futura |
[CONTEÚDO TELEVISIVO PARA INTERPROGRAMAS DO CANAL FUTURA] Regra 1: Ter 14 versos. Regra 2: Ser preferencialmente decassílabo. Regra 3: Os versos devem rimar entre si em diferentes combinações. Regra 4: Desenvolver um tema/assunto. Regra 5: Seguir um estilo. Quase toda brincadeira é um jogo, e todo jogo tem suas regras. Além dos "games" que todos conhecem, existem possibilidades lúdicas até na arte e (Por que não?) na literatura. Enquanto as crianças brincam com cantigas e trava-línguas, os adultos podem se divertir aprendendo a compor sonetos, por exemplo. O soneto é um tipo de poema bastante regrado, mas por isso mesmo muito praticado, justamente pelo desafio que representa. Fazer sonetos e mostrá-los aos amigos pode ser um jogo gostoso, no qual o ganhador é cada autor que vence o desafio de concluir seu pensamento dentro do poema. Mas o prêmio pode ser ainda mais estimulante se houver um concurso, como o que se prepara para homenagear um dos maiores sonetistas brasileiros: Vinicius de Moraes, o grande compositor que também era importante fora da música. Enquanto não participa de nenhum concurso, com regulamento e tudo, o jogador pode estudar a seguir as regrinhas mais elementares para se fazer um soneto de verdade. Vamos praticar? Bem-vindos à sonetomania! [GLAUCO MATTOSO] REGRA 1 [TER 14 VERSOS] Assim como a trova ou quadrinha tem quatro versos e o haicai três, o soneto tem catorze. Normalmente os versos estão distribuídos em duas estrofes de quatro versos (chamadas QUARTETOS) e duas de três versos (chamadas TERCETOS), como se fosse uma seqüência de duas trovas e dois haicais, só que no soneto os versos são mais longos e o poema tem uma unidade temática bem amarrada. O exemplo a seguir é o mais famoso de Vinicius de Moraes e será relido constantemente na explicação destas regras sintetizadas: SONETO DE FIDELIDADE [Vinicius de Moraes] De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Outro exemplo pode ser este, alusivo ao que seria o nonagésimo aniversário do poeta, se vivo fosse: SONETO DE ANIVERSÁRIO [Vinicius de Moraes] Passem-se dias, horas, meses, anos Amadureçam as ilusões da vida Prossiga ela sempre dividida Entre compensações e desenganos. Faça-se a carne mais envilecida Diminuam os bens, cresçam os danos Vença o ideal de andar caminhos planos Melhor que levar tudo de vencida. Queira-se antes ventura que aventura À medida que a têmpora embranquece E fica tenra a fibra que era dura. E eu te direi: amiga minha, esquece... Que grande é este amor meu de criatura Que vê envelhecer e não envelhece. Esta estrutura segue o molde clássico, usado por Camões, que é conhecido como soneto ITALIANO. Outra maneira de dividir as estrofes é dar três quartetos seguidos de um dístico, no qual os dois versos rimam sozinhos. Esta segunda opção segue o modelo INGLÊS, usado por Shakespeare e pouco cultivado nos países latinos. Exemplos do soneto inglês e de outras divisões estróficas, menos comuns, podem ser examinados na página MODELOS DE SONETO do nosso menu. REGRA 2 [SER PREFERENCIALMENTE DECASSÍLABO] Para saber se um verso é DECASSÍLABO (isto é, se tem dez sílabas), o jogador precisa acostumar-se a contar as sílabas poéticas, que são diferentes das sílabas gramaticais. Por exemplo, no soneto-modelo de Vinicius (exemplo [1] abaixo), o primeiro verso teria doze sílabas se fossem separadas pela gramática: De tudo, ao meu amor serei atento De/tu/do/ao/meu/a/mor/se/rei/a/ten/to Pelas regras da versificação, porém, só se conta até a última tônica, que no caso é a sílaba "ten" da palavra "atento". Pelas mesmas regras, vogais não-tônicas (chamadas ÁTONAS) se juntam numa só, como nas palavras "tudo ao", que formam duas sílabas em vez de três: "tu/doao" (Esta fusão vocálica tem o nome de SINÉRESE.) Assim, o verso fica reduzido a dez sílabas: De/tu/doao/meu/a/mor/se/rei/a/ten/... [*] Tônica com átona também podem se fundir, como neste verso do exemplo [3] abaixo: Como uma consolação. Co/mou/ma/con/so/la/ção (sete sílabas) Só não se fundem duas tônicas, como neste verso do exemplo [4] abaixo: -- Lá ia ele embora... Lá/i/ae/leem/bo/... (cinco sílabas) Ainda falando de tônicas, o decassílabo clássico costuma ter três tônicas mais fortes, que caem na segunda, sexta e décima sílabas. No exemplo [1], as tônicas acentuadas mais fortemente são: De TUdo ao meu aMOR serei aTENto O mesmo tipo de acentuação dos decassílabos ocorre em versos que não formam sonetos, como nestes exemplos dos Lusíadas e do Hino Nacional: As ARmas e os baRÕES assinaLAdos OuVIram do IpiRANga as margens PLÁcidas Este tipo de deca é chamado HERÓICO. Quando as tônicas mais fortes não caem nas posições acima, o deca é chamado SÁFICO, levando acentos na quarta, oitava e décima. No soneto-modelo, o verso abaixo é sáfico: Que mesmo em face do maior encanto A acentuação do sáfico se vê pela divisão silábica: Que/mes/moem/FA/ce/do/ma/IOR/en/CAN/... Fora o deca, o soneto costuma ser composto em versos de doze sílabas (chamados ALEXANDRINOS) ou, com menos de dez (quando o poema é chamado SONETILHO), geralmente em REDONDILHA MAIOR (verso de sete sílabas, como na trova e no cordel). Seguem os exemplos: [1] DE DECASSÍLABO (DEZ SÍLABAS): SONETO DE FIDELIDADE [Vinicius de Moraes] De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. [2] DE ALEXANDRINO (DOZE SÍLABAS): SONETO DA MULHER AO SOL [Vinicius de Moraes] Uma mulher ao sol -- eis todo o meu desejo Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz A flor dos lábios entreaberta para o beijo A pele a fulgurar todo o pólen da luz. Uma linda mulher com os seios em repouso Nua e quente de sol -- eis tudo o que eu preciso O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso À flor dos lábios entreabertos para o gozo. Uma mulher ao sol sobre quem me debruce Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente E que ao se submeter se enfureça e soluce E tente me expelir, e ao me sentir ausente Me busque novamente -- e se deixa a dormir Quando, pacificado, eu tiver de partir... [3] DE SONETILHO EM REDONDILHA MAIOR (SETE SÍLABAS): BARCAROLA [Vinicius de Moraes] Parti-me, trágico, ao meio De mim mesmo, na paixão. A amiga mostrou-me o seio Como uma consolação. Dormi-lhe no peito frio De um sono sem sonhos, mas A carne no desvario Da manhã, roubou-me a paz. Fugi, temeroso, ao gesto Do seu receio modesto E cálido; enfim, depois Pensando a vida adiante Vi o remorso distante Desse crime de nós dois. [4] DE SONETILHO EM REDONDILHA MENOR (CINCO SÍLABAS): SONETINHO A PORTINARI [Vinicius de Moraes] O pintor pequeno O grande pintor Ruim como um veneno Bom como uma flor Vi-o da Inglaterra Uma tarde, vi-o No ermo, vadio Brodóvski onde a terra É cor de pintura Muito louro, vi-o Dentro da moldura De um quadro de aurora O olhar azul frio: -- Lá ia ele embora... [5] DE SONETILHO TETRASSÍLABO (QUATRO SÍLABAS): A PÊRA [Vinicius de Moraes] Como de cera E por acaso Fria no vaso A entardecer A pêra é um pomo Em holocausto À vida, como Um seio exausto Entre bananas Supervenientes E maçãs lhanas Rubras, contentes A pobre pêra: Quem manda ser a? Quando os versos não são metrificados, admite-se qualquer quantidade de sílabas em cada verso. Exemplo desse verso livre: ÁRIA PARA ASSOVIO [Vinicius de Moraes] Inelutavelmente tu Rosa sobre o passeio Branca! e a melancolia Na tarde do seio. As cássias escorrem Seu ouro a teus pés Conheço o soneto Porém tu quem és? O madrigal se escreve: Se é do teu costume Deixa que eu te leve. (Sê... mínima e breve A música do perfume Não guarda ciúme). REGRA 3 [RIMAR ESCOLHENDO UMA COMBINAÇÃO] Dê uma lida naquele soneto-modelo. Em seguida examinemos suas rimas: SONETO DE FIDELIDADE [Vinicius de Moraes] De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Quando se rima "pranto" com "canto" o que conta é o elemento "...anto", a partir da vogal forte. Em "pensamento", que rima com "momento", o que conta é "...ento", pois a tônica é a sílaba "en". Esse tipo de rima é chamado CONSOANTE, porque todos os sons (vogais e consoantes) combinam inteiramente. Se fosse "canto" rimando com "mambo" ou "momento" rimando com "novembro", a rima seria TOANTE, pois só as vogais coincidem. No caso de "canto" e "pranto" a rima não é rica porque são dois substantivos, mas, como no mesmo soneto aparece a palavra "tanto", a rima passa a ser rica, pois ocorre entre palavras de diferentes categorias gramaticais (advérbio e substantivo). No mesmo soneto é o caso de "atento" e "pensamento" (adjetivo e substantivo) ou de "tive" e "vive" (verbos em diferentes tempos). Pelo menos uma das quatro palavras rimadas em "anto" ou "ento" deve ter categoria diferente das outras três, para que o esquema do soneto fique rico. No soneto que usamos como modelo [1], o esquema de rima é: ento [a] anto [b] anto [b] ento [a] ento [a] anto [b] anto [b] ento [a] ure [c] ive [d] ama [e] ive [d] ama [e] ure [c] Portanto, o esquema é abba/abba/cde/ced Outros esquemas podem ser usados, variando a quantidade e a combinação das rimas. O esquema exemplificado tem cinco rimas. Vejam-se a seguir, além deste, casos de quatro e sete rimas: [1] EXEMPLO DE CINCO RIMAS EM ABBA/ABBA/CDE/CED: SONETO DE FIDELIDADE [Vinicius de Moraes] De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. [2] EXEMPLO DE QUATRO RIMAS EM ABBA/ABBA/CDC/DCD: SONETO À LUA [Vinicius de Moraes] Por que tens, por que tens olhos escuros E mãos lânguidas, loucas e sem fim Quem és, que és tu, não eu, e estás em mim Impuro, como o bem que está nos puros? Que paixão fez-te os lábios tão maduros Num rosto como o teu criança assim Quem te criou tão boa para o ruim E tão fatal para os meus versos duros? Fugaz, com que direito tens-me presa A alma que por ti soluça nua E não és Tatiana e nem Teresa: E és tampouco a mulher que anda na rua Vagabunda, patética, indefesa Ó minha branca e pequenina lua! [3] EXEMPLO DE SETE RIMAS EM ABBA/CDDC/EEF/FGG: PRIMEIRO SONETO DE MEDITAÇÃO [Vinicius de Moraes] Mas o instante passou. A carne nova Sente a primeira fibra enrijecer E o seu sonho infinito de morrer Passa a caber no berço de uma cova. Outra carne virá. A primavera É carne, o amor é seiva eterna e forte Quando o ser que viveu unir-se à morte No mundo uma criança nascerá. Importará jamais por quê? Adiante O poema é translúcido, e distante A palavra que vem do pensamento Sem saudade. Não ter contentamento. Ser simples como o grão de poesia. E íntimo como a melancolia. Exemplos de esquemas diferentes são: ABAB/ABAB/CCD/EED ABAB/ABAB/CDC/EDE ABAB/CDDC/EFE/FGG Alguns destes podem ser examinados na página MODELOS DE SONETO do nosso menu. REGRA 4 [DESENVOLVER UM TEMA] Nenhuma regra faria sentido se o soneto fosse apenas um jogo de palavras, mas trata-se de um jogo de idéias, e toda a habilidade do jogador está em aplicar as regras para comunicar seu pensamento de forma compacta e completa. O conteúdo do soneto pode ser uma declaração de amor (dirigida a alguém como uma carta) ou a confissão de uma história de amor, mas também pode contar outros tipos de história ou, em vez de história, retratar alguma personalidade (a sério ou por gozação), defender um argumento (político, filosófico, religioso), descrever uma paisagem, homenagear alguém, etc. O importante é que o tema seja desenvolvido de maneira lógica, com começo, meio e fim (no caso de contar uma história) ou com introdução, exposição e conclusão (no caso de transmitir uma opinião ou defender uma tese). Vejamos alguns exemplos de Vinicius de Moraes: [1] CONTANDO UMA HISTÓRIA DE AMOR: SONETO DE SEPARAÇÃO [Vinicius de Moraes] De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama. De repente, não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo próximo o distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente. [2] RETRATANDO UMA PERSONALIDADE: O ANJO DAS PERNAS TORTAS [Vinicius de Moraes] A um passe de Didi, Garrincha avança Colado o couro aos pés, o olhar atento Dribla um, dribla dois, depois descansa Como a medir o lance do momento. Vem-lhe o pressentimento; ele se lança Mais rápido que o próprio pensamento Dribla mais um, mais dois; a bola trança Feliz, entre seus pés -- um pé-de-vento! Num só transporte a multidão contrita Em ato de morte se levanta e grita Seu uníssono canto de esperança. Garrincha, o anjo, escuta e atende: -- Goooool! É pura imagem: um G que chuta um o Dentro da meta, um l. É pura dança! [3] DEFENDENDO UMA TESE: NÃO COMEREI DA ALFACE A VERDE PÉTALA [Vinicius de Moraes] Não comerei da alface a verde pétala Nem da cenoura as hóstias desbotadas Deixarei as pastagens às manadas E a quem mais aprouver fazer dieta. Cajus hei de chupar, mangas-espadas Talvez pouco elegantes para um poeta Mas pêras e maçãs, deixo-as ao esteta Que acredita no cromo das saladas. Não nasci ruminante como os bois Nem como os coelhos, roedor; nasci Omnívoro; dêem-me feijão com arroz E um bife, e um queijo forte, e parati E eu morrerei, feliz, do coração De ter vivido sem comer em vão. Nota-se que em cada soneto o autor deixa para o último verso o argumento mais forte ou a informação de maior impacto. A expectativa vai crescendo a cada verso e, no final, resolve-se o tema como se fosse um desafio vencido pelo poeta. Por esse motivo o décimo-quarto verso costuma ser chamado de CHAVE DE OURO. REGRA 5 [SEGUIR UM ESTILO] Vinicius é um poeta moderno, tanto que foi letrista da Bossa Nova, mas nos sonetos não usa o verso livre, nem o verso branco (sem rima nenhuma), típicos do modernismo. Seus sonetos são perfeitos na métrica e na rima (seguindo o rigor parnasiano, anterior ao modernismo), e na temática são românticos, ainda que falem de amor numa linguagem bem atual. Isso significa que Vinicius construiu seu próprio ESTILO, juntando temas preferidos e linguagem pessoal. O jogador pode seguir o exemplo de Vinicius e priorizar o lirismo, mas se quiser adotar outro estilo existem diversas alternativas também concorridas entre os poetas brasileiros: o estilo PARNASIANO dá valor aos temas elevados e solenes, cuidando na escolha de palavras eruditas e evitando gírias ou vulgaridades; o estilo SIMBOLISTA prefere temas fúnebres e lúgubres, usando termos científicos misturados a conceitos místicos; o estilo SATÍRICO, presente em todas as épocas, usa o humor para criticar costumes ou figuras públicas. Abaixo seguem exemplos de temas desenvolvidos em cada um dos estilos: [1] TEMA PATRIÓTICO (PARNASIANO): LÍNGUA PORTUGUESA [Olavo Bilac] Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura. Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arrolo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, Em que da voz materna ouvi: "meu filho!", E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! [2] TEMA MACABRO (SIMBOLISTA): O DEUS-VERME [Augusto dos Anjos] Fator universal do transformismo. Filho da teleológica matéria, Na superabundância ou na miséria, "Verme" -- é o seu nome obscuro de batismo. Jamais emprega o acérrimo exorcismo Em sua diária ocupação funérea, E vive em contubérnio com a bactéria, Livre das roupas do antropomorfismo. Almoça a podridão das drupas agras, Janta hidrópicos, rói vísceras magras E dos defuntos novos incha a mão... Ah! Para ele é que a carne podre fica, E no inventário da matéria rica Cabe aos seus filhos a maior porção! [3] TEMA HUMORÍSTICO (OU SATÍRICO): ALCOOLISMO [Emílio de Menezes] A leitura do tópico tremendo À lembrança me trouxe uma anedota Velha, tão velha quanto aquela bota Que era toda o Larousse do remendo. Certo alcoolista, um sábio artigo lendo De um médico alemão de grande nota Contra o álcool, diz em compulsão devota: "Como ele prova quanto o vício é horrendo!" E acrescenta: "A verdade em mim desperta! Eu não quero pelo álcool cair morto, Vou dizê-lo bem alto e de alma aberta!" Tal leitura me traz tanto conforto, Que vou beber saudando a descoberta Três garrafas de bom vinho do Porto!... No caso de ficarmos apenas concentrados na obra de Vinicius, as diferenças estilísticas poderiam ser detectadas em todos os níveis de linguagem: dos exemplos abaixo, o primeiro mostra o tom de exaltação grandiloqüente, desta vez não à pátria, mas à natureza; o segundo mostra o tom negativista e fúnebre; no terceiro, o tom brincalhão e avacalhador: [1] SONETO DA ROSA [Vinicius de Moraes] Mais um ano na estrada percorrida Vem, como o astro matinal, que a adora Molhar de puras lágrimas de aurora A morna rosa escura e apetecida. E da fragrante tepidez sonora No recesso, como ávida ferida Guardar o plasma múltiplo da vida Que a faz materna e plácida, e agora Rosa geral de sonho e plenitude Transforma em novas rosas de beleza Em novas rosas de carnal virtude Para que o sonho viva da certeza Para que o tempo da paixão não mude Para que se una o verbo à natureza. [2] JUDEU ERRANTE [Vinicius de Moraes] Hei de seguir eternamente a estrada Que há tanto tempo venho já seguindo Sem me importar com a noite que vem vindo Como uma pavorosa alma penada. Sem fé na redenção, sem crença em nada Fugitivo que a dor vem perseguindo Busco eu também a paz onde, sorrindo Será também minha alma uma alvorada. Onde é ela? Talvez nem mesmo exista... Ninguém sabe onde fica... Certo, dista Muitas e muitas léguas de caminho... Não importa. O que importa é ir em fora Pela ilusão de procurar a aurora Sofrendo a dor de caminhar sozinho. [3] A TERRA [Vinicius de Moraes] Um dia, estando nós em verdes prados Eu e a Amada, a vagar, gozando a brisa Ei-la que me detém nos meus agrados E abaixa-se, e olha a terra, e a analisa Com face cauta e olhos dissimulados E, mais, me esquece; e, mais, se interioriza Como se os beijos meus fossem mal dados E a minha mão não fosse mais precisa. Irritado, me afasto; mas a Amada À minha zanga, meiga, me entretém Com essa astúcia que o sexo lhe deu. Mas eu que não sou bobo, digo nada... Ah, é assim... (só penso) Muito bem: Antes que a terra a coma, como eu. /// [*] O soneto inteiro dividido silabicamente ficaria assim: De/tu/doao/meu/a/mor/se/rei/a/ten/to An/tes/e/com/tal/ze/loe/sem/pree/tan/to Que/mes/moem/fa/ce/do/ma/ior/en/can/to De/le/seen/can/te/mais/meu/pen/sa/men/to Que/ro/vi/vê/loem/ca/da/vão/mo/men/to Eem/seu/lou/vor/hei/dees/pa/lhar/meu/can/to E/rir/meu/ri/soe/der/ra/mar/meu/pran/to Ao/seu/pe/sar/ou/seu/con/ten/ta/men/to Eas/sim/quan/do/mais/tar/de/me/pro/cu/re Quem/sa/bea/mor/tean/gús/tia/de/quem/vi/ve Quem/sa/bea/so/li/dão/fim/de/quem/a/ma Eu/pos/sa/me/di/zer/doa/mor/que/ti/ve Que/não/se/jai/mor/tal/pos/to/queé/cha/ma Mas/que/se/jain/fi/ni/toen/quan/to/du/re JOGO DO SONETO
Texto e seleção de GLAUCO MATTOSO, agosto/2003 °°°
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |