|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Tomás Antônio Gonzaga (Porto, Portugal, 1744-1810)

O principal representante do arcadismo não ficou famoso pelos sonetos e sim pelas "Liras" de MARÍLIA DE DIRCEU, obra que, depois dos LUSÍADAS, foi o mais lido e reeditado livro de poesia até a segunda metade do século XIX, quando o romantismo veio suprir a demanda por versos sentimentais. Meu tributo ao poeta foi pago, a propósito de seu papel político e da figura de Tiradentes, no seguinte soneto:


SONETO 393 INCONFIDENTE

Foi morto e esquartejado, e hoje é lembrado
por ter-se feito mártir duma briga
que a raça humana irmana, anima e liga:
o anseio à independência dum estado.

Tem jeito de Jesus crucificado.
Há semelhança até no autor da intriga:
Silvério lembra o Judas duma figa,
que entrega a trama e serve ao outro lado.

Mas na Paixão do Cristo falta vaga
pra apóstolos poetas: não se trata
na Bíblia dum Dirceu na santa saga.

No caso dos mineiros, era a nata
da nossa inteligência: o tal Gonzaga
deu toques de epopéia à conspirata.


	Glauco Mattoso


Os poucos sonetos gonzaguianos foram postumamente incorporados, numa
terceira parte, às duas primeiras de MARÍLIA DE DIRCEU, e são os
seguintes (descontados os problemas literais decorrentes de tantas
reedições, cujos erros de transcrição se somam a gralhas grosseiras):


DIRCÉIA

É gentil, é prendada a minha Altéia;
As graças, a modéstia do seu rosto
Inspiram no meu peito maior gosto
Que ver o próprio trigo quando ondeia.

Mas, vendo o lindo gesto de Dircéia
A nova sujeição me vejo exposto;
Ah! que é mais engraçado, mais composto
Que a pura Esfera, de mil astros cheia!

Prender as duas com grilhões estreitos
É uma ação (ó Deuses) inconstante,
Indigna de sinceros, nobres peitos.

Cupido, se tens dó de um triste amante,
Ou forma de Lorino dous sujeitos,
Ou forma desses dous um só semblante.


FORTUNA

Num fértil campo do soberbo Douro,
Dormindo sobre a relva descansava,
Quando vi que a Fortuna me mostrava
Com alegre semblante o seu Tesouro.

De uma parte, um montão de prata e ouro
Com pedras de valor o chão curvava;
Aqui um cetro, ali um trono estava,
Pendiam coroas mil de grama e louro.

"Acabou" (diz-me então) "a desventura:
De quantos bens te exponho qual te agrada,
Pois benigna os concedo, vai, procura."

Escolhi, acordei, e não vi nada:
Comigo assentei logo que a ventura
Nunca chega a passar de ser sonhada.


ENGANO

Enganei-me, enganei-me — paciência!
Acreditei às vezes, cri, Ormia,
Que a tua singeleza igualaria
A tua mais que angélica aparência.

Enganei-me, enganei-me — paciência!
Ao menos conheci que não devia
Pôr nas mãos de uma externa galhardia
O prazer, o sossego e a inocência.

Enganei-me, Cruel, com teu semblante,
E nada me admiro de faltares,
Que esse teu sexo nunca foi constante.

Mas tu perdeste mais em me enganares:
Que tu não acharás um firme amante,
E eu posso de traidoras ter milhares.


LAURA

Ainda que de Laura esteja ausente,
Há-de a chama durar no peito amante;
Que existe retratado o seu semblante,
Se não nos olhos meus, na minha mente.

Mil vezes finjo vê-la, e eternamente
Abraço a sombra vã; só nesse instante
Conheço que ela está de mim distante,
Que tudo é ilusão que esta alma sente.

Talvez que ao bem de a ver Amor resista:
Porque minha paixão, que aos Céus é grata,
Por inocente assim melhor persista;

Pois quando só na idéia ma retrata,
Debuxa os dotes com que prende a vista,
Esconde as obras com que ofende, ingrata.


LAURA (II)

Com pesadas cadeias maniatado,
Às vozes da razão ensurdecido,
Dos Céus, de mim, dos homens esquecido,
Me vi de amor nas trevas sepultado.

Ali aliviava o meu cuidado
C'o dar de quando em quando algum gemido.
Ah! tempo! que, somente refletido,
Me fazes entre as ditas desgraçado.

Assim vivia, quando a falsidade
De Laura me tornou num breve dia
Quanto a razão não pôde em longa idade:

Quebrei o vil grilhão que me oprimia!
Oh! feliz de quem goza a liberdade,
Bem que venha por mãos da aleivosia!


SENTENÇA

Ao Templo do Destino fui levado:
Sobre o Altar um Cofre se firmava,
Em cujo seio cada qual buscava,
Tremendo, anúncio do futuro estado.

Tiro um papel e leio — Céu Sagrado,
Com quanta causa o coração pulsava!
Este duro Decreto escrito estava
Com negra tinta pela mão do Fado:

"Adore Polidoro a bela Ormia,
Sem dela conseguir a recompensa,
Nem quebrar-lhe os grilhões a tirania."

Das mãos Amor mo arranca, e sem detença
Três vezes o levando à boca impia,
Jurou cumprir à risca a tal sentença.


A UMA CONDESSA

Ergue-te, ó Pedra, e desde a margem fria,
Que os muros banha à Lusitana Atenas,
Mostra-me as desmaiadas açucenas
Do rosto, que me ocupa a fantasia.

Deixa que eu beije a mão, que pôde um dia
Ceder de amor às lastimosas cenas;
Qu'entre as ânsias, a dor, a mágoa, as penas
Renove-se a saudosa idolatria.

Solto do véu mortal, ó Feliz Astro,
Une ao cadáver a truncada testa,
Levanta o belo colo de alabastro:

Uma alma grande junto a ti protesta
Fazer a glória da defunta Castro;
A ilustre neta vês: Maria é esta.


LIDORA

Quantas vezes Lidora me dizia,
Ao terno peito minha mão levando:
— Conjurem-se em meu mal os Astros, quando
Achares no meu peito aleivosia!

Então que não chorasse lhe pedia,
Por firme seu amor acreditando.
Ah! que em movendo os olhos, suspirando,
Ao mais acautelado enganaria!

Um ano assim viveu. Oh! céus! agora
Mostrou que era mulher: a natureza
Só por não se mudar a fez traidora.

Não, não darei mais cultos à beleza,
Que, depois de faltar à fé Lidora,
Nem creio que nas Deusas há firmeza.


LIDORA (II)

Mudou-se enfim Lidora, essa Lidora
Por quem mil vezes fé me foi jurada.
Que vos detém (ó céus) que castigada
Ainda não deixais tão vil traidora?

Não haja piedade: sinta agora
A dita sem remédio em mal trocada;
Pois, se assim não sucede, fica ousada
Para ser outra vez enganadora.

Vingai, ó justos céus..., mas ah! que digo?
Que maltrateis Lidora? — o sentimento
Privou-me do discurso; eu me desdigo.

Não, não vibreis o raio violento;
Pois sei que a compaixão do seu castigo
Há-de aumentar depois o meu tormento.


VISCONDE DE BARBACENA

O Númen Tutelar da Monarquia,
Que fez do grande Henrique a invicta espada,
Procurou dos Destinos a morada,
Por consultar a idade que viria.

A mil e mil heróis descritos via,
Que exaltam de Furtado a estirpe honrada,
E na série, que adora, dilatada,
O nome de Francisco descobria.

Contempla uma por uma as letras d'oiro;
Este penhor, que o tempo não consome,
Promete ao Reino seu maior tesoiro.

Prostra-se o Gênio; e sem que a empresa tome
De lhe buscar sequer mais outro agoiro,
O sítio beija, e lhe mostra o nome.


VISCONDE DE BARBACENA (II)

Nascer no berço da maior grandeza,
De palmas e de louros rodeado,
Deve-se aos grandes Pais, ao Tronco honrado,
Que ilustra desde longe a natureza.

Se porém muito mais se adora e preza
O dom que o nobre sangue traz herdado,
Pela própria virtude sustentado,
Feliz o objeto da presente empresa.

De mil heróis, no Tejo vencedores,
Um ramo nasce, um ramo que a memória
Faz imortal de seus Progenitores.

Eu leio em vaticínio a sua história:
Une Francisco, a par de seus maiores,
Ao herdado esplendor a própria glória.


ALBINA

Adeus, cabana, adeus; adeus, ó gado;
Albina ingrata, adeus, em paz te deixo;
Adeus, doce rabil; neste alto freixo
Te fica, ao meu destino consagrado.

Se te for meu sucesso perguntado,
Não declares, rabil, de quem me queixo;
Não quero que se saiba vive Aleixo
Por causa de uma infame desterrado.

Se vires a Pastor desconhecido,
Lhe dize então piedoso: — Ah! vai-te embora,
Atalha os danos, que outros têm sentido.

Habita nesta Aldeia uma Pastora,
De rosto belo, coração fingido,
Umas vezes cruel, e as mais traidora.


VILA RICA

Obrei quanto o discurso me guiava,
Ouvia os Sábios quando errar temia;
Aos bons no gabinete o peito abria,
Na rua a todos como iguais tratava.

Julgando os crimes, nunca voto dava
Mais duro ou pio do que a Lei pedia;
Mas, podendo salvar o justo, ria,
E, devendo punir ao réu, chorava.

Não foram, Vila Rica, os meus projetos
Meter em férreo cofre cópia d'oiro
Que farte aos filhos e que chegue aos netos:

Outras são as fortunas que me agoiro;
Ganhei saudades, adquiri afetos,
Vou fazer destes bens melhor tesoiro.


LUSITANO

Quando o torcido buço derramava
Terror no aspecto ao Português sisudo,
Quando, sem pó nem óleo, o pente agudo,
Duro, intonso, o cabelo em laço atava.

Quando contra os Irmãos o braço armava
O forte Nuno, opondo escudo a escudo;
Quando a palavra, que prefere a tudo,
Com a barba arrancada João firmava.

Quando a mulher à sombra do marido
Tremer se via; quando a Lei prudente
Zelava o sexo do civil ruído;

Feliz então, então só inocente
Era de Luso o Reino. Oh! bem perdido!
Ditosa condição, ditosa gente!


MARQUÊS DE POMBAL (*)

Sombras ilustres dos varões famosos,
Que à Grécia e Roma destes Leis um dia,
Vós, que do Elíseo na região sombria
Respirais entre os zéfiros mimosos.

Grande Licurgo, ó tu, Sólon, que honrosos
Louros cingis, que egrégia companhia
Fazeis aos Mazarinos, eu queria
Adorar vossos vultos majestosos.

Vós fizestes da vossa Pátria a glória;
Por vós hoje é feliz a humanidade:
Que dignos sois de uma imortal história!

Cesse, cesse porém vossa vaidade;
Que basta a escurecer vossa memória
Um Carvalho, que adora a nossa idade.


PASSARINHO (*)

As moles asas a bater começa
Entre as palhas o tenro passarinho,
E largos dias por deixar o ninho
Se cansa, se fadiga, se arremessa.

Um impulso, outro impulso, em vão se apressa;
Já se firma no pé, já no biquinho,
Nas folhas se detém, passa ao raminho,
Té que a pena se esforce e se endureça.

Quando enfim é capaz de movimento,
Deixa os arbustos, vaga pelos ares,
E sobre as altas faias toma assento:

Estes sejam, Salício, os exemplares
Em que a vossa virtude anime o alento,
Por que um dia da Fama honre os Altares.


(*) Em outras fontes este soneto é atribuído a Cláudio Manuel da Costa,
a cujo verbete remeto o leitor.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes