|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

José Guilherme de Araújo Jorge (Tarauacá AC 1914 - 1987)

Desdenhado por alguns como apelativamente sentimental, o fato é que soneta com impecável perícia, tanto no alexandrino (seu preferido) quanto no deca, e está entre os pouquíssimos poetas brasileiros que vendem muito e tiram sucessivas reedições, donde o despeito de colegas e críticos. De sua opulenta produção destaco abaixo alguns dos que fizeram mais sucesso, associando a imagem do autor a um lirismo de gosto popular.


AMO!

Amo a terra! Amo o sol! Amo o céu! Amo o mar!
Amo a vida! Amo a luz! Amo as árvores! Amo
a poesia que escrevo e entusiasta declamo
aos que sentem como eu a alegria de amar!

Amo a noite! Amo a antiga palidez do luar!
A flor presa aos cabelos soltos de algum ramo!
Uma folha que cai! Um perfume pelo ar
onde um desejo extinto sem querer inflamo!

Amo os rios! E a estranha solidão em festa,
dessa alma que possuo multiforme e inquieta
como a alma multiforme e inquieta da floresta!

Amo a cor que há nos sons! Amo os sons que há na cor!
E em mim mesmo, — amo a glória de sentir-me um Poeta
e amar imensamente o meu imenso amor!...


VERSOS A MIM MESMO

Anda! Segue a cantar!... Fala aos outros da Vida
livre, e pura, e feliz, e esplêndida, e radiosa!
Luta por teu amor! E a alma em ânsia possuída
segundo por segundo os teus segundos goza!

Que a vida é pura e é boa, e chega a ser formosa
quando pode afinal ser amada e vivida,
— se o dinheiro é a moral, e a força é a lei honrosa,
vive livre e sem leis que a Terra está perdida!

Se falarem de templos, — olha o céu!... te basta!
Se falarem de fé, — adora a terra!... é tua!
E que no teu viver errante e iconoclasta

ergas sempre o teu verbo olímpico e pagão
diante da multidão que vacila e recua
arrastando à hecatombe a civilização!


FILOSOFIA

Dentro do meu olhar altivo de descrença
não tenho uma atitude humilde e irrefletida,
— olho os homens de cima, e trago de nascença
um íntimo desdém superior pela vida...

Não me irrito e não choro. À pedra desferida
contra mim — que em minha alma abre uma chaga imensa —
sorriso... E o meu sorriso é a dor, quase esquecida,
que nos lábios transformo em fria indiferença...

A vida toda é vã. Resumo a vida nessa
mistura com que fiz minha filosofia:
— um verso de Leoni e um mau sorriso de Eça...

Um olhar de desdém numa alma de fumaça,
e a superioridade fina da ironia
de quem sabe que tudo é uma ilusão que passa!


ALEGRIA!

Há alegria no sol que num triunfal rompante
como um broto de luz que rompesse as entranhas
da terra, — surge além pelas sombras, distante,
a incendiar como um louco a encosta das montanhas!

Há alegria no mar onde as conchas apanhas!
Na noite mansa e azul, silenciosa e brilhante,
e nas nuvens que no ar tomam formas estranhas,
nas mãos ágeis do vento irrequieto e inconstante!

Há alegria nas ruas, nas flores, — nas aves
que enchem ramos e céus de melodias suaves,
e em meus olhos tristonhos refletindo os teus...

Alegria não há, no entanto, mais completa
que essa que canta e ri no coração de um Poeta
quando ao findar de um poema se imagina um Deus!


NATURISMO

Foi aprendendo a ler que aprendi a pensar
e hoje pelo pensar sou um degenerado,
— já foi puro o meu Ser, tal como a luz e o ar,
como o ar e a luz de um céu sereno e descampado...

Bem que podia ter esse olhar encantado
do homem que não sabia onde parava o Mar...
Sendo bruto, talvez eu me fizesse amado!
Bruto, — que importa? — ao menos poderia amar!

Teria por meu templo o côncavo profundo
dos céus, e a religião que acaso professasse
correria sem deuses, livre, pelo mundo...

No pedestal da ciência: — a beleza sem véus!
E o mais sábio seria o ignorante que amasse
a música da Terra e a poesia dos Céus!


VELHA IMAGEM

Trago essa alma de um rio e parar não consigo.
Avanço!... e hei de acabar sozinho, sem ter nada...
As mulheres que amei, já esqueci-as!... — bendigo
a paisagem que passa e se some apressada!...

