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Ledo Ivo (Maceió AL 1924)
Talvez pela cadeira na Academia, tem sido o mais visível representante
da Geração de 45, embora, em termos de soneto, esteja mais próximo do
modernismo que duma matriz parnasiana. Capaz de fugir ao coloquial
quando emprega "esquivança" e segue o decassílabo, é no entanto mais
comprometido com o informal quando esse mesmo deca escapa ao cânone
heróico ou sáfico ("onde me punge o descontentamento") ou quando encaixa
um "pentelho" no lirismo. Pequena amostra da mestria eclética do
sonetista:
SONETO DE ABRIL Agora que é abril, e o mar se ausenta, secando-se em si mesmo como um pranto, vejo que o amor que te dedico aumenta seguindo a trilha de meu próprio espanto. Em mim, o teu espírito apresenta todas as sugestões de um doce encanto que em minha fonte não se dessedenta por não ser fonte d'água, mas de canto. Agora que é abril, e vão morrer as formosas canções dos outros meses, assim te quero, mesmo que te escondas: amar-te uma só vez todas as vezes em que sou carne e gesto, e fenecer como uma voz chamada pelas ondas. SONETO NUM CARDÁPIO Que está no prato? O tempo, que o homem come misturado a espinafre e carne dura. Entre o talher e a vida, ele tritura as horas que temperam sua fome. Rei de si mesmo, sem vassalo ou nome, ele mastiga o mundo, e a dentadura muda o cardápio numa massa escura que na úmida garganta rola e some. O homem que come o pão que o diabo amassa e quando come se lambuza, e come gato por lebre, na aventura louca de tudo reduzir a pesca e caça, come, para viver, a própria fome, e, como os peixes, morre pela boca. SONETO COR-DE-ROSA O meu amor é apenas um dorso que se deixa dourar pelo cair da tarde. Só o ar que respiro conhece o tesouro que guardo, em sigilo, num mundo de alardes. Quando a alvura da tarde se transmuda num negror de pentelhos, e a caliça das estrelas me cega, um delta de betume numa mulher deitada me enfeitiça. E a noite, que suprime a forma dos gasômetros e corrói a carcaça dos navios, nas galáxias de asfalto finca as paliçadas que escondem os amantes num horizonte onde os fogos escorrem como rios entre a rósea bainha e a ardida espada. SONETO DAS ALTURAS As minhas esquivanças vão no vento alto do céu, para um lugar sombrio onde me punge o descontentamento que no mar não deságua, nem no rio. Às mudanças me fio, sempre atento ao que muda e perece, e ardente e frio, e novamente ardente é no momento em que luz o desejo, poldro em cio. Meu corpo nada quer, mas a minh'alma em fogos de amplidão deseja tudo o que ultrapassa o humano entendimento. E embora nada atinja, não se acalma e, sendo alma, transpõe meu corpo mudo, e aos céus pede o inefável e não o vento. SONETO DO EMPINADOR DE PAPAGAIO A nada aceito, exceto a eternidade, nesta viagem ambígua que me leva ao altar absoluto que, na treva, espera pela minha inanidade. O que sonhei, menino, hoje é verdade de alva estação que em meu silêncio neva o inverno de uma fábula primeva que foi sol, cego à própria claridade. Na hora do fim de tudo, separados fiquem os dois comparsas do destino que sabe a cinza após o último alento. E a morte guarde em cova os injuriados despojos do homem feito; que o menino empina o papagaio, vive ao vento. SONETO À NADADORA A meus olhos terrestres, teu sorriso, enquanto existes, fruta de esplendor, não se assemelha às ondas, mas à flor pelo acaso deposta onde é preciso. Entendes o equinócio, no indiviso sulco de luz dormida. E é meu temor que te desgaste o sol, com seu fulgor persuasivo e sonoro como um riso. O verde condenável das piscinas no cântico braçal desenha os prantos que a noite oferta à fímbria de teus cílios. Conformada às marés, como as ondinas, dás a manhã aos céus, e os acalantos de teus pés frios soam como idílios. À DOCE SOMBRA DOS CANCIONEIROS À doce sombra dos cancioneiros em plena juventude encontro abrigo. Estou farto do tempo, e não consigo cantar solenemente os derradeiros versos de minha vida, que os primeiros foram cantados já, mas sem o antigo acento de pureza ou de perigo de eternos cantos, nunca passageiros. Sôbolos rios que cantando vão a lírica imortal do degredado que, estando em Babilônia, quer Sião, irei, levando uma mulher comigo, e serei, mergulhado no passado, cada vez mais moderno e mais antigo. SONETO DA AURORA Quando a aurora se for, não mais seremos o que ora somos, entre a Noite e o Dia, cegos contempladores da magia que no aquário da noite surpreendemos; somos flamas do instante, e em luz ardemos presos eternamente ao que seria o amor em nossos corpos, alegria do perpétuo horizonte em que nascemos. Das corolas do céu extraio a ardente forma de redenção cativa à hora em que ao puro lilá fui entregar-me. Que somos nós senão a eternidade? O amor transfigurou-se como a aurora e se extinguiu após enfeitiçar-me. A TARTARUGA A tartaruga leva um dia imenso em seu puro passeio solitário; sustenta a carapaça do universo no silêncio das presas vagarosas. No horizonte ondulante, ela procura a noite umedecida dos quelônios há milênios perdida no dilúvio que dispersou seus lentos ancestrais. Ela persegue o fim do labirinto numa jaula invisível, e é redondo o céu verde do zoo, que cega as feras. E riem-se as crianças, vendo-a, lerda, no apressado universo, e soltam mundos: balões azuis bebidos pelo espaço. SONETO DO CAIS PHAROUX Se alguém me espera no galpão do mar, que me ame antes que eu parta e o cumprimente. Ter a morte ao meu lado, ou frente a frente, fora melhor que ter de o esperar. Partiria de mim, sem me voltar, ao descobrir-me nesse amor ardente que alguém que não me aguarda, suavemente haveria de dar-me, ao me encontrar. Sem que nos conhecêssemos, tivemos esse encontro marcado junto ao mar, no convés de um navio que partisse. Mesmo que em tempo algum nos encontremos, tenho os olhos eternos de fitar seu perfil tão distante, se existisse.
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