O soneto passou por períodos de florescimento primaveril, efervescência carnavalesca, decadência outonal e hibernação inclemente, mas é universal como o alfabeto e perene como os ciclos solares e lunares. Sendo o Brasil satélite de diversas órbitas, ora italianas, ora francesas, ora inglesas ou anglófonas, é natural que levemos a vantagem antropofágica da diversidade e, entre nossos sonetistas, haja representantes de todas as escolas históricas. Além de discípulos indisciplinados, os brasileiros têm sido infiéis tradutores da tradição, no que também levamos a vantagem da transcriação. Considerando que, em poesia, traduzir não é reproduzir e sim recriar, os brasileiros que traduzem sonetos de poetas estrangeiros precisam ser até mais malabaristas que os prestidigitadores originais. Para celebrar a habilidade nativa no trato da palavra translíngüe, apresento a seguir um breve mostruário poliglota interpretado pelos intrépidos trapezistas do vernáculo, espetáculo que certamente merece o aplauso do respeitável público, quando não da crítica... [2.1] O soneto teria sido inventado no século XIII pelo trovador francês Girard de Bourneuil ou pelo siciliano Giacomo da Lentini, como poema lírico, mas cabe aos portugueses a cristalização do decassílabo heróico (Camões, século XVI). Na poesia dos trovadores provençais se encontram os primeiros exemplos, ainda rudimentares, de soneto. Da Provença o formato chegou à Sicília (Pier delle Vigne) e foi desenvolvido pelos poetas italianos do Dolce Stil Nuovo: Guido Cavalcanti, Cecco Angiolieri, Dante, Petrarca. [2.1.1] Francesco Petrarca (1304-1374) é quem, dentre os estilonovistas, mais marca a história poética universal, já que a ele se deve, pelos cerca de trezentos sonetos que deixou à musa Laura de Noves, a matriz do esquema estrófico ABBA ABBA CDE CDE que, com a variante CDC DCD nos tercetos, iria moldar nosso cânone camoniano. Eis um exemplo reciclado: Soneto 192 [original de Petrarca] Stiamo, Amor, a veder la gloria nostra, Cose sopra natura altere et nove: Vedi ben quanta in lei dolcezza piove, Vedi lume che 'l cielo in terra mostra, Vedi quant'arte dora e 'mperla e 'nostra L'abito electo, et mai non visto altrove, Che dolcemente i piedi et gli occhi move Per questa di bei colli ombrosa chiostra. L'erbetta verde e i fior' di color' mille Sparsi sotto quel' elce antiqua et negra Pregan pur che 'l bel pe' li prema o tocchi; E 'l ciel di vaghe et lucide faville S'accende intorno, e 'n vista si rallegra D'esser fatto seren da sí belli occhi. SONETO INGLÓRIO [recriação inversa de Glauco Mattoso] Revejo, a sós comigo, o meu fracasso, que pela lei do Além tive por pena. Amarga-me o sabor, e me envenena, das trevas, às quais tantos versos faço. Artífice me torno, e meu espaço não passa do soneto, embora a pena dedique-se ao louvor de quem tem plena visão e me espezinhe a cada passo. Folhagens verdes, flores coloridas destinam-se aos que podem, rindo, vê-las: aqueles cujos pés, num par de Adidas, passeiam-me na língua, enquanto pelas surradas solas sejam as lambidas mais ávidas que um olho a ver estrelas. [2.2] O soneto petrarquiano domina a poesia da Renascença: cultivaram-no inúmeros poetas italianos (entre os quais têm luz própria Michelangelo, Della Casa e Campanella), os poetas da "Plêiade" francesa (Louise Labbé, Ronsard, Du Bellay), o espanhol Garcilaso e o português Camões (graças ao pioneirismo de Sá de Miranda). O francês Malherbe contribui com a veia erótica. Nesse mesmo departamento, o italiano Aretino é um caso à parte, mais dedicado ao teatro que à poesia, mas que marcou, por exemplo, a obra de Bocage. [2.2.1] Pierre de Ronsard (1524-1585) se divide entre as funções de poeta da corte e chefe da escola poética conhecida como "Plêiade", tanto quanto se divide entre o helenismo e a influência de Petrarca, mas o decassílabo esquematizado em ABBA ABBA CCD EED nem sempre se presta ao inocente cortejo duma musa pastora, como se pode verificar neste exemplo: [original de Ronsard] Je te salue, ô merveillette fente, Qui vivement entre ces flancs reluis; Je te salue, ô bienheureux pertuis, Qui rend ma vie heureusement contente! C'est toi qui fais que plus ne me tourmente L'archer volant qui causait mes ennuis; T'ayant tenu seulement quatre nuis, Je sens sa force en moi déjà plus lente. O petit trou, trou mignard, trou velu, D'un poil folet mollement crespelu, Qui à ton gré domptes les plus rebelles: Tous vers galans devraient, pour t'honorer, A beaux genoux te venir adorer, Tenant au poin leurs flambantes chandelles! [tradução de José Paulo Paes] Eu te saúdo, fenda de portentos, A luzir entre dois flancos macios; Saúdo-te, buraco de amavios, Que dás ao meu viver contentamento. Enfim me libertaste dos tormentos Do alado arqueiro e dos meus desvarios; Só quatro noites eu te possuí e o Poder do arqueiro fez-se em mim mais lento. Pequeno furo, furo arteiro, furo Tão bem guardado em matagal obscuro, Que ao mais rebelde domas com presteza: Todo vero galã, para te honrar, Devia de joelhos te adorar, Firme empunhando a sua vela acesa! [2.2.2] François de Malherbe (1555-1628), embora dissidente da "Plêiade", manteve-se tão vaidoso quanto Ronsard na posição de poeta cortesão e chefe de escola. Sua proposta era duma poesia descomplicada, porém disciplinada. No exemplo abaixo, já empregava o alexandrino esquematizado em ABBA ABBA CCD EDE, que José Paulo Paes reproduz com ligeira liberdade nos tercetos: [original de Malherbe] J'avais passé quinze ans, les premiers de ma vie, Sans avoir jamais sçeu quel estoit cet effort Où le branle du cu fait que l'âme s'endort, Quand l'homme a dans un con son ardeur assouvie. Ce n'estoit pas pourtant qu'une éternelle envie Ne me fit désirer une si douce mort, Mais le vit que j'avois n'estoit pas assez fort Pour rendre comme il faut une Dame servie. Je travaille depuis, et de jour, et de nuit, A regagner ma perte, et le temps qui s'enfuit, Mais déjà l'Occident menace mes journées... O Dieu! je vous appelle, aydez à ma vertu: Pour un acte si doux, allongez mes années, Ou me rendez le temps que je n'ai pas foutu! [tradução de José Paulo Paes] Quinze anos eu passara, os primeiros da vida, Sem ter sabido nunca o que era esse furor Em que a dança do cu deixa na alma um torpor Após a ânsia viril na cona ser remida. Não que a morte tão doce e tão apetecida Não me impelisse um forte, juvenil ardor, Mas o membro que eu tinha, embora lutador, Não chegava a deixar a Dama bem servida. Trabalho desde então com pertinácia rara Por compensar a perda e o tempo que não pára, Pois o sol no Poente ameaça os meus dias. Oh Deus, venho rogar-te, meu zelo ajudai: Para tão doce agir, meus anos alongai Ou devolvei-me o tempo em que inda eu não fodia! [2.2.3] Luís Vaz de Camões (1517, 1524 ou 1525-1580) deixou pouco mais de duzentos sonetos (ou pouco menos, segundo algumas fontes mais rigorosas), conquanto Bilac lhe atribua, inexplicavelmente, uma quantidade superior a quinhentos. O importante é que Camões fixou os dois moldes básicos de Petrarca, com quartetos em ABBA e tercetos em CDC/DCD ou CDE/CDE, paradigmados nos sonetos 19 e 29, respectivamente, que nos tópicos 4.1/2 são analisados. Comparem-se, aliás, o soneto 31 de Petrarca e o 19 de Camões quanto ao argumento, e restará bastante evidente, mais que a coincidência, a reincidência: SONETO 31 [original de Petrarca] Questa anima gentil che si diparte, Anzi tempo chiamata a l'altra vita, Se lassuso è quanto esser dê gradita, Terrà del ciel la piú beata parte. S'ella riman fra 'l terzo lume et Marte, Fia la vista del sole scolorita, Poi ch'a mirar sua bellezza infinita L'anime degne intorno a lei fien sparte. Se si posasse sotto al quarto nido, Ciascuna de le tre saria men bella, Et essa sola avria la fama e 'l grido; Nel quinto giro non habitrebbe ella; Ma se vola piú alto, assai mi fido Che con Giove sia vinta ogni altra stella. SONETO 19 [original (ma non troppo) de Camões] Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida, descontente, Repousa lá no céu eternamente, E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente, Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Alguma cousa a dor, que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te; Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou. [2.2.4] Francisco de Sá de Miranda (1495-1558) leva uma dupla fama que, na língua portuguesa, não tem paralelo: de um lado, precedeu o próprio Camões na "descoberta" do decassílabo, na inauguração do soneto e na introdução do classicismo em Portugal; de outro, foi considerado tão vernáculo, tão rigorosamente lusófono, que nenhum estrangeiro poderia entender sua poesia. Mesmo assim, foram, ironicamente, os franceses, italianos e alemães que aclamaram um dos sonetos mirandianos como o mais perfeito do mundo. Seria exagero dos admiradores? Intrigado com essa história, resolvi recriar o tal soneto, para ver se era, mesmo, tão hermético e lapidar. Durante os anos em que esteve na Itália, Sá de Miranda pegou gosto pelo verso de Petrarca, aquele tipo de decassílabo heróico que Camões imortalizaria nos LUSÍADAS. Fidelino de Figueiredo, na sua calhamaciça HISTÓRIA LITERÁRIA DE PORTUGAL, atesta: "O soneto de Sá de Miranda não é amoroso; tem como tema predominante o desengano da vida terrena, com seu ceticismo, que ensina a vacuidade de tudo, com o desconsolo de que, depois de uma ilusão desfeita, uma nova ilusão venha ludibriar o experimentado senso comum." Visto que, ao contrário de Camões, ele não foi protótipo do poeta lírico, concluo que seu soneto deve ser interpretado pelo lado friamente filosófico. Assim, transcrevo aquela polêmica obra-prima, seguida da minha leitura na mesma linha cética "ma non troppo" ou "pero no mucho" do mestre. Por falar em mestre, reparem só como ele já lançava mão, sem a menor cerimônia, da licença poética ao grafar, por força da rima, "mudaves" em vez de "mudáveis": [original de Sá de Miranda] O sol é grande; caem co'a calma as aves, Do tempo em tal sazão que sói ser fria. Esta água que cai do alto, acordar-me-ia Do sono não, mas de cuidados graves. Ó coisas todas vãs, todas mudaves! Qual é o coração que em vós confia? Passando um dia vai, passa outro dia, Incertos todos, mais que ao vento as naves. Eu vi já por aqui sombras e flores, Vi águas e vi fontes, vi verdura(s), As aves vi cantar todas d'amores. Mudo e seco é já tudo, e de mistura Também fazendo-me eu fui, de outras cores: Se tudo o mais renova, isto é sem cura. SONETO SADEMIRANDADO [Glauco Mattoso] É sábia a Natureza! A chuva passa e tudo se renova: a fauna, a flora... Parece que nasceram logo agora que o sol nos deu o arzão da sua graça... Também eu redescubro algo que faça valer a pena a vida, muito embora mais fraca seja a fé que revigora, menor seja a esperança que renasça... Depois do que passei e tenho visto, me sobra cada vez menos motivo plausível de que penso e de que existo. Se for indubitável que estou vivo, melhor é o "sim" que o "não" e, certo disto, de nada mais me omito nem me privo. [2.2.5] Pietro Aretino (1492-1556) tem, entre seus sonetos, dezesseis que se destacam pelo cunho fescenino, compostos em 1525 para os desenhos pornográficos de Giulio Romano. No Brasil, foram magistralmente recriados por José Paulo Paes, a exemplo deste que, ao esquema rimático petrarquiano (ABBA ABBA CDC DCD), acrescenta um estrambote em DEE, procedimento que não permaneceu em voga após o século XVI: [original de Aretino] Questo cazzo vogl'io più che un tesoro! Questo è quel ben, che mi può far felice! Or questo sì che è ben da Imperatrice! Questa gemma val più d'un pozzo d'oro! Ohimè, mio cazzo, aiutami ch'io moro. Questo si trova il fondo alla matrice; Insomma un cazzo piccolo disdice Se nella potta vuol serbar decoro. Padrona mia, voi dite ben il vero, Che chi piccolo ha il cazzo e 'n potta fotte Merta aver di fresc'acque un bel cristero. Chi poco n'ha in cul fotta il dì e la notte, Ma chi l'ha, com'io l'ho, spietato e fiero, Si sbizzarrischi sempre nelle potte. L'è ver, noi siamo ghiotte Del cazzo tanto e tanto ci par lieto Che lo torremmo al pari avanti e drieto. [tradução de José Paulo Paes] Este caralho é mais do que um tesouro! É o bem que pode me fazer feliz! Este sim é que é bem de Imperatriz! Vale esta gema mais que um poço de ouro! Acorde-me, caralho, que eu estouro! Vê se encontras o fundo da matriz; Um caralho pequeno se desdiz Quando na cona quer guardar decoro. Estás dizendo a verdade, ó mulher; Quem caralho pequeno em cona enfia Merece, de água fresca, um bom clister. Esses devem foder cu, noite e dia. Já quem o tem, como eu, brutal, feroz, Somente na boceta se sacia. Sim, é verdade, mas O caralho nos dá tanta alegria Que nossa gula o quer na frente e atrás. [2.3] Na língua inglesa o formato petrarquiano foi modificado, rimando-se os dois últimos versos como chave para três quartetos: Spencer, Sidney, Shakespeare. Os esquemas básicos, no caso, são ABAB CDCD EFEF GG (Shakespeare) ou ABAB BCBC CDCD EE (Spencer), que se desdobrariam em variações futuras tipo AAA BBB CCC DDD EE ou ABA BCB CDC DED EE (Robert Frost, 1874-1963). [2.3.1] William Shakespeare (1564-1616)encontrou nos brasileiros hábeis dubladores, como nestes exemplos: [original de Shakespeare] Who will believe my verse in time to come, If it were fill'd with your most high deserts? Though yet, heaven knows, it is but as a tomb Which hides your life and shows not half your parts. If I could write the beauty of your eyes And in fresh numbers number all your graces, The age to come would say, 'This poet lies; Such heavenly touches ne'er touch'd earthly faces.' So should my papers, yellow'd with their age, Be scorn'd, like old men of less truth than tongue, And your true rights be term'd a poet's rage And stretched metre of an antique song: But were some child of yours alive that time, You should live twice, in it and in my rime. [tradução de Ivo Barroso] Um dia crer nos versos meus quem há-de Se eu neles derramar teus dons mais puros? No entanto sabe o céu que eles são muros Que a tua vida ocultam por metade. Dissera o que de teu olhar emana, Teus dons em nova métrica medira, Que acharia o porvir então: "Mentira! Tais tratos não retratam face humana." Que mofem pois deste papel fanado Qual de velhos loquazes, e a teu ente Chamem de pura exaltação da mente E a meu verso exageros do passado. Mas se chegar a tua estirpe a tanto, Em dobro hás-de viver: nela e em meu canto. [original de Shakespeare] No longer mourn for me when I am dead Than you shall hear the surly sullen bell Give warning to the world that I am fled From this vile world, with vilest worms to dwell: Nay, if you read this line, remember not The hand that writ it; for I love you so, That I in your sweet thoughts would be forgot, If thinking on me then should make you woe. O! if, I say, you look upon this verse, When I perhaps compounded am with clay, Do not so much as my poor name rehearse, But let your love even with my life decay; Lest the wise world should look into your moan, And mock you with me after I am gone. [tradução de Ivo Barroso] Não lamentes por mim quando eu morrer Senão enquanto o surdo sino diz Ao mundo vil que o deixo e vou viver Em meio aos vermes que inda são mais vis. Nem te recorde o verso comovido A mão que o escreveu, pois te amo tanto Que antes achar em tua mente olvido Que ser lembrado e te causar o pranto. Ah! peço-te que ao leres esta queixa Quando for minha carne consumida, Não te refiras ao meu nome e deixa Que morra o teu amor com minha vida. Não veja o mundo e zombe desta dor Por minha causa, quando morto eu for. [original de Shakespeare] Betwixt mine eye and heart a league is took, And each doth good turns now unto the other. When that mine eye is famish'd for a look, Or heart in love with sighs himself doth smother, With my love's picture then my eye doth feast And to the painted banquet bids my heart. Another time mine eye is my heart's guest, And in his thoughts of love doth share a part. So, either by thy picture or my love, Thyself away [art] present still with me; For thou [no] farther than my thoughts canst move, And I am still with them, and they with thee. Or, if they sleep, thy picture in my sight Awakes my heart to heart's and eye's delight. [tradução de Elson Fróes] Entre olho e coração um pacto distinto, Bem servir um ao outro deve agora. Quando para ver-te o olho está faminto, Ou a suspirar de amor o coração se afoga, O olhar desfruta o retrato de meu amor, E o coração ao banquete figurado Convida. De outra vez, ao imaginado amor O olhar a tomar parte é convidado. Assim, por meu amor ou tua imagem, És sempre presente ainda que distante, Pois não podes do pensar ir mais além Se estou com ele em ti a todo instante. Se adormecem, tua imagem na minha visão Desperta ao deleite vista e coração. [2.4] Mas o que se estereotipou foi o modelo petrarquiano, que, por sua vez, incorporou sutilezas de sintaxe e sofisticação de imagens próprias do barroco: primeiro em Tasso, depois nos espanhóis Lope de Vega, Góngora e Quevedo, nos holandeses do século XVII, no alemão Gryphius; na Inglaterra, Donne cultivou o soneto barroco, que em Milton se torna classicista. [2.4.1] Tal como sucedera a Sá de Miranda, John Milton (1608-1674) retornou da Itália para introduzir em seu país a influência renascentista: no caso, a que recebeu de Giovanni Della Casa. O soneto abaixo, composto no mesmo ano em que perdeu a visão (1652), segue o esquema do 29 camoniano, mas minha releitura foi pautada no paradigma do 19, que é mais difícil por ter menor variedade de rima. Sua filosofia reflete o puritanismo cristão do autor, que preferi neutralizar na simples contingência da criatura face ao criador: [original de Milton] When I consider how my light is spent, Ere half my days, in this dark world and wide, And that one talent which is death to hide, Lodged with me useless, though my soul more bent To serve therewith my Maker, and present My true account, lest he returning chide; Doth God exact day-labor, light denied? I fondly ask. But patience to prevent That murmur, soon replies, God doth not need Either man's work or his own gifts; who best Bear his mild yoke, they serve him best; his state Is kingly. Thousands at his bidding speed And post o'er land and ocean without rest: They also serve who only stand and wait. SONETO DA CEGA DEVOÇÃO [recriação transversa de Glauco Mattoso] Questiono-me se usei com bom proveito, enquanto pude vê-la, a luz que agora me falta, pelo imenso mundo afora, e quanta obra podia, então, ter feito. Ainda que falível e imperfeito, me resta algum talento, e quem adora um ente superior, como quem ora, à sina de servi-lo está sujeito. Se todos têm missão, eu tenho a minha: fazer da dor poemas que comprovem o quanto me humilhei em cada linha. Fiéis outros lhe são, montanhas movem em seu louvor. Já dei tudo que tinha: meus olhos, que esbanjei quando era jovem. [2.4.2] Durante o chamado Século de Ouro, a Espanha foi prolífica em sonetistas, muitos dos quais tematizavam anonimamente nas fronteiras do erotismo e da sátira, como neste exemplo fescenino recriado por José Paulo Paes: [original espanhol do Século de Ouro] A la orilla del agua estando un día, ajena de cuidado, una hermosa de mirarse su infierno deseosa, por verse sola allí sin compañía, la saya alzó que ver se lo empedía, y, pagada de ver tan rica cosa, le dice con voz mansa y amorosa que de dentro del alma le salía: "Por vos soy yo de tantos requebrada, por vos me dan aljorcas, gargantilla, chapines, saya y manto para el frío. Un beso quiero daros." Y abajada a darle, por estar tan a la orilla, trompicó de cabeza y dio en el río. [tradução de José Paulo Paes] À beira d'água estando certo dia, descuidada, uma dama primorosa, de mirar seu inferno desejosa e vendo-se ali só, sem companhia, a saia ergueu, que vê-lo lhe impedia e, feliz de ver coisa tão preciosa, disse, com doce voz de quem se goza, e que de dentro d'alma lhe saía: "Por vós eu sou de tantos requestada, por vós me dão colares e pulseira, sapatos, saia e manto para o frio. Um beijo quero dar-vos" e abaixada para o dar escorregou na beira e de cabeça despencou no rio. [2.4.3] Na literatura espanhola, Lope de Vega (1562-1635) tipifica o apuro formal do soneto barroco com este exemplo: EL SONETO [original de Lope de Vega] Un soneto me manda hacer Violante, Que en mi vida me he visto en tal aprieto: Catorce versos dicen que es soneto, Burla burlando, van los tres delante. Yo pensé que no hallara consonante, Y estoy en la mitad de otro cuarteto; Mas, si me veo en el primer terceto, No hay cosa en los cuartetos que me espante. Por el primer terceto voy entrando, Y aun parece que entré con pie derecho, Pues fin con este verso le voy dando. Ya estoy en el segundo, y aun sospecho Que estoy los trece versos acabando: Contad si son catorce, y está hecho. No Brasil, Gregório de Matos Guerra (1623-1696) reflete sua influência neste soneto: UM SONETO [recriação de Gregório de Matos] Um soneto começo em vosso gabo: Contemos esta regra por primeira, Já lá vão duas e esta é a terceira, Já este quartetinho está no cabo. Na quinta torce agora a porca o rabo; A sexta vai também desta maneira: Na sétima entro já com grã canseira, E saio dos quartetos muito brabo. Agora nos tercetos que direi? Direi que vós, Senhor, a mim me honrais Gabando-vos a vós, e eu fico um rei. Nesta vida um soneto já ditei; Se desta agora escapo, nunca mais; Louvado seja Deus, que o acabei. Minha versão do problema remete aos dois mestres, variando apenas na ordem dos fatores a fim de não ficar no mero arremedo: SONETO SONETADO [revisitação de Glauco Mattoso] Já li Lope de Vega e li Gregório, pois ambos sonetaram do soneto, seara na qual minha foice meto, tentando fazer algo meritório. Não quero usar o mesmo palavrório, mas pilho-me, no meio do quarteto, montando a anatomia do esqueleto. No oitavo verso, o alívio é provisório. Contagem regressiva: faltam cinco. Mais quatro, e fico livre do problema. Agora faltam três... Deus, dai-me afinco! Com dois acabo a porra do poema. Caralho! Só mais um! Até já brinco! Gozei! Matei a pau! Que puta tema! Mais recentemente, o parnasiano Bastos Tigre interpretou um dos satíricos momentos do mestre espanhol: LA PULGA [original de Lope de Vega] Picó atrevido un átomo viviente Los blancos pechos de Leonor hermosa, Granate en perlas, arador en rosa, Breve lunar del invisible diente: Ella dos puntas de marfil luciente Con súbita inquietud bañó quejosa, Y torciendo su vida bulliciosa, En un castigo dos venganzas siente. Al expirar la pulga, dijo: "¡Ay triste, Por tan pequeño mal dolor tan fuerte!" "Oh pulga, dije yo, dichosa fuiste; Detén el alma, y a Leonor advierte Que me deje picar donde estuviste, Y trocaré mi vida con tu muerte." A PULGA [tradução de Bastos Tigre] Fero e atrevido um átomo vivente Picara o colo de Leonor formosa, Deixando na alva pele cetinosa A leve marca de invisível dente. Ela, molhando os dedos cor-de-rosa, Entre eles colhe a mísera imprudente; E a comprimi-la, voluptuosamente, Doce vingança, em dar-lhe a morte, goza. Morrendo, exclama a pulga: Ó sorte crua! Duro castigo e leve culpa é este! E eu digo: Ah! Bem ditosa é a sina tua! Dize a Leonor quanto te invejo a sorte! Se ela deixa morder onde mordeste, A vida eu trocarei por tua morte. [2.5] Superado o estilo barroco, parecia também superado o soneto no século XVIII, com exceção dos italianos Alfieri e Foscolo, do português Bocage e do brasileiro Cláudio Manuel da Costa. No espanhol Iriarte o gênero fescenino se mantém cultivado. [2.5.1] Manuel Maria Barbosa Du Bocage (1765-1805) é outro que, como o italiano Belli, se arrependerá de ter versejado fesceninamente, mas, no fundo, reconhece ser herdeiro de Aretino, tanto quanto de Camões na forma. Aqui revisito dois de seus clássicos: o célebre auto-retrato e o soneto ditado na agonia final: [original de Bocage] Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno. Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura, Bebendo em níveas mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno. Devoto incensador de mil deidades, (Digo de moças mil) num só momento Inimigo de hipócritas, e frades. Eis Bocage, em quem luz algum talento: Saíram dele mesmo estas verdades Num dia, em que se achou cagando ao vento. SONETO BOCAGIANO [Glauco Mattoso] Bocage me comove em dois momentos: No seu auto-retrato, quando fala de pés ser bem dotado, o que arregala meus olhos de podólatra, olhos bentos; Em um de seus rompantes rabugentos o rei da putaria nos propala que adeus vai dando à puta, e, ao dispensá-la, escolhe um cu mais próprio aos seus intentos: É o sesso dum garoto que ele enraba, e assim sobe um pontinho em meu conceito. Mas essa empolgação logo se acaba. O Mestre nada mais diz a respeito, e eu fico aqui, gastando a minha baba, lambendo o pé de anônimo sujeito. [original de Bocage] Já Bocage não sou!... À cova escura Meu estro vai parar desfeito em vento... Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura. Conheço agora já quão vã figura Em prosa e verso fez meu louco intento. Musa!... Tivera algum merecimento, Se um raio da razão seguisse, pura! Eu me arrependo; a língua quase fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria: "Outro Aretino fui... A santidade Manchei... Oh!, se me creste, gente impia, Rasga meus versos, crê na Eternidade!" SONETO CONVICTO [Glauco Mattoso] Não pensem que pretendo renegar aquilo que em soneto tenho escrito. Posar de arrependido, de contrito, é ponto a que jamais quero chegar. Bocage e Kafka ocupam seu lugar ainda que "Me rasguem!" tenham dito. O meu lugar, minúsculo, restrito, ficou inda menor após cegar. Portanto, palmo a palmo, é meu terreno, do qual não abro mão nem na agonia, malgrado todo o torpe e todo o obsceno. Palmilham-no outros pés, minha mania. No verso pode ter metro pequeno. Na língua, não se esgota nem se expia. [2.5.2] Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) celebrizou-se pela temática bucólica e pastoril que, aliada à melhor técnica camoniana, lhe deu fama de sonetista do mais alto nível. Enquanto o colega e cúmplice inconfidente Tomás Antônio Gonzaga adotava o nome arcádico de Dirceu, este Cláudio foi quase meu xará: Glauceste Satúrnio. Dele reli o soneto abaixo para personalizar o tema da rivalidade masculina: [original de Cláudio Manuel da Costa] Não te cases com Gil, bela serrana; Que é um vil, um infame, um desastrado; Bem que ele tenha mais devesa, e gado, A minha condição é mais humana. Que mais te pode dar sua cabana, Que eu aqui te não tenha aparelhado? O leite, a fruta, o queijo, o mel dourado; Tudo aqui acharás nesta choupana: Bem que ele tange o seu rabil grosseiro, Bem que te louve assim, bem que te adore, Eu sou mais extremoso, e verdadeiro. Eu tenho mais razão, que te enamore: E se não, diga o mesmo Gil vaqueiro: Se é mais, que ele te cante, ou que eu te chore. SONETO DA DECLARAÇÃO [Glauco Mattoso] Te peço em casamento, amada minha, e espero que com outro não te cases. Bem sei que te cortejam mais rapazes e um deles a pedir-te se encaminha. Arrasto a teus pezinhos uma asinha faz tempo, mas cachorro de mim fazes. Terei de ouvir também risonhas frases do másculo rival que me espezinha? Te amo, e acatarei tua vontade: ainda que o prefiras, sigo sendo teu servo, e farei tudo que te agrade. Mas ele já me disse: "O que pretendo é ter-te sob a sola e, sem piedade, pisar-te!" Se assim queres (Ai!), me rendo... [2.5.3] Tomás de Iriarte (1750-1791) destaca-se na música e no melodrama; na poesia, sustenta o classicismo. O exemplo abaixo esquematiza o deca em ABBA ABBA CDE DFD, que José Paulo Paes reproduz em CDE FFD nos tercetos: [original de Iriarte] Señor D. Juan, quedito, que me enfado: besar la mano es mucho atrevimiento; abrazarme... no, D. Juan, no lo consiento. Cosquillas... ay Juanito... ¿y el pecado? Qué malos son los hombres... mas, cuydado que me parece, Juan, que pasos siento... no es nadie... pues despachemos un momento. ¡Ay, qué placer... tan dulce y regalado! Jesús, que loca soy, quién lo creyera que con un hombre yo... siendo cristiana mas... que... de puro gusto... ¡ay... alma mía! Ay, que vergüenza, vete... ¿y aún tienes gana? Pues cuando tú lo pruebes otra vez... pero, Juanito, ¿volverás mañana? [tradução de José Paulo Paes] Senhor D. João, quietinho, que me enfado: beijar a mão é muito atrevimento; abraçar-me... isso não, que me apoquento. Cosquinhas... ai Joãozinho... e o pecado? Como são maus os homens... mas cuidado que me parece ouvir passos lá dentro... não é ninguém... apressa o teu momento. Ai que prazer... tão doce e regalado! Jesus, sou uma louca, quem diria que com um homem eu... sendo cristã mas... que... de puro gozo... ai! vida minha! Quanta vergonha... Vai-te... Queres mais? O que tiveste não te satisfaz? Oh meu Joãozinho, voltas amanhã? [2.6] A reabilitação das literaturas românicas pelos românticos alemães e ingleses, no começo do século XIX, propiciou nova onda de sonetos: Wordsworth, Keats, Platen, Puchkin; na literatura francesa, uma exceção (Nerval) e uma unanimidade (Arvers). Outra exceção é o italiano Belli, impecavelmente clássico mas dialetal e suburbano. Byron é um dos nomes que mais influenciaram os ultra-românticos em vários países, inclusive no Brasil, caso de Álvares de Azevedo. [2.6.1] Caso peculiar é o de Félix Arvers (1806-1850), dramaturgo francês que, em verso, ficou famoso como "poeta de um poema só" (tal como o nosso Coelho Neto, hoje esquecido como romancista mas lembrado como autor do célebre soneto "Ser mãe"), cujo soneto único (em alexandrinos, naturalmente) virou mito literário, e já foi tão traduzido e parodiado, que minha versão decassílaba bem que pode ser a última: [original de Arvers] Mon âme a son secret, ma vie a son mystère, Un amour éternel en un moment conçu: Le mal est sans espoir, aussi j'ai dû le taire, Et celle qui l'a fait n'en a jamais rien su. Hélas! j'aurai passé près d'elle inaperçu, Toujours à ses côtés, et pourtant solitaire. Et j'aurai jusqu'au bout fait mon temps sur la terre, N'osant rien demander et n'ayant rien reçu. Pour elle, quoique Dieu l'ait faite douce et tendre, Elle ira son chemin, distraite et sans entendre Ce murmure d'amour élevé sur ses pas. A l'austère devoir, pieusement fidèle, Elle dira, lisant ces vers tout remplis d'elle: "Quelle est donc cette femme?" et ne comprendra pas. SONETO IRRECONHECÍVEL [recriação de Glauco Mattoso] Segredos todos temos, mas o meu somente é misterioso para alguém que sabe do meu fraco, porém nem suspeita que é seu pé meu camafeu. Será que quem me vê, nesse meu breu perdido, não notou que seu pé tem das solas a mais chata e que, também, mais curto é seu dedão não percebeu? Duvido! Está fazendo que não nota, fingindo que me pisa sem querer, que sente pena, enquanto faz chacota! E mesmo quando, um dia, resolver deixar que, enfim, eu lamba sua bota, irá negar que teve algum prazer! [2.6.2] George Gordon Byron (1788-1824) encontrou na nossa Geração de 45 um digno tradutor à altura de seu esquema petrarquiano (adaptado para ABBA CDDC EFE FEF), aqui convertido em ABBA ABBA CCD DEE: SONNET ON CHILLON [original de Byron] Eternal Spirit of the chainless Mind! Brightest in dungeons, Liberty! thou art; For there thy habitation is the heart The heart which love of thee alone can bind; And when thy sons to fetters are consigned To fetters, and the damp vault's dayless gloom, Their country conquers with their martyrdom, And Freedom's fame finds wings on every wind. Chillon! thy prison is a holy place, And thy sad floor an altar for 'twas trod, Until his very steps have left a trace Worn, as if thy cold pavement were a sod, By Bonnivard! May none those marks efface! For they appeal from tyranny to God. SONETO SOBRE CHILLON [tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos] Eterno Espírito da insubjugável Mente! No calabouço brilhas mais, ó Liberdade, Pois lá no coração habitais de verdade, No coração que prende o teu amor somente. Quando teus filhos são entregues à corrente E ao perpétuo negror de úmida cavidade, A pátria vence com o martírio da hombridade, E a fama de ser livre ao vento se ala, ardente! Chillon! tua prisão é um lugar sagrado E altar teu triste chão, pois ele foi pisado Até gastar-se com o vestígio de seu passo, Qual se fosse de terra o piso nesse espaço Por Bonnivard! Ninguém apague os rastros seus, Pois apelam da tirania para Deus! [2.6.3] Giuseppe Gioachino Belli (1791-1863) é considerado caso patológico: autor compulsivo de milhares de sonetos (formalmente rigorosos porém "desqualificados" por causa do vulgar dialeto da periferia romana), dedicou-se às temáticas fesceninas e morreu arrependido por ter sido porta-voz do demônio. Em português teve, entre seus tradutores, Augusto de Campos e José Paulo Paes, como nestes exemplos: L'INCISCIATURE [original de Belli] Che sscenufreggi, ssciupi, strusci e ssciatti! Che ssonajjera d'inzeppate a ssecco! Iggni bbotta, peccrisse, annava ar lecco: Soffiamio tutt'e ddua come ddu' gatti. L'occhi invetriti peggio de li matti: Sempre pelo co ppelo, e bbecc'a bbecco. Viè e nun vieni, fà e ppijja, ecco e nnun ecco; E ddajje, e spiggne, e incarca, e striggni e sbatti Un po' ppiú cche ddurava stamio grassi! Ché ddoppo avé ffinito er giucarello Restassimo intontiti com'e ssassi. È un gran gusto er fregà! ma ppe ggoddello Più a cciccio, ce voría che ddiventassi Giartruda tutta sorca, io tutt'uscello. A EMBOCADURA [tradução de José Paulo Paes] Que esfregações, gemidos, desbaratos! Que arremessos a seco, numa enfiada! Todos no alvo, por Cristo, desde a entrada: Ficam bufando os dois como dois gatos. Olhos vidrados, pior que de insensatos: Pêlo com pêlo, boca a boca atada, E enfia e empurra e bate sem parada; Vai e vem, põe e tira num só ato. Descalabro se um pouco mais durasse! Chegada a brincadeira ao seu final, Ficamos feito pedras, inconscientes. É muito bom foder! Mas o ideal Seria nos tornarmos realmente Gertrudes toda cona e eu todo pau. ER PADRE DE LI SANTI [original de Belli] Er cazzo se pò di radica, uscello, Cischio, nerbo, tortore, pennarolo, Pezzo de carne, manico, scetrolo, Asperge, cucuzzola e stennarello. Cavichio, canaletto e criavistello, Er gionco, er guercio, er mio, nerchia, pirolo, Attacapanni, moccolo, brugnolo, Inguilla, torciorechio e manganello. Zeppa e batocco, cavola e turaccio, E maritozzo e canella e pipino, E salame, e sarciccia, e sanguinaccio. Poi scaffa, canochiale, arma, bambino: Poi torzo, crescimano, catenaccio, Mannola e mi'-fratello-piccinino. O PAI DOS SANTOS [tradução de Augusto de Campos] O membro pode ser careca e anão Estaca espada espeto espiga falo Pavio bordão bengala pinto e galo Palmito vara vassoura pilão Mangalho manivela ou aguilhão Ferro fumo porrete mastro malho Lança-perfume fósforo caralho Espingarda cacete obus canhão Piroca pênis pau e pica e piça Priapo prego porra pito e pino Pirolito pistola pão rabiça Mandioca nabo pimentão pepino Banana macarrão peru lingüiça Maçaranduba e mano pequenino [2.7] Mas justamente aos poetas franceses serve o soneto, pela sua disciplina formal, para superar o romantismo: é a hora dos parnasianos Leconte de Lisle, Hérédia e Henri de Régnier, aos quais se juntam numerosos adeptos da escola parnasiana, em Portugal (Antero de Quental), no Brasil (Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira) e na América espanhola (González Martínez, Banchs). Um brasileiro se destaca entre os contemporâneos pela volumosa produção: enquanto a maioria dos grandes sonetistas não compõe mais que algumas centenas, Luís Delfino ultrapassa o milhar, mantendo a qualidade. [2.7.1] Antero Tarqüínio de Quental (1842-1891) foi mais revolucionário na política que na poética, mas, mesmo sem ter deixado Camões para trás, deixou sua marca pessoal como sonetista. Dele é este exemplo, cujo tema interpreto à minha maneira: METEMPSICOSE [original de Antero de Quental] Ardentes filhas do prazer, dizei-me!, vossos sonhos quais são, depois da orgia? Acaso nunca a imagem fugidia do que foste em vós se agita e freme? Noutra vida e outra esfera, aonde geme outro vento, e se acende um outro dia, que corpo tínheis? que matéria fria vossa alma incendiou, com fogo estreme? Vós fostes, nas florestas, bravas feras, arrastando, leoas ou panteras, de dentadas de amor um corpo exangue... Mordei, pois, esta carne palpitante, feras feitas de gaze flutuante... Lobas! leoas! Sim, bebei meu sangue! SONETO INCORPORADO [Glauco Mattoso] Em outra encarnação, acho que estive na pele dum cachorro vira-lata: não sou nenhum mascote duma gata riquíssima ou bonita, que o cative. Não tenho alguém que, sádico, me prive do pão, da liberdade, ou que me bata, porém, do modo como me maltrata, meu dono acorda o escravo que em mim vive. O cara simplesmente tira a bota e manda-me lamber seu pé fedido, de cuja sola sujo suor brota! Com nojo, eu a princípio me intimido, mas logo me recordo da remota missão: lambendo, engulo meu ganido. [2.7.2] Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918) foi marcado pela (e para a) poesia até no nome, que forma um perfeito alexandrino. De seu mais célebre soneto fiz minha paródia: LÍNGUA PORTUGUESA [original de Olavo Bilac] Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura. Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arrolo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, Em que da voz materna ouvi: "meu filho!", E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! LÍNGUA PUTANHEIRA [paródia de Glauco Mattoso] A língua deflorada, puta bela, a um tempo é despudor e compostura. Menina virgem, sim, porém impura: tem cabacinho mas caralhos fela. Quero-te assim, cu doce e pica dura, carícia, ato de amor, curra barrela, que tens o dom e o vício da donzela e o ardor da crueldade e da tortura! Amo teus bardos, anjos de Sodoma, bastardos de olho vivo e de ânus largo! Amo-te, ó grosso e doloroso idioma, em que o Pai me chamou "da puta filho" e em que eu choro a cegueira e canto o encargo de usar-te a lamber botas, dando um brilho! [2.7.3] Antônio Mariano Alberto de Oliveira (1857-1937) foi reinterpretado por mim no seguinte soneto: ENFIM [original de Alberto de Oliveira] Enfim... Nas verdes pêndulas ramadas Cantai, pássaros! Vinde ouvi-lo! Rosas, Abri-vos! Lírios, recendei! Medrosas Miosótis e acácias perfumadas, Prestai-me ouvido! Saibam-no as cheirosas Balças e leiras úmidas plantadas; Aves e flores, flores e alvoradas, Alvoradas e estrelas luminosas, Saibam-no, saiba o céu com a esfera toda Que, enfim, sua mão, enfim, sua mão de leve... Borboletas, que pressa! Andais-me em roda! Auras, silêncio! Enfim, sua mãozinha, Sua mão de jaspe, sua mão de neve, Sua alva mão pude apertar na minha! SONETO SUPLANTADO [releitura de Glauco Mattoso] Até que enfim! Estoure-se a pipoca! Badalem sinos! Flores abram já! As aves corram todas para cá! Meu júbilo a atenção geral convoca! Estrelas resplandeçam! Que a fofoca se espalhe desde o Pampa ao Amapá! Que estampem os jornais! Que o blablablá por tema tenha o que meu lábio toca! O céu saiba de tudo, e toda a esfera, que, enfim, seu pé... no olhar se me agiganta... Até a periquitada se aglomera! Silêncio, cachorrada! Enfim, me canta a vida! Enfim, depois de tanta espera, senti no lábio, em cheio, a plana planta! [2.7.4] Luís Delfino dos Santos (1834-1910) foi parodiado por mim no seguinte soneto: O RISO [original de Luís Delfino] Quando o véu melancólico, que enchia De graça austera e força radiante, Num momento melhor de humor rompia No riso, que humanava o seu semblante; Quando nos lábios ele aparecia, Buscava-a um anjo, e vinha inda distante, Mas quando ele cantava, e quando ria, Quando esse riso ria-se bastante, Eu via tudo em torno acompanhá-la: Um rouxinol dos ângulos da sala Cantava, e ria alegre o espaço ao vê-la. E para não ouvir naquele riso Cantar o firmamento, era preciso Não saber como canta o céu e a estrela. SONETO SORRIDENTE [paródia de Glauco Mattoso] Verdugo melancólico, não via em nada a graça que aos demais encante. Na hora da tortura é que rompia o riso que humanava o seu semblante. Quando em seus lábios o animal sorria, satânica era a face num instante. Mas quando ele açoitava, que euforia! Ao Demo não faltava acompanhante. Em torno todos punham-se a aclamá-lo. A cena avolumava cada falo daqueles que ali vinham desfrutá-la. E para não ouvir, naquele riso, cantar toda a platéia, era preciso supor que uma chibata não estala. [2.8] Os simbolistas, apesar de sua oposição ao parnasianismo, recorrem aos exemplos de Baudelaire e Rimbaud para sustentar o soneto: Mallarmé, Verlaine, os poetas holandeses de 1880 (Perck, Verney, von de Woestijne), os brasileiros Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens; caso à parte é o de Augusto dos Anjos, cujo equivalente mais próximo em Portugal seria Cesário Verde. [2.8.1] Charles Pierre Baudelaire (1821-1867) foi anticonvencional em tudo: processado por obscenidade, usuário e apologista da droga, satanista imitado mundo afora (inclusive no Brasil, por Teófilo Dias), transitou entre temáticas violentamente românticas e formas esmeradamente parnasianas, no que abre caminho aos meandros simbolistas. LES AVEUGLES [original de Baudelaire] Contemple-les, mon âme!; ils sont vraiment affreux! Pareils aux mannequins; vaguement ridicules; Terribles, singuliers comme les somnambules; Dardant on ne sait où leurs globes ténébreux. Leurs yeux, d'où la divine étincelle est partie, Comme s'ils regardaient au loin, restent levés Au ciel; on ne les voit jamais vers les pavés Pencher rêveusement leur tête appesantie. Ils traversent ainsi le noir illimité, Ce frère du silence éternel. Ô cité! Pendant qu'autour de nous tu chantes, ris et beugles, Éprise du plaisir jusqu'à l'atrocité, Vois! Je me traîne aussi! Mais, plus qu'eux hébété, Je dis: Que cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles? OS CEGOS [tradução de Ivan Junqueira] Contempla-os, ó minha alma; eles são pavorosos! Iguais aos manequins, grotescos, singulares, Sonâmbulos talvez, terríveis se os olhares, Lançando não sei onde os globos tenebrosos! Suas pupilas, onde ardeu a luz divina, Como se olhassem à distância, estão fincadas No céu; e não se vê jamais sobre as calçadas Se um deles a sonhar sua cabeça inclina. Cruzam assim o eterno escuro que os invade, Esse irmão do silêncio infinito. Ó cidade! Enquanto em torno cantas, ris e uivas ao léu, Nos braços de um prazer que tangencia o espasmo, Olha! também me arrasto! e, mais do que eles pasmo, Digo: que buscam estes cegos ver no Céu? [2.8.2] Jean Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891) é prototípico do gênio precoce e também do "malditismo" pós-romântico. Formalmente, emprega o mesmo rigor parnasiano de Baudelaire. No caso do primeiro soneto abaixo (esquematizado em ABBA BAAB CCD EED), a versão brasileira de Gondin da Fonseca é justalinear, ao contrário de minhas habituais recriações, mas soluciona, sem prejuízo, a quase psicodélica proposta do poema sinestésico; quanto ao soneto seguinte, é esquematizado em ABBA ABBA CCD EED e também composto em alexandrinos, metro em que os franceses foram mestres. VOYELLES [original de Rimbaud] A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles je dirai quelque jour vos naissances latentes: A, noir corset velu des mouches éclatantes qui bombinent autour des puanteurs cruelles, Golfes d'ombre; E, candeurs des vapeurs et des tentes, lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles; I, pourpres, sang craché, rire des lèvres belles dans la colère ou les ivresses pénitentes; U, cycles, vibrements divins des mers virides, paix des pâtis semés d'animaux, paix des rides que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux; O, suprême Clairon plein des strideurs étranges, silences traversés des Mondes et des Anges: O l'Oméga, rayon violet de Ses Yeux! VOGAIS [recriação de Gondin da Fonseca] A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais algum dia direi vossas fontes latentes: A torso penugento e negro de esplendentes moscas, zoando ao redor de podridões mortais, golfos de sombra; E fumo branco, alvos tendais, flechas de gelo, reis de luar, pálios trementes; I púrpura, hemoptise, ébrios lábios candentes, belos, em risos de ira ou penitentes ais; U ciclos, vibrações de oceanos verdes, paz das veigas pastoris e das rugas que faz na fronte do alquimista o longo investigar; O supremo Clarim de estranhos sons profundos, silêncios através dos Anjos e dos Mundos: O Ômega, fulgor lilás do Seu Olhar! [original de Rimbaud] Obscur et froncé comme un oeillet violet Il respire, humblement tapi parmi la mousse Humide encor d'amour qui suit la rampe douce Des fesses blanches jusqu'au coeur de son ourlet Des filaments pareils à des larmes de lait Ont pleuré sous le vent cruel qui les repousse A travers de petits caillots de marne rousse, Pour s'aller perdre où la pente les appelait. Mon rêve s'aboucha souvent à sa ventouse. Mon âme, du coït matériel jalouse, En fit son larmier fauve et son nid de sanglots. C'est l'olive pâmée et la flûte câline, Le tube d'où descend la cêleste praline, Chanaan féminin dans les moiteurs enclos. TERCEIRO SONETO DE "LES STUPRA" [tradução de José Paulo Paes] Franzida e obscura como um ilhós violeta, Ela respira, humilde, entre a relva rociada Inda do amor que desce a branda rampa das Alvas nádegas até o coração da greta. Filamentos iguais a lágrimas de leite Choraram sob o vento atroz que os arrecada E os impele através de marnas arruivadas Até perderem-se na fenda dos deleites. Beijando-lhe a ventosa, o meu sonho o freqüenta. A minha alma, do coito material ciumenta, Qual lacrimal e ninho de soluços usa-a. É a oliva esvaída e é a flauta agreste, O tubo pelo qual desce a amêndoa celeste, Feminil Canaã em seus rocios reclusa. [2.8.3] Stéphane Mallarmé (1842-1898) é parnasiano no rigor formal, simbolista no hermetismo e modernista na antecipação das experiências novecentistas. Sua proposta poética dá um passo em direção às vanguardas e passa a bola a Apollinaire. No Brasil, consegue até a proeza de levar Augusto de Campos a retrabalhar o soneto a fim de transcriar-lhe o exemplo abaixo: LE SONNEUR [original de Mallarmé] Cependant que la cloche éveille sa voix claire A l'air pur et limpide et profond du matin Et passe sur l'enfant qui jette pour lui plaire Un angélus parmi la lavande et le thym, Le sonneur effleuré par l'oiseau qu'il éclaire, Chevauchant tristement en geignant du latin Sur la pierre qui tend la corde séculaire, N'entend descendre à lui qu'un tintement lointain. Je suis cet homme. Hélas! de la nuit désireuse, J'ai beau tirer le câble à sonner l'Ideal, De froids péchés s'ébat un plomage feal, Et la voix ne me vient que par bribes et creuse! Mais, un jour, fatigué d'avoir en vain tiré, O Satan, j'ôterai la pierre et me pendrai. O SINEIRO [transcriação de Augusto de Campos] Embora o sino acorde uma voz que ressoa Clara no ar puro e limpo e fundo da manhã E desperta, infantil, uma outra voz que entoa Um angelus por entre a alfazema e a hortelã, O sineiro evocado à clave da ave, irmão Sinistro cavalgando, a gemer sua loa, A pedra que distende a corda em sua mão, Só ouve retinir um vago som que ecoa. Esse homem sou eu. Dentro da noite louca Agrada-me puxar a corda do Ideal, De pecados se alegra a plumagem leal E a minha voz me vem aos pedaços e oca! Mas um dia, cansado deste afã obscuro, Ó Satã, eu roubo esta pedra e me penduro. [2.8.4] O sarcasmo do português José Joaquim Cesário Verde (1855-1886), marcadamente baudelairiano, vai repercutir no brasileiro Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914), ambos sublimes na abjeção e na objeção ao bom tom. Comparem-se as escatológicas chaves-de-ouro: HEROÍSMOS [original de Cesário Verde] Eu temo muito o mar, o mar enorme, Solene, enraivecido, turbulento, Erguido em vagalhões, rugindo ao vento; O mar sublime, o mar que nunca dorme. Eu temo o largo mar rebelde, informe, De vítima famélico, sedento, E creio ouvir em cada seu lamento Os ruídos dum túmulo disforme. Contudo, num barquinho transparente, No seu dorso feroz vou blasonar, Tufada a vela e n'água quase assente, E ouvindo muito ao perto o seu bramar, Eu rindo, sem cuidados, simplesmente, Escarro, com desdém, no grande mar! VERSOS ÍNTIMOS [original de Augusto dos Anjos] Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão esta pantera Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! [2.9] As vanguardas cubista, futurista, dadaísta e surrealista repercutem entre as artes plásticas e a poesia, com inevitáveis conseqüências na forma do poema. Guillaume Apollinaire (1880-1918) foi um dos responsáveis pela antecipação dessas rupturas na poesia francesa. Um de seus sonetos foi recriado em português desta maneira: HERCULE ET OMPHALE [original de Apollinaire] Le cul D'Omphale Vaincu S'affale. Sens-tu Mon phalle Aigu? Quel mâle!... Le chien Me crève!... Quel rêve!... .. Tiens bien! Hercule L'encule. HÉRCULES E ÔNFALE [tradução de José Paulo Paes] O cu Onfálico (Vão cu!) Cai rápido. Vês tu Quão fálico? Taful! Priápico! Que sonho Medonho!... Segura!... E a fura O hercúleo Acúleo. [2.9.1] O modernismo variou, em cronologia e terminologia, entre a Europa e as Américas (espanhola e portuguesa), mas coincidiu na desconstrução do soneto, que temporariamente perdeu sua integridade estrutural ou foi substituído pelo experimentalismo branco e livre. Mas não tardou para que os modernistas de primeira hora (ultraístas nos países latino-americanos) restaurassem o molde canônico, a fim de que a "revolução" se consumasse menos na forma que no conteúdo. Além dos brasileiros Bandeira, Drummond e Vinicius, um mexicano desempenhou papel de liderança, análogo (até na homossexualidade) ao de Mário de Andrade entre nós: trata-se de Salvador Novo (1904-1974), de quem traduzi os sonetos confessionais, um dos quais é o que se segue: [original de Salvador Novo] Este fácil soneto cotidiano que mis insomnios nutre y desvanece, sin objeto ni dádiva se ofrece al nocturno sopor del sueño vano. ¡Inanimado lápiz que en mi mano mis odios graba o mis ensueños mece! En tus concisas líneas aparece la vida fácil, el camino llano. Extinguiré la luz. Y amanecida, el diamante de ayer será al leerte una hoguera en cenizas consumida. Y he de concluir, soneto, y contenerte como destila el jugo de la vida la perfección serena de la muerte. SONETO AMANHECIDO [recriação de Glauco Mattoso] O fácil sonetinho cotidiano que minha insônia nutre e desvanece sem tema nem dilema se oferece durante o pesadelo mais mundano. Traçando em pleno vácuo vou meu plano que sobe até o desejo e ao ódio desce. Em linhas decoradas como prece a vida vai por trilho reto e plano. A luz extinguirei, e de manhã já não há trem veloz que me transporte e o fogo consumiu a idéia vã. Soneto, não me escapas! Sou mais forte! Te findo, inda que falte ao meu afã serena perfeição, como a da morte! [2.10] Enfim, o soneto sobreviveu à revolução modernista, prestando-se às novas experiências de Umberto Saba, Rilke, Juan Ramón Jiménez, Miguel Hernández, e dos discípulos ingleses do precursor Gerard Manley Hopkins. No Brasil, três exemplos de soneto concretista são estes de José Lino Grünewald, Augusto de Campos e Glauco Mattoso: o primeiro é um mosaico de chavões retóricos e protocolares; o segundo, uma colagem de fragmentos que mistura versos de autores clássicos a versos de sambas tradicionais, num dos mais perfeitos centões já compostos no decassílabo lusófono; o terceiro, uma sátira aos abecedários populares e às cartilhas escolares e escolásticas. SONETO BUROCRÁTICO [José Lino Grünewald] Sálvio melhor juízo doravante, Dessarte, data vênia, por suposto, Por outro lado, maximé, isso posto, Todavia deveras, não obstante Pelo presente, atenciosamente, Pede deferimento sobretudo, Nestes termos, quiçá, aliás, contudo Cordialmente alhures entrementes Sub-roga ao alvedrio ou outrossim Amiúde nesse ínterim, senão Mediante mormente, Oxalá quão Via de regra tê-lo-ão enfim Ipso facto outorgado, mas porém Vem substabelecido assim, amém. SONETERAPIA 2 [Augusto de Campos] tamarindo da minha desventura não me escutes nostálgico a cantar me vi perdido numa selva escura que o vento vai levando pelo ar se tudo o mais renova isto é sem cura não me é dado beijando te acordar és a um tempo esplendor e sepultura porque nenhuma delas sabe amar somente o amor e em sua ausência o amor guiado por um cego e uma criança deixa cantar de novo o trovador pois bem chegou minha hora de vingança vem vem vem vem vem sentir o calor que a brisa do brasil beija e balança SONETO SOLETRADO [Glauco Mattoso] Decifre um abecê no abracadabra. Deduza o delta errado do programa. A fórmula se grafa com o gama. Viado tem hiato na palavra. John Kennedy deu bode; o Lampe é cabra. Mamãe amamentando, o nenê mama. Do opíparo quitute o aroma chama. O russo arreda o rico e a roça lavra. Um esse se assemelha ao saxofone. O tu, segundo o verbo, é uma pessoa. Vê dábliu é rei plebeu, sem quem destrone. O xis parece a cruz, que se abençoa. Tem cara de forquilha o pissilone. O zê ziguezagueia, zurze e zoa. [2] HISTÓRIA DO SONETO
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