Explicar não sei bem o que se dá comigo,
— minha vida se vai, por minha alma levada
como um barco sem rumo em constante perigo
à tona d'água livre em revolta enxurrada!

Sou arrastado assim... e assim vou para a frente,
— são as águas levando pela corredeira
o barco sem governo ao sabor da corrente...

Até que a minha vida, arremessada ao léu,
se arrebente ao rolar de uma queda traiçoeira
enquanto a alma em vapor de espumas sobe ao céu!


VERSOS A UM SÁBIO

Por que te atormentares? Rasga toda a ciência!
Odeia a esse que um dia te ensinou a ler.
Destrói deuses eunucos, nega a onipotência
gerada por ti mesmo para o teu sofrer!

É inútil a descida aos socavões do Ser
para chegar-se à fonte ignota da existência...
Está, — nessa tua ânsia eterna de crescer —
a causa subterrânea de uma decadência...

Não vale a pena o esforço ingente da subida...
Se queres um conselho, — volta ao homem são
e feliz, que primeiro despertou na vida...

Volta a ser livre! Adora a natureza e o amor!
Foi com a tua ciência e a tua religião
que inventaste a miséria... e descobriste a dor!


CONSELHO

Não protestes! Que adianta? E não te desesperes!
Vive a vida, e compreende esse determinismo
das forças naturais que regem o organismo
social, — onde se encontram homens e mulheres...

Já não podes voltar se vais em pleno abismo!
Se te ferem, perdoa... E enquanto tu puderes
não entoes o canto vil dos misereres
mas canta um hino ousado ao teu estoicismo!

Procura, e encontrarás um pouco de beleza,
que a Beleza ainda vive, exilada e perdida
muito longe dos homens, — pela natureza...

E seja o teu consolo, a superioridade
com que sofres calado os reveses da Vida,
sem um grito de dor!... ou um gesto de vaidade!


VERSOS A JESUS

Serviu-te a manjedoura humilde de começo,
nem palácios reais, nem berços de cetim...
— aliás, para pregares a obra que conheço
tu só podias mesmo ter nascido assim...

Decorei tua história e dela não me esqueço
porque sei que tu foste humano e igual a mim!
— e sofreste, e sonhaste, e pagaste por preço
do teu sonho o Calvário que aureolou teu fim!

Sem falsas liturgias revelaste a Vida,
e curvado, com o peso da cruz sobre os ombros
sangraste os pés desnudos na íngreme subida...

Inútil sacrifício!... Hoje, apóstolos teus
reduzindo a grandeza do teu sonho a escombros
mercadejam teus restos em nome de Deus!


SONETO A ARIEL

Arquiteto do sonho, escultor da Poesia,
desenhei num projeto de ilusão dourada,
o templo de cristal da minha fantasia
à beira de uma fonte irrequieta e encantada.

Ergo o meu templo no alto, sobre a escadaria
das minhas emoções, — e o mármore da escada
é rubro, — e vou fazendo essa obra, na alegria
do sonho, e na tristeza da alma já cansada...

Há colunas de pé, hieráticas, serenas,
relembrando a visão do Partenon de Atenas
num tempo em que os heróis eram deuses no céu...

E quem entra, percebe, no interior em calma,
o esboço de uma estátua, onde plasmo a minha alma
feita apenas de luz... como a estátua de Ariel!


VERSOS A UMA TAÇA

Nasceu para servir ao estranho ritual
dos festins, — no cristal puríssimo, sem jaça
reflete da loucura o cortejo triunfal
que alegre, ao seu redor, todas as noites, passa...

Quanta dor já entornou! Quanta alma turva e baça
já a ergueu na ilusão de esquecer o seu mal...
Leva o vinho que apaga a tristeza e a desgraça
e põe na boca um riso inconsciente e boçal!...

Destino estranho o seu! No seu cristal sem bruma
vive num mundo à parte, e insensível parece
ao vinho que transborda e ao champanha que espuma...

E boêmia há de acabar, num último tinir
como as almas que embriaga, e aniquila, e enlouquece,
do seu próprio destino... espedaçada, a rir!


VERSOS A UMA CIGARRA

Ela cantou lá fora o dia inteiro — veio
hoje à tarde morrer aqui na minha mesa...
— meu olhar que ainda há pouco estava alegre e cheio
de luz, turvou-se agora em singular tristeza...

Ouço (e já ouvir não posso), o estrídulo gorjeio
que é a marcha funeral da tarde azul-turquesa,
— sobre a folha do bloco onde ela está, releio
um verso que hoje fiz ao sol e à natureza!

Ela andava lá fora, era a boêmia do céu!
Mas na hora de morrer, trocou o azul de anil
pela folha de um simples bloco de papel...

Na tristeza em que estou, ao menos me conforta
saber, que aquele poema que escrevi, serviu
para embalar o sono da cigarra morta!


A VIDA (I)

"...Mudarás, todos mudam, e os espinhos
com surpresa verás por todo lado,
— são assim nesta vida os seus caminhos
desde que o homem no mundo tem andado...

Não hás de ser o eterno enamorado
com as mãos e os lábios cheios de carinhos,
— hoje, juntos os dois... tudo encantado!
— amanhã, tudo triste!... os dois sozinhos!...

E sentindo o teu braço então vazio,
abatido verás que não resistes
à inclemência do tempo úmido e frio!

Rolarás por escarpas e barrancos:
sobre o epitáfio dos teus olhos tristes
trazendo a campa dos cabelos brancos!


A VIDA (II)

"...Tem sido assim e assim será... Mais tarde
o que hoje pensas chamarás: — quimera!
E esse esplendor que nos teus olhos arde,
será a visão de extinta primavera...

Escondido à traição, como uma fera,
bem em silêncio, e sem fazer alarde,
o Destino que é mau e que é covarde,
naquela sombra adiante já te espera!

E num requinte de perversidade
faz de cada ilusão, de cada sonho,
a ruína de uma dor... e uma saudade...

E se voltares, notarás então
desesperado, ao teu olhar tristonho
que em vão sonhaste... e que viveste em vão!...


A VIDA (III)

"...A vida é assim, segue e verás, — a vida
é um dia de esperança, um longo poente
de incertezas cruéis, e finalmente
a grande noite estranha e dolorida...

Hoje o sol, hoje a luz, hoje contente
a estrada a percorrer suave e florida...
— amanhã, pela sombra, inutilmente
outra sombra a vagar, triste e perdida...

A vida é assim, é um dia de esperança,
uma réstia de luz entre dois ramos
que a noite envolve cedo, sem tardança...

E quando as sombras chegam, nós, ao vê-las,
ainda somos felizes se encontramos
a saudade infinita das estrelas!...


A VIDA (IV)

"...A vida é assim, uma ânsia... feito a vaga
que se ergue e rola a espumejar na areia,
— por esse bem que a tua mão semeia
espera o mal que ainda terás por paga!

A essa hora boa que te agrada e enleia
sucede uma outra torturante e aziaga,
— a vida é assim... um canto de sereia
que à morte nos convida, e nos afaga...

O teu sonho melhor bem pouco dura,
e há sempre 'um amanhã' cheio de dor
para 'um hoje' nem sempre de ventura...

Toma entre as mãos o búzio da alegria
e surpreso verás que no interior
canta profunda e imensa nostalgia!..."


A VIDA (V)

Isso tudo nos dizem, — entretanto
nós dois seguimos braços dados, creio
que se tu sabes que te adoro tanto
do que ouviste talvez não tens receio...

A vida, — é o nosso amor, o nosso encanto!
Nem a podemos mais parar no meio...
Chorar? — bem sei que choras, mas teu pranto
é a alegria que canta no teu seio...

O mundo é bom e nós o cremos, basta!
E se um amor tão grande nos enleva
e pela vida unidos nos arrasta,

— que eu te abrace e te apóies sempre em mim,
e desafiando o mundo envolto em treva
sigamos juntos para um mesmo fim!


COLEGIAL

Gosto de vê-la, sim... Quando à tarde ela vem,
fisionomia suave, ingenuamente franca...
Toda a rua se alegra, e eu me alegro também
com o seu vulto feliz: saia azul, blusa branca...

Quantos nadas de sonho o seu olhar contém!
A luz viva do olhar ninguém talvez lhe arranca.
— Gosto de vê-la, sim... E ficam-lhe tão bem
aquela saia azul, e aquela blusa branca...

Azul: — azul é a cor da vida que ela sonha!
E branca: — branca é a cor da sua alma de criança
onde ela própria se olha irrequieta e risonha...

Feliz... Não tem presente e ainda nem tem passado...
Só o futuro, — e o futuro é uma imensa esperança
um mundo que ainda fica oculto do outro lado!


NÚPCIAS PAGÃS

Braços dados, nós dois, vamos sozinhos...
O teu olhar de encantamento espraias
pelas curvas e sombras dos caminhos
debruados de jasmins e samambaias...

Há queixumes de amor na alma dos ninhos
e as nuvens lembram danças de cambraias...
— na minha mão ansiosa de carinhos
tonta de amor, a tua mão, desmaias...

Andamos sobre painas... entre alfombras...
E à luz frouxa da tarde em desalento
misturam-se no chão as nossas sombras...

— Aqui... Há rosas soltas, desfolhadas...
Nada receies, meu amor — é o vento
em marcha nupcial pelas ramadas!...


CIÚME

Encontro em ti tudo o que imaginara
na mulher, para ser o meu ideal;
— não é só teu olhar, tua voz clara,
e essa expressão que tens sentimental...

Nem essa graça ingênua, hoje tão rara,
de quem não sabe onde se encontra o mal,
ou teu riso feliz, que se compara
ao tinir de uma taça de cristal...

É tudo em ti, traço por traço, tudo!
As tuas mãos são rendas de ternura;
teus carinhos, macios, de veludo.

Por isso mesmo é que é maior a dor,
quando amargo a mais íntima tortura
por não ter sido o teu primeiro amor...


MASCARADOS

Mascarados os dois, — eu, mascarado
na hipocrisia com que iludo a vida,
tu, — na aparência inútil e fingida
que usas na rua com o maior cuidado...

Passas por mim, e segues ao meu lado
como uma outra qualquer desconhecida,
— quem há de imaginar nosso passado
e a intimidade entre nós dois perdida?...

Ninguém... Certo ninguém pensa e adivinha
porque eu não digo e porque tu não dizes
que eu já fui teu... e que tu foste minha...

Mas, quanta vez, amargurado, penso
em como nos sentimos infelizes
no carnaval do nosso orgulho imenso!


FIM...

Nem foi mesmo preciso que você falasse,
era um pressentimento antigo dentro em mim,
há muito, na expressão que havia em sua face
via que o nosso amor ia chegando ao fim...

Hoje, para encontrá-la, eu quase que não vim...
Era o medo covarde deste desenlace...
E tudo terminou... e foi melhor assim
talvez, para você, que tudo terminasse...

Nosso amor, — e ninguém há de saber porquê,
morreu (bem que o sentimos pelo nosso olhar),
e não somos culpados nem eu, nem você...

E o que é estranho afinal é que tudo acabasse,
sem que nenhum de nós falasse em terminar,
— e assim como se tudo ainda continuasse...


INSATISFEITO

Quem ler os versos meus onde há certa tristeza
e certo desencanto suave e contrafeito,
poderá num momento pensar, com certeza,
que trago inutilmente um coração no peito!...

E que vivo afinal inquieto e insatisfeito
de paixão em paixão... de surpresa em surpresa;
— como um rio a mudar o curso do seu leito
sem saber onde o arrasta a própria correnteza!

E acertará talvez, — pois falta essa mulher
que consiga escrever seu nome em minha vida
sem deixar no passado outro nome qualquer...

Falta-me um grande amor... Falta-me tudo em suma!
E sinto a alma vazia, estranha e incompreendida
por ter amado tantas sem amar nenhuma!


INCOERÊNCIA?

Achas-me indiferente... e até crês que há desdém
quando falo de amor em palavras singelas...
— pensas que as juras todas que já ouviste, aquelas
juras, a outras mulheres vou fazer também...

Dizes que não te quero... E eu te pergunto: — a quem
devo tudo o que fiz, as poesias mais belas?
— outras dirão talvez que as fiz pensando nelas,
mas todas te pertencem mais do que a ninguém!

Não vês que o que te cerca é a mentira da vida...
— nem sabes descobrir essa paixão imensa
que o meu orgulho torna egoísta e dolorida...

Não vês que o meu viver é falso, — e se resume
em te amar como um louco em minha indiferença,
e fingir que amo as outras para o teu ciúme!


NOIVA

Ei-la toda de branco. Aos pés, o imenso véu
como em flocos de espuma, espalhado no chão...
No olhar, dentro do olhar, cabe inteirinho um céu,
e leva um céu maior dentro do coração...

Nos lábios... Ah! nos lábios há o sabor do mel,
e uma carícia em flor se entreabre em cada mão,
— e que tremor no braço, ao deixar no papel
o nome dela, o dele... o dos dois desde então...

Quem lhe falou da vida? A vida é um sonho, a vida
é esse caminho azul, esse estranho embaraço
de sentir-se ao seu lado adorada e querida...

Aos seus pés, como nuvem branca, o imenso véu...
Quem dirá, que ao seguir apoiada ao seu braço
não pensa que caminha em direção do céu?...


GATA ANGORÁ

Sobre a almofada rica e em veludo estofada
caprichosa e indolente como uma odalisca
ela estira o seu corpo de pelúcia, — e risca
um estranho bordado ao centro da almofada...

Mal eu chego, ela vem... (nunca a encontrei arisca)
— sempre esse ar de amorosa; a cauda abandonada
como uma pluma solta, pelo chão deixada,
e o olhar, feito uma brasa acesa que faísca!

Mal eu chego, e ela vem... lânguida, preguiçosa,
roçar pelos meus pés a pelúcia, de prata,
como a implorar carícias, tímida e medrosa...

E tem tal expressão, e um tal jeito qualquer,
— que às vezes, chego mesmo a pensar que essa gata
traz no corpo escondida uma alma de mulher!


TIMIDEZ

Eu sei que é sempre assim, — longe dela imagino
mil versos que não fiz mas que ainda hei de compor,
perto dela, — meu Deus!... lembro mais um menino
que esquecesse a lição diante do professor...

Penso, que a minha voz terá sons de violino
enchendo os seus ouvidos de canções de amor,
— e hei de deixá-la tonta ao vinho doce e fino
dos meus beijos, no instante em que minha ela for...

Ao seu lado, no entanto, encabulo, emudeço,
e se os seus lábios frios, trêmulos, se calam,
eu, de tudo, das cousas, de mim mesmo, esqueço...

E ficamos assim, ela em silêncio... eu, mudo...
Mas meus olhos, nem sei... ah! quantas cousas falam!
e seus olhos, seus olhos!... dizem tudo, tudo!


PENSANDO NELA

Neste instante em que escrevo, estou pensando nela,
longe de mim, no entanto, em que estará pensando?
— quem sabe se a sonhar, debruçada à janela
recorda o nosso amor, a sorrir, vez em quando...

Ou terá tal como eu, esse ar de alguém que vela
um sonho que estivesse em nosso olhar flutuando?
Ou quem sabe se dorme, e adormecida e bela
o luar lhe vai beijar os lábios, suave e brando...

Invejaria o luar!... É tarde, estou sozinho,
ela dorme talvez, e não sabe que ao lado
do seu leito, a minha alma ronda de mansinho...

Nem vê meu pensamento entrar pela janela
e ir na ponta dos pés, murmurar ajoelhado
este verso de amor que fiz, pensando nela!


PASSIONAL

És lânguida e amorosa quando estás sozinha
e em teu corpo perfeito este amor apoteosas!
Nos teus olhos distantes, tudo se adivinha
e há em teu beijo um sabor encarnado de rosas!

Nasceste com certeza para ser rainha,
e o serias na certa, das mais poderosas!
— no entanto, aqui te tenho escrava, e sendo minha
cabes toda e inteirinha em minhas mãos nervosas!

Os teus cabelos louros, soltos sobre o leito
espalham-se em meu ombro, emolduram teu rosto,
e, quando assim te sinto abatida em meu peito

os teus olhos castanhos, místicos, oblongos,
vão morrendo em desmaios roxos de sol posto
sob a noite de seda dos teus cílios longos!


MENTIRA...

Tanta cousa passou... E, no entanto, vivemos
noutros tempos, felizes, como namorados...
— Nossa vida... ora a vida, era um barco sem remos,
levando-nos ao léu... a sonhar acordados...

Ontem juntos, felizes... hoje, separados,
— (não pensei que este amor chegasse a tais extremos...)
E sorrimos em vão... sorrimos conformados
na mentira cruel de que a tudo esquecemos...

Cruzamos nossos passos muita vez: — é a vida!
— eu, volto o rosto (fraco à paixão que ainda sinto),
tu, recalcando o amor, nem me olhas, distraída...

Mentira inútil, cruel... se ontem, tal como agora,
tu sabes que padeço, sabes quanto eu minto,
e eu sei quanto este amor te atormenta e devora!


MEU CALVÁRIO

Ando sempre a seguir-te... a buscar-te distante
como a visão que anseio e os olhos me seduz,
— e espero te encontrar, sentir de perto a luz
do teu olhar feliz em êxtase constante...

Mas tu foges de mim, foges a cada instante,
e eu que a este andar eterno já me predispus,
embora às vezes pare, — sigo logo adiante
sem mesmo perceber que esse amor é uma cruz!

Não sei se hás de ser minha! O teu afastamento
cresce à frente de mim, — no entanto, o imaginário
desejo de alcançar-te ergue o meu desalento...

E, após tanto sofrer, sentir-me-ei consolado,
— se ao cair no caminho... e ao fim do meu Calvário
for morrer sobre a cruz dos braços teus pregado!


AQUARELA

Pelo jardim (será o jardim dos poetas?),
andam sombras aos pares enlaçadas,
— no alto, trançam-se todas as ramadas
cheias de flores, de botões repletas...

Ainda se ouvem das aves atrasadas
um ruflar de asas trêmulas e inquietas,
— andam faunos e ninfas nas estradas
à procura das sombras mais discretas...

Vivem beijos pelo ar; morrem suspiros!
e criança, pés descalços, corre o vento
na quietude amorosa dos retiros...

Todos se amam, meu Deus! E eu só, sozinho!
Quem me dera afinal neste momento
vê-la cruzar adiante em meu caminho!


POR QUÊ?

Foi tudo uma surpresa, tudo de repente,
talvez nenhum de nós saiba explicar porquê,
— você deixou de ser o que era antigamente
e o que era antigamente eu já não sou, se vê...

Eu era um seu amigo. E para mim, você
por muito tempo foi a amiga e a confidente,
— deixei-a ler, assim como um cigano lê
nas mãos, toda a minha alma indiferentemente...

Por muito tempo, os dois, felizes nos julgamos,
até que certo dia... (e eu não lhe disse nada
nem você disse nada) nós nos afastamos...

Hoje você me evita... Hoje evito a você...
E seguimos então, cada um por sua estrada
sem que nenhum de nós saiba explicar porquê...


POUSO

Pervaguei muito tempo à procura de um pouso
como alguém que batesse em vão de porta em porta,
— meu olhar parecia perguntar ansioso:
quem me dá sua mão?... quem minha alma conforta?

Caminheiro sem rumo, a alma já quase morta,
via ao longe o caminho intérmino e sinuoso...
— (quanta cousa afinal na vida se suporta
antes de conseguir-se um pouco de repouso!)

Minha vida era assim... — uma estrada vazia...
E eu caminhava a olhar buscando o que surgisse
à frente, — e ao meu redor tudo aos poucos fugia...

Até que te encontrei!... E se não te encontrasse,
— talvez que há muito tempo eu já não existisse!
— talvez que há muito tempo eu já não caminhasse!


DEDICATÓRIA

Este meu livro é todo teu, repara
que ele traduz em sua humilde glória
verso por verso, a estranha trajetória
desta nossa afeição ciumenta e rara.

Beijos, saudades, sonhos... Nem notara
tanta cousa afinal na nossa história...
E este verso, — é a feliz dedicatória
onde a minha alma inteira se declara...

Abre este livro... E encontrarás então
teu coração de amor rindo e cantando,
cantando e rindo com o meu coração...

E se o leres mais alto, quando a sós,
é como se estivesses me escutando
falar de amor com a tua própria voz!


MEU CÉU INTERIOR

Se esses teus olhos, no meu livro, imersos,
encontrarem diversas emoções,
— não tentes decifrar: mil corações
nós os temos num só, todos diversos...

Os meus poemas aqui, vivem dispersos,
como as estrelas... e as constelações
no céu das minhas íntimas visões,
no "meu céu interior..." cheio de versos.

Não procures um poeta compreender...
— Os versos que umas cousas nos desnudam,
outras cousas, ocultam, sem querer...

Uns, são felizes... Outros, ao contrário...
— No rosário da vida, as contas mudam,
e os versos são as contas de um rosário!...


FREIRA

Em teu calmo semblante e em teu olhar parado
há perdido, — bem sei, — um mistério qualquer...
Quem sabe se pecaste... e se foi teu pecado
que te fez esquecer que és bela e que és mulher?...

Hoje és santa... O passado passou, — é o passado...
— dele já não terás uma ilusão sequer...
E o amor que se tornou funesto e amargurado
sepultas no silêncio... e em teu árduo mister...

Mais à frente está a vida... a vida humana e bela!
Teu presente é uma prece; teu passado: um poema;
teu futuro: um rosário, um altar, uma cela...

Evadida do mundo, — ao ver-te, à luz do dia,
— não sei se te admire a renúncia suprema,
ou se lastime a tua imensa covardia!


ÚLTIMO VESTÍGIO

Tu deves te lembrar: aquela casa antiga
entre o verde bambual e a frondosa mangueira,
a varanda, a esconder-se sob a trepadeira,
e o riacho a marulhar sua velha cantiga...

As flores... o jardim... a estrada: uma alva esteira
onde nós a sonhar andamos sem fadiga
olhando para o céu, — tudo isso minha amiga
mudou... A nossa vida é mesmo passageira...

As paisagens de outrora, estranhos transformaram:
— o jardim... o bambual... a estrada, e até nem sei
se as águas do regato os anos não pararam...

Uma cousa porém, existe, eu vi depois:
— é aquele coração com os nomes que eu gravei
no tronco da mangueira a relembrar nós dois!...


À ESPERA

Ela tarda... E eu me sinto inquieto, quando
julgo vê-la surgir, num vulto, adiante,
— os lábios frios, trêmula, ofegante,
os seus olhos nos meus, linda, fitando...

O céu desfaz-se em luar... Um vento brando
nas folhagens cicia, acariciante,
enquanto com o olhar terno de amante
fico à sombra da noite perscrutando...

E ela não vem... Aumenta-me a ansiedade...
O segundo que passa e me tortura,
é o segundo sem fim da eternidade...

Mas, eis que ela aparece de repente!...
— E eu feliz, chego a crer que igual ventura
bem valia esperar-se eternamente!...


SURPRESA

Começamos assim: — eu, tendo em mente,
fingir gostar apenas, — namorar,
como chamam na vida comumente
aos primeiros encontros de algum par...

Tu, disposta a prender-me ao teu olhar
por um mero capricho, e fatalmente,
depois que eu me curvasse a te adorar
trocar-me-ias por outro facilmente...

Começamos assim, — logo, no entanto,
— aquilo que pensei, não consegui,
nem conseguiste o que querias tanto...

E afinal, — que belíssima surpresa!...
— Eu, de tanto fingir: gostei de ti!
Tu, querendo prender: ficaste presa!...


LÁGRIMA

Orvalho do sofrer — dentro do peito nasce
e nos olhos em pranto sem querer floresce;
aumenta a pouco e pouco, e cada vez mais cresce...
— e rola finalmente em gotas pela face...

Sublime florescer da dor — se ela falasse
diria para o mundo a mais sentida prece,
no entanto, em seu silêncio humilde é que enternece
pois guarda na mudez um triste desenlace...

Repentina, ela brota, assim como se fosse
(de um mar que em nosso peito as ondas estrugisse)
uma gota que o vento, aos nossos olhos, trouxe...

Nuns olhos de mulher, porém, ainda não disse:
— é a pérola de um mar completamente doce,
de um mar feito de amor... de sonho e de meiguice!


MULHER

— "Já é demais! me disseste, — o teu ciúme é irritante
e há de acabar na certa por nos indispor,
fazes do meu viver um martírio constante
e ao que vês, tu dás sempre afinal outra cor!"

Eu resolvi então, daquele dia em diante,
sem nada te dizer, e sem nada propor,
sufocar esse amor egoísta e dominante
e o ciúme... que era o fel que punha em nosso amor!

Hoje... Tu sofres mais quando em minha presença...
E há pouco, (creio até que bateste com os pés!)
— já achavas ser demais a minha indiferença...

E possa eu compreender, afinal, o que queres,
quando enfim descobri, sem surpresa, que tu és
incoerente... e igualzinha a todas as mulheres!


CARTAS

Vou correndo a buscá-las, — são tão leves
mas trazem à minha alma um grande encanto,
— por que as cartas que escreves custam tanto?
— por que demora tanto o que me escreves?

Não deves torturar-me assim, não deves,
— do teu silêncio muita vez me espanto...
Mando-te longas cartas, — e entretanto
como as tuas respostas são tão breves!...

Recebes cartas minhas todo dia,
e elas não dizem tudo o que eu queria
mas falam-te de amor... de cousas belas.

Tuas cartas... Mas dou-te o meu perdão...
Que me importa afinal ter a razão,
se gosto tanto de esperar por elas!


FATALISMO

Se eu for contar, hão de sorrir talvez...
— é o fim de um grande amor sereno e nobre
que um fatalismo estranho já desfez
com razões torpes que este mundo encobre...

Morreu... e que se apague de uma vez!
— que dele nada subsista ou sobre...
— onde a pureza e o amor?... se a vida fez
um nascer rico e o outro nascer pobre?

Que guardem esse amor. Eu o desconheço.
Não tenho em moedas o seu alto preço
e sou feliz por ser tão desgraçado.

Que o guardem!... Para os ricos! Para os reis!
— o amor que eu quero não tem preço ao lado,
não tem correntes, nem conhece leis!


O VERBO AMAR

"Te amei": — era de longe que te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente
sente, que a alma da gente faz escrava...

"Te amava": — como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar... E te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava!

"Te amo": — e com o tempo, assim, vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo... e eu, vou "te amando"...

"Te amar" é mais que um verbo, é a minha lei:
— e é por ti que o repito no meu canto:
"te amei, te amava, te amo e te amarei!"


VAIDADE

Tua vaidade é como um deus antigo
exige sacrifícios aos seus pés...
Olhar-te, é desafiar algum perigo,
amar-te, é procurar algum revés...

Olhei-te, e desde então teus passos sigo...
Amei-te, e mesmo assim, não sei quem és...
Meu amor, pobre amor, quase o maldigo,
talvez seja outra vítima a teus pés...

Amores, esperanças e desejos
ardem nos castiçais dessa vaidade
ao incenso sensual que há nos teus beijos...

Eis que te trago aqui meu coração:
— já de nada me serve, se em verdade
converteu-se a tão fútil religião!


BOM-DIA, AMIGO SOL!

Bom-dia, amigo Sol! A casa é tua!
As bandas da janela abre e escancara,
— deixa que entre a manhã sonora e clara
que anda lá fora alegre pela rua!

Entra! Vem surpreendê-la quase nua,
doura-lhe as formas de beleza rara...
Na intimidade em que a deixei, repara
que a sua carne é branca como a lua!

Bom-dia, amigo Sol! É esse o meu ninho...
Que não repares no seu desalinho
nem no ar cheio de sombras, de cansaços...

Entra! Só tu possuis esse direito
de surpreendê-la, quente dos meus braços,
no aconchego feliz do nosso leito!...


PIANO DE BAIRRO

Na rua sossegada onde eu moro, — à tardinha,
quando em sombras o céu lentamente escurece,
— um piano solitário, em surdina, — parece
acompanhar ao longe a tarde que definha...

Nessa hora, em que de manso a noite se avizinha,
seus acordes pelo ar têm murmúrios de prece...
— Ah! quem não traz como eu também, na alma sozinha,
um piano evocativo que nos entristece?

Há sempre um velho piano de bairro, esquecido
na memória da gente, — e que nas tardes mansas
sonoriza visões de outrora ao nosso ouvido.

Seus monótonos sons, seus estudos sem cor,
repetem no teclado branco das lembranças
o inconcluso prelúdio de um longínquo amor!


POR QUE FALAR DE AMOR?

Sonhei fazer-te minha só: — rainha!
Quiseste ser apenas cortesã.
E o desejo a crescer, — planta daninha —
foi tornando este amor sem amanhã.

Para mim, não bastava seres minha;
quis no céu, pôr a estrela da manhã,
e acabei por moldar-me ao que convinha
a essa tua paixão de terra chã.

Se não deste valor ao coração,
mas aos sentidos, em que se consomem
restos de um erotismo em combustão,

por que falar de amor? Foste lograda:
tu não tens aos teus pés o amor de um homem,
tens um fauno de rastros... e mais nada!


SONETINHO

Não tenho jeito pra trova
apesar das que já fiz,
a quadra lembra uma cova
com a cruz dos versos em X...

Ainda estou vivo e feliz
e do que digo dou prova:
— tentei cantar, numa trova,
e o meu amor pediu bis.

Bem sei que é meu o defeito
mas uma trova é tão pouco
que ao meu cantar não dá jeito...

Só mesmo um poema é capaz
de conter o amor demais
que trago dentro do peito.


CRUCIFIXO NA PAREDE

Puseste na parede, sobre o leito,
um belo crucifixo de madeira;
é essa imagem de amor, puro e perfeito,
que há de guiar-nos pela vida inteira...

A tua idéia, eu, em princípio, a aceito,
pois sei que tua fé é verdadeira,
também eu, a esse Cristo, rendo preito,
se fez do Amor sua missão primeira.

Mas deixa que te diga meus receios:
— como ter-te em meus braços, te colher,
dar completa evasão aos meus anseios

ante essa imagem de pureza e dor?
— Como é que esse bom Cristo há de entender
as loucuras sem fim do nosso amor?


ANSEIOS

Água eu quisera ser, — pela alegria
de te dar a beber meu próprio ser,
por tua sede, que eu não mataria,
— para molhar teus lábios por prazer...

Vento eu quisera ser, — e à noite, iria
adormecida, te surpreender
ressonando em teu leito, e então seria
o ar que precisas pra poder viver!

Fogo eu quisera ser, — e em rubras chamas
num delírio de amor, toda, abrasar-te,
para ter a certeza de que me amas...

Depois, para possuir-te, de verdade,
terra eu quisera ser!... E disputar-te
ciumento, à morte, pela eternidade!

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes