agarram às catedrais,
verbos de antigos naufrágios, aqui
onde nem mesmo o sol se aquece mais.
Trazes também uns timbres provisórios,
turvos, de velhíssimos ditirambos,
oceanos sem vazante, ofertórios,
dois diques ao espelho (e imensos ambos).
Sobre o teu rancor ergue-se um guindaste
com mil acampamentos à deriva,
mil senões, mil delitos que deixaste
em tua ausência, ardendo, em carne viva.
Sucumbe o próprio tempo a teu desgaste
e é mais suave a morte que te aviva.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes