|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

GUIMARAENS, ALPHONSUS DE (pseudônimo)
Afonso Henriques da Costa Guimarães (Ouro Preto MG 1870-1921)

Sendo todos os simbolistas sombrios, não se pode dizer que um deles fosse obscurecido pela sombra do outro, mas sim que cada um tinha sombra própria. Comparado, porém, ao principal representante da corrente (Cruz e Souza), Guimaraens parece ainda mais injustamente obscuro em seu discreto segundo lugar, talvez pela pacata mineiridade. Seus sonetos, no entanto, são transbordantes de devoção religiosa, alguns parecendo verdadeiras orações versificadas, que conferem ao próprio autor uma espécie de aura santificada. Este é meu resumo do relicário alphonsiano:


NÁUFRAGO

E temo, e temo tudo, e nem sei o que temo.
Perde-se o meu olhar pelas trevas sem fim.
Medonha é a escuridão do céu, de extremo a extremo...
De que noite sem luar, mísero e triste, vim?

Amedronta-me a terra, e se a contemplo, tremo.
Que mistério fatal corveja sobre mim?
E ao sentir-me no horror do caos, como um blasfemo,
Não sei por que padeço, e choro, e anseio assim.

A saudade tirita aos meus pés: vai deixando
Atrás de si a mágoa e o sonho... E eu, miserando,
Caminho para a morte alucinado e só.

O naufrágio, meu Deus! Sou um navio sem mastros.
Como custa a minha alma a transformar-se em astros,
Como este corpo custa a desfazer-se em pó!


SANTO GRAAL

Se a tentação chegar, há de achar-me rezando
Na erma Tebaida do meu sonho solitário.
(Miséria humana, humano vício miserando,
Não haveis de poluir as hóstias no Sacrário...)

Se a tempestade vier, há de achar-me chorando,
E como dobrareis, sinos do Campanário!
Subirei à montanha eleita orando, orando...
(Não és tão longa assim, ladeira do Calvário!)

Se a tentação chegar, há de achar-me de joelhos
(Miséria humana, humanidade miseranda...)
Maldizendo a traição dos seus lábios vermelhos.

Se a tempestade vier, e eu cair, nesse dia
Piedosamente irei pela terra em demanda
De ti, ó Santo Graal, Vaso da Eucaristia!


SONETO DAS MÃOS

Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
De tons marfíneos, de ossatura rica,
Pairando no ar, num gesto brando e leve,
Que parece ordenar mas que suplica.

Erguem-se ao longe como se as eleve
Alguém que ante os altares sacrifica:
Mãos que consagram, mãos que partem breve,
Mas cuja sombra nos meus olhos fica...

Mãos de esperança para as almas loucas,
Brumosas mãos que vêm brancas, distantes,
Fechar ao mesmo tempo tantas bocas...

Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tateantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas...


SONETO DO MANTO

Braços abertos, uma cruz... Basta isto,
Meu Deus, na cova abandonada e estreita
Onde repouse quem te for benquisto,
Corpo duma alma que te seja afeita.

É o Justo. As chagas celestiais de Cristo
Beijam-lhe mãos e pés: purpúreo deita
O pobre lado traspassado o misto
De água e de sangue. É o Justo. Eis a alma eleita.

A coroa de espinhos irrisória
Magoa-lhe a cabeça, e pelas costas
Cai-lhe o manto dos reis em plena glória...

Glória de escárnio o manto extraordinário:
Mas quem me dera um dia, de mãos postas,
Nele envolver-me como num sudário!


SONETO DO OLHAR

Que olhar de monja em longa penitência
O olhar daqueles olhos macerados!
Pairava-lhe talvez na morna essência
Uma alma carregada de pecados.

Para que mundos, para que existência,
Tão além desta vida, ei-los voltados!
Ó inacessível, mística dolência
De uns olhos a sonhar outros noivados...

Voz do passado, som que ressuscita!
Olhar tão cheio de palavras mortas
Daqui por certo que não pode ser...

Alma, para me ver, Alma bendita,
Põe-te de luto nessas duas portas
Com uma tristeza de quem vai morrer...


SONETO DO AROMA

Nem luz de astro nem luz de flor somente: um misto
De astro e flor. Que olhos tais e que tais lábios, certo,
(E só por serem seus) são muito mais do que isto...
Ela é a tulipa azul do meu sonho deserto.

Onde existe, não sei, mas quero crer que existo
No mesmo nicho astral entre luares aberto,
Em que branca de luz sublime a tenha visto,
Longe daqui talvez, talvez do céu bem perto.

Ela vem, (sororal!) vibrante como um sino,
Despertar-me no leito: ouro em tudo, — na face
De anjo morto, na voz, no olhar sobredivino.

Nasce a manhã, a luz tem cheiro... Ei-la que assoma
Pelo ar sutil... Tem cheiro a luz, a manhã nasce...
Oh sonora audição colorida do aroma!


PERISTYLUM

No sacro e fulvo peristilo jalde,
Entre silêncios de cristal imoto,
O meu Amor em nuvens se desfralde
Na perfeição astral do Eterno-Voto:

E pecador, a procurar embalde
A estrada espiritual do Céu remoto,
A aspiração da Fé sublime escalde
O meu peito medievo de devoto:

Longe da turbamulta que me cerca,
Eu fortaleça o coração vetusto
Para que nada do meu Ser se perca:

Neste poema de Amor, amplo e celeste,
Eu cante o extremo Epitalâmio augusto
À sombra funerária de um cipreste...


GRANDES OLHOS CRISTÃOS

Portas de catedral em Sexta-feira Santa,
Grandes olhos cristãos piedosamente erguidos
Para o Altar onde a Glória imorredoura canta...
Brandos violões, brandos violinos dos sentidos:

Campo-santo onde flore a imarcescível planta
Do Amor que espera sempre os beijos prometidos,
E na hora vesperal, quando o luar se levanta,
Perfume para o olfato e som para os ouvidos:

Torres de eremitério onde os dobres dos sinos
Parecem prolongar um réquiem surdo e frouxo,
Um responso de morte acompanhado de hinos:

Grandes olhos cristãos de olheiras de veludo,
Altares quaresmais enfeitados de roxo,
Benditos para sempre Onde revive tudo!


PRIMEIRA DOR

Nossa-Senhora vai... Céu de esperança
Coroando-lhe o perfil judaico e fino...
E um raio de ouro que lhe beija a trança
É como um grande resplandor divino.

O seu olhar, tão cheio de ondas, lança
Clarões longínquos de astro vespertino.
Sob a túnica azul uma alva Criança
Chora: é o vagido de Jesus Menino.

Entram no Templo. Um hino do Céu tomba.
Sobre eles paira o Espírito celeste
Na forma etérea de invisível Pomba.

Diz-lhe o velho Simeão: "Por uma Espada,
Já que Ele te foi dado e que O quiseste,
A Alma terás, Senhora, traspassada...


SETE DORES

Em teu louvor, Senhora, estes meus versos,
E a minha Alma aos teus pés para cantar-te.
E os meus olhos mortais, em dor imersos,
Para seguir-te o vulto em toda a parte.

Tu que habitas os brancos universos,
Envolve-me de luz para adorar-te,
Pois evitando os corações perversos
Todo o meu ser para o teu seio parte.

Que é necessário para que eu resuma
As Sete Dores dos teus olhos calmos?
Fé, Esperança, Caridade, em suma.

Que chegue em breve o passado derradeiro:
Oh! dá-me para o corpo os Sete Palmos,
Para a Alma, que não morre, o Céu inteiro!


SEGUNDA DOR

Mão que os lírios invejam, mãos eleitas
Para aliviar de Cristo os sofrimentos,
Cujas veias azuis parecem feitas
Da mesma essência astral dos olhos bentos:

Mãos de sonho e de crença, mãos afeitas
A guiar do moribundo os passos lentos,
E em séculos de fé, rosas desfeitas
Em hinos sobre as torres dos conventos:

Mãos a bordar o santo Escapulário,
Que revelastes para quem padece
O inefável consolo do Rosário:

Mãos ungidas no sangue da Coroa,
Deixai tombar sobre a minha Alma em prece
A bênção que redime e que perdoa!


QUARTA DOR

"Bendita sois entre as mulheres!" Puras
Irradiações de salmos encantados
De glória a ti, Senhora, nas alturas,
Por séculos de séculos sagrados.

Vejo, no entanto, as tuas Amarguras...
Senhora, que há de ser dos desgraçados,
Se tu, a mais feliz das criaturas,
Tens olhos em lágrimas banhados?

Feliz, bem sei, pois és quem Deus mais ama...
"Donde me vem que a Mãe do Verbo eterno
Me venha a mim?" Santa Isabel exclama.

Passa-te na Alma a inspiração sublime:
E dos teus lábios desce o brando e terno
Hino que a glória da tua Alma exprime...


QUINTA DOR

Pois sede teve o vosso Filho na hora
Em que Vós, e Elas, a seus Pés vos vistes,
Certo coroadas por suprema aurora,
Mas todas três tão pálidas, tão tristes...

O seu Olhar, cheio de dor, não chora,
Resignado ante as Dores que sentistes,
Vós, torre de marfim, santa Senhora,
Alma que em pranto astral vos diluístes!

É então, secos os Lábios, a Garganta
Em fogo, é o instante do cruel martírio:
"Sede!" geme-lhe a Voz que se quebranta.

Na ponta de uma lança ergue-se a Esponja:
Mais se enlanguesce a vossa cor de lírio.
E esse perfil que predizia a monja...


SEXTA DOR

E recebeste-o nos teus braços. Vinha
Do alto do Lenho onde estivera exposto
Ao ímpio olhar, tão ímpio! da mesquinha
Multidão que insultava o santo Rosto...

Sangue o Peito suavíssimo continha,
Num resplendor de raios de sol posto...
Oh Vinha do Senhor, excelsa Vinha
Em cachos siderais de etéreo mosto!

Sangue que se derrama em ondas, sangue
Que para a salvação dos homens, corre
Purpureamente brando, e O deixa exangue...

E que correndo como então corria,
Por toda a eternidade nos socorre
No mistério eternal da Eucaristia...


ROSAS

Rosas que já vos fostes desfolhadas
Por mãos também que já se foram, rosas
Suaves e tristes! rosas que as amadas,
Mortas também, beijaram suspirosas...

Umas rubras e vãs, outras fanadas,
Mas cheias de calor das amorosas,
Sois aroma de alfombras silenciosas,
Onde dormiram tranças destrançadas.

Umas brancas, da cor das pobres freiras,
Outras cheias de viço e de frescura,
Rosas primeiras, rosas derradeiras!

Ai! quem melhor que vós, se a dor perdura,
Para coroar-me, rosas passageiras,
O sonho que se esvai na desventura?


SONETO DA DEFUNTA AMADA

Quando te fores, branca, de mãos postas,
E me deixares neste val de pranto,
Deitada assim, como as demais, de costas
Sobre o teu leve esquife de pau-santo:

Quando as rosas dos seios, decompostas,
Vierem causar à própria morte espanto,
E nessas tábuas vis, onde te encostas,
Te for o lodo o derradeiro manto:

Ainda hei de ver as lúcidas violetas
Que floriram no teu olhar incerto,
Por sob as tuas sobrancelhas pretas...

Ai! como Inês tu não serás rainha:
Mas amada hás de ser no céu decerto
Porque na terra nunca foste minha...


CRENÇA E DESCRENÇA

Crença e descrença! Entre estes dois extremos,
A alma humana perpetuamente oscila,
Ora imersa da fé na paz tranqüila,
Ora incendida em vis ódios blasfemos.

Fulge a crença nos páramos supremos,
A descrença no caos do mal cintila...
E nós, mísera poeira, estranha argila,
Ao mesmo tempo cremos e descremos.

Abrangendo a áurea abóbada infinita,
Paira a dúvida, altívola, magoada,
Sobre a terra, qual uma ave maldita...

Feliz da alma que não descreu de nada,
E onde Jesus eternamente habita
Como dentro de uma hóstia consagrada!


DOIS LÍRIOS

Seremos como dois lírios enfermos
Que morrem numa jarra abandonada.
O acaso nos mostrou a mesma estrada
E sonhamos ao luar dos mesmos ermos.

Abençoou-nos o mesmo azul sem termos,
Ao descambar da véspera sagrada.
E hei de ter, e terás, ó bem-amada,
Tranqüilidade e paz para morrermos.

Ah! tu bem sabes que não tarda o outono...
Perder-nos-emos pela escura brenha,
Para ínvios sertões do eterno sono.

E que nos baste, amor, termos vivido
Em meio destes corações de penha
Sem o lamento inútil de um gemido!


SONETO DA DEFUNTA FORMOSA

Temos saudade, pálida formosa,
De tudo quanto o pôr-do-sol fenece:
Ou seja o som final de extrema prece,
Ou seja o último anseio de uma rosa...

E mais ligeiramente a gente esquece
Uma hora que a alma de carinhos goza,
Que de ter visto, em roxa luz saudosa,
Uma imperial tulipa que adoece...

Um lírio doente no caulim de um vaso
Faz-nos lembrar um luar em pleno ocaso
Morrendo ao som das últimas trindades...

E nem eu sei, amor, por que perguntas,
Tu que és a mais formosa das defuntas,
Se eu de ti hei de ter loucas saudades.


MEUS PAIS

Nascera ao pé de Fafe. Ermos algares,
Altas escarpas de Entre-Doiro-e-Minho:
Das iberas regiões peninsulares
Toda a luz, sob um céu de seda e linho.

Ele era alegre e forte. Em seus cismares,
Em meio às eiras, nos trigais, de ancinho,
Sabendo de outra pátria além dos mares,
Veio para o Brasil ainda mocinho.

Casou. Ela era branca, ela era esbelta,
Olhos marinhos, fronte ideal de celta,
Mãe futura de pobres trovadores...

Meus velhos Pais! bem mais do que gozado,
Tendes sofrido, e nem vos foi poupado
Ouvir-nos decantar as nossas dores!


BONS TEMPOS

Bons tempos da loriga e da cota de malha,
Quando vós, meus avós das montanhas do Minho,
Balestreiros viris, vermelhos do bom vinho,
Ao sarraceno infiel ousáveis dar batalha!

As loiras castelãs, cheirando a rosmaninho,
Diziam-vos: — "Que Deus, na peleja, vos valha!"
E o saio d'armas era a querida mortalha
Que vos ia cingindo o amplo torso de pinho...

Combates pela Cruz em campos do crescente!
Fidalgos, infanções, ou gente de mesnada,
Volviam para Cristo o olhar piedoso e crente.

E vós, guerreiros, quando a morte alucinada
Surgia, para vê-la erecta, frente a frente,
Inda erguíeis a heril viseira da celada...


OS BÁRBAROS

E os bárbaros, uivando (eram mais que selvagens)
Não podiam pensar que houvesse alguém ali
Capaz de enaltecer a fé sublime... Pajens
Da impureza, talvez saibais por que vos ri!

Debaixo deste céu, apedrejais imagens.
Mas a cada um de vós eu direi: — Ai de ti!
Estas princesas a dormir nas estalagens,
Exiladas visões, são santas que eu bem vi...

Para vós, como para os sapos, tudo é lama:
Quem chora, quem soluça, a alma que sofre ou que ama,
É uma águia real olhando os poentes que se vão...

Abre a plumagem, fita o azul que ao longe esmaece,
Porém julgais que, como vós, não ouve a prece
Que nos põe todo o céu dentro do coração!


ASCENSÃO DO POETA

O poeta deve ter dentro da alma estelada
Uma deusa que o embale e acarinhe e adormeça:
É a ilusão que lhe vem aureolar a cabeça,
Suavizando-lhe a dor com os seus dedos de fada.

Quer surja a aurora, quer por entre as sombras desça
A noite, haja o clamor da vida, ou a paz sagrada
Da morte, — ela que é a fonte, o bem, a bem-amada,
Dá que a palma estival do sonho resplandesça.

E o mundo, que é o sinistro ergástulo de treva,
Transforma-se na irial mansão donde se eleva
A prece que há de um dia aos pés de Deus chegar...

E aos astros de tal modo o Poeta ascende em calma,
Que o céu fica menor do que o azul da sua alma,
E nem cabe no céu a luz do seu olhar...


SONETO DA VELHICE

Quando eu for bem velhinho, bem velhinho,
— Não tarda muito não, meus companheiros!
Vós haveis de florir de jasmineiros
A alameda final do meu caminho.

Deitem-se flores, vistam-se de linho,
Da cor dos sonhos meus aventureiros,
E que eu fique a rezar dias inteiros,
Depois de feito o meu caixão de pinho.

Como o aroma sutil de um incensário,
Minh'alma irá galgando lentamente
A impiedosa ladeira do Calvário...

Pobre ancião! chegaste enfim ao poente.
Olha o que foste, doce visionário,
E fecha os olhos como um anjo doente!


SONETO DA VOZ

Quando, às vezes, o ríctus do sarcasmo
Me vem à flor dos lábios; quando, mudo,
Exilado da luz, fujo de tudo,
Uma voz celestial me deixa pasmo.

Alguém me diz: — "Rompeste o teu escudo,
Lutando pela fé: todo o entusiasmo
Que outrora tinhas é o senil marasmo
De uma alma triste a agonizar no estudo...

Vivendo sem saber para que vives,
Detém-te, ó tu que o espírito escureces
A resvalar pelos fatais declives..."

Levanto ao céu os olhos compassivos:
E eis-me contrito e bom, ouvindo as preces
Que os mortos rezam pelos que estão vivos.


ALQUIMISTA DA MORTE

Não me faleis de amor, nem das carícias
Com que a fronte do sol me atorçalastes...
As ilusões no mundo são fictícias;
As rosas pendem, sem cessar, das hastes.

Entre as pálpebras, em horas não propícias,
Morrem os olhos, onde os afogastes...
Só os astros brilham, como ideais delícias,
Eternamente, em perenais engastes.

Minh'alma vai seguindo, às vezes brusca,
Tranqüila às vezes; passa pelas portas
Como astro a que nenhuma luz ofusca.

Alquimista da morte, entre retortas
E cadinhos medievos, ando em busca
Da essência celestial das cousas mortas...


SANTOS TRAÍDOS

Cantar o que jamais fosse cantado,
Dizer as sensações que ninguém disse!
É colher uma flor que só florisse
Para o seu sonho de anjo rebelado.

O homem chora, o homem geme, o homem sorri-se:
Quando o pranto, o gemido, o seu iriado
Sorriso tomba em seio muito amado,
Julga sentir o que ninguém sentisse.

Mas não há quem um coração de todo
Virgem amasse: por momentos tantos
A luz do sol reflete-se no lodo...

Olhos mortais, espelhos dos sentidos!
Ai como ingênuos sois! Os próprios Santos,
Antes de amar a Deus, foram traídos...


TENTAÇÕES MEDIEVAIS

Nos braços de satânicas efialtas,
De trasgos maus, de torvos pesadelos,
A monja passa as noites. Horas altas,
Quem bruxedos de amor pode contê-los?

Por que, lírio do altar, te sobressaltas?
Tens saudades, talvez, dos teus cabelos...
E mais padeces, quanto mais te exaltas
Em sonhos onde fulgem sete-estrelos.

Ergue o olhar para o céu: pede, ajoelhada,
Nos pesares que aos poucos te consomem,
Serenidade para os dias teus.

Jesus te mira na hóstia consagrada.
Ah! se te queima o seio o amor de um homem,
Ninguém o extinguirá, a não ser Deus...


VISÃO INFERNAL

Os duendes, trasgos, bruxos e vampiros
Vinham, num longo e tenebroso bando,
Os meus passos de múmia acompanhando,
Por entre litanias de suspiros...

Em tudo eu via os infernais retiros,
Onde ficava sem cessar sonhando:
E Satanás mostrava-me, nefando,
Negros sinais traçados em papiros...

Era, na sombra, o meu destino oculto,
— Sirtes, penhascos, saturnais, paludes,
Todo o mistério de um funéreo culto...

Mas, de repente os passos meus, tão rudes,
Firmaram-se no chão, e erguendo o vulto,
Vi-me amparado pelas Três Virtudes...


SONETO DO DEFUNTO

Eu irei para a cova tão sequinho,
Que ninguém como fui me reconheça.
E alguém dirá, mirando-me a cabeça:
— "Dos meus sonhos também era este o ninho."

Mendigo, ancião, pobrinho que apareça
Neste ponto final do meu caminho,
Há de benzer-me o esquife de mansinho
Como áurea bênção que das auras desça.

Mais perfumado do que um pé de mirto,
No sonho que na morte se prolonga,
Hei de jazer nas brumas do meu horto.

E ao ver-me assim tão gélido, tão hirto,
Entrarei na profunda noite longa,
Para o céu, vivo — para o mundo, morto...


O SINO

Na torre esguia há séculos demoro,
Alerta a todo alarma de agonia.
Vedeta eril, com que clamor sonoro
Sigo as almas na noite erma e sombria!

Festivo como um pássaro canoro,
Canto às vezes. Sou corvo e cotovia.
Saudando a vida e a morte, louvo e choro
O despontar e o anoitecer do dia...

Sol a pino, quanta algazarra, quanta!
Há nos sons que me trinam na garganta,
Subindo ao céu para descer depois...

Mas com que dor meus crebros dobres planjo,
Quando se fina um poeta, ou morre um anjo,
Que anjos são afinal ambos os dois!

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes