|| | ||S|| | ||O|| | ||N|| | ||E|| | ||T|| | ||Á|| | ||R|| | ||I|| | ||O|| | ||||| | ||||| | ||||| | || |
Francisca Júlia da Silva Munster (Eldorado SP 1874-1920)
Com a carioca Gilka Machado e a potiguar Auta de Souza forma o grande
trio feminino do pré-modernismo. Se Gilka é a mais carnal e Auta a mais
espiritual, Francisca é certamente a mais social das três. Não
exatamente no sentido "socialista", mas retratando tipos e classes (a
florista, a camponesa, a cega, o avarento) ou dramas populares (o
cortejo fúnebre em "Noturno", o retorno do migrante em "De volta").
Parnasiana programática, foi elogiada por Bilac e praticou até o
alexandrino trímetro, mas acaba por enveredar pelos temas místicos,
caros ao simbolismo, chegando a propalar sua crença em lobisomens (no
que lhe dou pleno respaldo). Claro que meu soneto predileto é este,
sugestivamente podólatra:
A FLORISTA Suspensa ao braço a grávida corbelha, Segue a passo, tranqüila... O sol faísca... Os seus carmíneos lábios de mourisca Se abrem, sorrindo, numa flor vermelha. Deita à sombra de uma árvore. Uma abelha Zumbe em torno ao cabaz... Uma ave, arisca, O pó do chão, pertinho dela, cisca, Olhando-a, às vezes, trêmula, de esguelha... Aos ouvidos lhe soa um rumor brando De folhas... Pouco a pouco, um leve sono Lhe vai as grandes pálpebras cerrando... Cai-lhe de um pé o rústico tamanco... E assim descalça, mostra, em abandono, O vultinho de um pé macio e branco. Minha seleta é panorâmica e os dois últimos sonetos refletem a fase mística a que me refiro: MUSA IMPASSÍVEL Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero Luto jamais te afeie o cândido semblante! Diante de um Jó conserva o mesmo orgulho e diante De um morto o mesmo olhar e sobrecenho austero. Em teus olhos não quero a lágrima; não quero Em tua boca o suave e idílico descante. Celebra ora um fantasma angüiforme de Dante, Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero. Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa; A rima cujo som, de uma harmonia crebra, Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva; Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos, Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra, Ora o surdo rumor de mármores partidos! MUSA IMPASSÍVEL (II) Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora, Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca! Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca, Por esse grande espaço onde o impassível mora. Leva-me longe, ó Musa impassível e branca! Longe, acima do mundo, imensidade em fora, Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora, O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca. Transporta-me de vez, numa ascensão ardente, À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares Onde os deuses pagãos vivem eternamente, E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo Passarem, através das brumas seculares, Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo. A UM ARTISTA Mergulha o teu olhar de fino colarista No azul: medita um pouco, e escreve; um nada quase: Um trecho só de prosa, uma estrofe, uma frase Que patenteie a mão de um requintado artista. Escreve! Molha a pena, o leve estilo enrista! Pinta um canto do céu, uma nuvem de gaze Solta, brilhante ao sol; e que a alma se te vaze Na cópia dessa luz que nos deslumbra a vista. Escreve!... Um céu ostenta o matiz da celagem Onde erra o sol, moroso, entre vapores brancos, Irisando, ao de leve, o verde da paisagem... Uma ave banha ao sol o esplêndido plumacho... Num recanto de bosque, a lamber os barrancos, Espumeja em cachões uma cachoeira embaixo... OS ARGONAUTAS Mar fora, ei-los que vão, cheios de ardor insano; Os astros e o luar amigas sentinelas Lançam bênçãos de cima às largas caravelas Que rasgam fortemente a vastidão do oceano. Ei-los que vão buscar noutras paragens belas Infindos cabedais de algum tesouro arcano... E o vento austral que passa, em cóleras, ufano, Faz palpitar o bojo às retesadas velas. Novos céus querem ver, miríficas belezas, Querem também possuir tesouros e riquezas Como essas naus, que têm galhardetes e mastros... Ateiam-lhes a febre essas minas supostas... E, olhos fitos no vácuo, imploram, de mãos postas, A áurea bênção dos céus e a proteção dos astros... DANÇA DE CENTAURAS Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios, Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças, Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios. A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças; Mil centauras a rir, em lutas e torneios, Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas. Empalidece o luar, a noite cai, madruga... A dança hípica pára e logo atroa o espaço O galope infernal das centauras em fuga: É que, longe, ao clarão do luar que empalidece, Enorme, aceso o olhar, bravo, do heróico braço Pendente a clava argiva, Hércules aparece... RAINHA DAS ÁGUAS (a Alberto de Oliveira) Mar fora, a rir, da boca o fúlgido tesouro Mostrando, e sacudindo a farta cabeleira, Corta a planura ao mar, que se desdobra inteira, Na esguia concha azul orladurada de ouro. Rema, à popa, um tritão de escâmeo dorso louro; Vão à frente os delfins; e, marchando em fileira, Das ondas a seguir a luminosa esteira, Vão cantando, a compasso, as piérides em coro. Crespas, cantando em torno, as vagas, à porfia, Lambem de popa à proa o casco à concha esguia, Que prossegue, mar fora, a infinda rota, ufana; E, no alto, o louro sol, que assoma, entre desmaios, Saúda esse outro sol de coruscantes raios Que orna a cabeça real da bela soberana. MAHABARATA Abre esse grande poema onde a imaginativa De Vyasa, num fragor ecoante de cascata, Tantas façanhas conta, e dessa estrênua e diva Progênie de Pandu tantas glórias relata! Ora Kansa, a suprema encarnação do Siva, Ora os suaves perfis de Krichna e de Virata Perpassam, como heróis, numa onda reversiva, Nas estrofes caudais do grande Mahabarata. Olha este incêndio e pasma; aspecto belo e triste! Caminha agora a passo este deserto areoso... Por cima o céu imenso onde palpitam sóis... Corre tudo, ofegante, e, finalmente, assiste À ascensão de Iudhishthira ao suarga luminoso E à apoteose final dos últimos heróis. SONHO AFRICANO (a João Ribeiro) Ei-lo em sua choupana. A lâmpada, suspensa Ao teto, oscila; a um canto, um velho e ervado fimbo; Entrando, porta dentro, o sol forma-lhe um nimbo Cor de cinábrio em torno à carapinha densa. Estira-se no chão... Tanta fadiga e doença! Espreguiça, boceja... O apagado cachimbo Na boca, nessa meia escuridão de limbo, Mole, semicerrando os dúbios olhos, pensa... Pensa na pátria, além... As florestas gigantes Se estendem sob o azul, onde, cheios de mágoa, Vivem negros reptis e enormes elefantes... Calma em tudo. Dardeja o sol raios tranqüilos... Desce um rio, a cantar... Coalham-se à tona d'água, Em compacto apertão, os velhos crocodilos... PAISAGEM Dorme sob o silêncio o parque. Com descanso, Aos haustos, aspirando o finíssimo extrato Que evapora a verdura e que deleita o olfato, Pelas alas sem fim das árvores avanço. Ao fundo do pomar, entre as folhas, abstrato Em cismas, tristemente, um alvíssimo ganso Escorrega de manso, escorrega de manso Pelo claro cristal do límpido regato. Nenhuma ave sequer sobre a macia alfombra Pousa. Tudo deserto. Aos poucos escurece A campina, a rechã sob a noturna sombra. E enquanto o ganso vai, abstrato em cismas, pelas Selvas adentro entrando, a noite desce, desce... E espalham-se no céu camândulas de estrelas... EM SONDA Quieta, enrolada a um tronco, ameaçadora e hedionda, A "boa" espia... Em cima estende-se a folhagem Que um vento manso faz oscilar, de onda em onda, Com a sua noturna e amorosa bafagem. Um luar mortiço banha a floresta de Sonda, Desde a copa da faia à esplêndida pastagem; O ofidiano, escondido, olhos abertos, sonda... Vai passando, tranqüilo, um búfalo selvagem. Segue o búfalo, só... mas suspende-lhe o passo O ofidiano cruel que o ataca de repente, E que o prende, a silvar, com suas roscas de aço. Tenta o pobre lutar; os chavelhos enresta; Mas tomba de cansaço e morre... Tristemente No alto se esconde a lua, e cala-se a floresta... A CAÇADA (a Valentim Magalhães) Ao mirante gentil de construção bizarra Acabou de subir naquele mesmo instante Em que o seu noivo foi à caça; e, palpitante, Lá fora cuida ouvir os sons de uma fanfarra. E, ao mesmo tempo ouvindo o selvagem descante Que, entre as folhas, sibila a estrídula cigarra, Ela vai ler a carta onde o seu noivo narra A dor que há de sofrer quando estiver distante... E dorme, vendo o sol que, através de uma escassa Nuvem branca, ilumina as íngremes encostas Onde aos saltos rabeia a matilha da caça; E, bem perto, ao rumor de trompas e ladridos, O seu noivo gentil que, de espingarda às costas, Lhe oferta uma porção de pássaros feridos... A ONDINA Rente ao mar, que soluça e lambe a praia, a ondina, Solto, às brisas da noite, o áureo cabelo, nua, Pela praia passeia. A alvacenta neblina Tem reflexos de prata à refração da lua. Uma velha goleta encalhada, a bolina Rota, pompeia no ar a vela, que flutua. E, de onda em onda, o mar, soluçando em surdina, Empola-se espumante, à praia vem, recua... E, surgindo da treva, um monstro negro, fito O olhar na ondina, avança, embargando-lhe o passo... Ela tenta fugir, sufoca o choro, o grito... Mas o mar, que, espreitando-a, as ondas avoluma, Roja-se aos pés da ondina e esconde-a no regaço, Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões de espuma. CEGA Trôpega, os braços nus, a fronte pensa, várias Vezes, quando no céu o louro sol desponta, Vejo-a, no seu andar de sonâmbula tonta, Despertando a mudez das vielas solitárias. Arrimada ao bordão, lá vai... Imaginárias Cousas pensa... Verões e invernos maus afronta... Dores que tem sofrido a todo mundo conta Na linguagem senil das suas velhas árias. Cega! que negra mão, entre os negros escolhos Do caos, foi procurar a treva, que enegrece, Para cegar-te a vista e escurecer-te os olhos? Cega! quanta poesia existe, amargurada, Nesses olhos que estão sempre abertos e nesse Olhar, que se abre para o céu, e não vê nada!... RÚSTICA Da casinha em que vive, o reboco alvacento Reflete o ribeirão na água clara e sonora. Este é o ninho feliz e obscuro em que ela mora. Além, o seu quintal; este, o seu aposento. Vem do campo, a correr; e úmida do relento, Toda ela, fresca do ar, tanto aroma evapora, Que parece trazer consigo, lá de fora, Na desordem da roupa e do cabelo, o vento... E senta-se. Compõe as roupas. Olha em torno Com seus olhos azuis onde a inocência bóia; Nessa meia penumbra e nesse ambiente morno. Pegando da costura à luz da clarabóia, Põe na ponta do dedo em feitio de adorno, O seu lindo dedal com pretensão de jóia. INVERNO Outrora, quanta vida e amor nestas formosas Ribas! Quão verde e fresca esta planície, quando, Debatendo-se no ar, os pássaros, em bando, O ar enchiam de sons e queixas misteriosas! Tudo era vida e amor. As árvores copiosas Mexiam-se, de manso, ao resfolego brando Da brisa que passava em tudo derramando O perfume sutil dos cravos e das rosas... Mas veio o inverno; a vida e amor foram-se em breve... O ar se encheu de rumor e de uivos desolados... As árvores do campo, enroupadas de neve, Sob o látego atroz da invernia que corta, São esqueletos que, de braços levantados, Vão pedindo socorro à primavera morta. DESEJO INÚTIL (a Vicente de Carvalho) Qualquer cousa afinal de belo escolher devo Para em verso plasmar no esforço da obra-prima: Flor que viceja à sombra, asa que paira em cima, Aroma de um pomar ou de um campo de trevo. Aroma, ou asa, ou flor... Tudo o que diga e exprima Perde, ao moldar-se em verso, o seu próprio relevo, Porque sinto, mau grado a glória com que escrevo, ["mau grado" mesmo] Presa a imaginação no limite da rima. Não val pois provocar, e sem que isto te praza, Minh'alma, e por amor d'arte que se não doma, A mágoa que te dói e a febre que te abrasa: O aroma, sente! est'asa, admira! esta flor, toma! Mas deixa continuar inexprimidas a asa, A beleza da flor e a frescura do aroma. NOTURNO Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo Se arrasta em direção ao negro cemitério... À frente, um vulto agita a caçoula do incenso. E o cortejo caminha. Os cantos do saltério Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso; Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço; Chora no ar o rumor de um misticismo aéreo. Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha Da noite se ilumina ao resplendor da lua... Uma estrige soluça; a folhagem farfalha. E enquanto paira no ar esse rumor das calmas Noites, acima dele, em silêncio, flutua O lausperene mudo e súplice das almas. À NOITE Eis-me a pensar, enquanto a noite envolve a terra; Olhos fitos no vácuo, a amiga pena em pouso, Eis-me, pois, a pensar... De antro em antro, de serra Em serra, ecoa, longo, um "requiem" doloroso. No alto uma estrela triste as pálpebras descerra, Lançando, noite dentro, o claro olhar piedoso. A alma das sombras dorme; e pelos ares erra Um mórbido langor de calma e de repouso... Em noite escura assim, de repouso e de calma, É que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas, A alma cheia de dor, a dor tão cheia de alma... É que a alma se abandona ao sabor dos enganos, Antegozando já quimeras pressentidas Que mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos. ADAMAH (a Júlia Lopes d'Almeida) Homem, sábio produto, epítome fecundo Do supremo saber, forma recém-nascida, Pelos mandos do céu, divinos, impelida, Para povoar a terra e dominar o mundo; Homem, filho de Deus, imagem foragida, Homem, ser inocente, incauto e vagabundo, Da terrena substância, em que nasceu, oriundo, Para ser o primeiro a conhecer a vida; Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas De pássaros saudando a primeira alvorada, Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada No primeiro silêncio e nas primeiras trevas... NATUREZA Um contínuo voejar de moscas e de abelhas Agita os ares de um rumor de asas medrosas; A Natureza ri pelas bocas vermelhas Tanto das flores más como das boas rosas. Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas O grito dos chacais e o pranto das ovelhas, Brados de desespero e frases amorosas Pronunciadas, a medo, à concha das orelhas... Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias, Na longa sucessão das noites e dos dias, Tanto aborto, que se transforma e se renova, Quando meu pobre corpo estiver sepultado, Mãe! transforma-o também num chorão recurvado Para dar sombra fresca à minha própria cova. A FONTE DE JACÓ Na velha Samaria era Sicar situada; Ora, em Sicar, Jacó, filho de Isac, um dia, Velho já, tarda a mão, à sua gente amada Uma fonte rasgou d'água límpida e fria. O Mestre, certa vez, a essa borda abençoada, (No tempo de Jesus a fonte inda existia) À hora sexta quedou-se, a fronte angustiada De dor, a ver passar gentes de Samaria. Uma Samaritana, acaso, à fonte veio; E ao passar por Jesus, com seu cântaro cheio, O alto busto ondulou numa graça lasciva... Água! pediu Jesus, mata-me a sede e a mágoa! Do cântaro, que tens, dá-me uma pouca d'água Que, em troca, eu te darei da fonte d'água viva. A UMA SANTA Foge, sem ódio, ao mal; o bem pratica; Se a dor lhe dói, cuida-a gostosa e boa, Ou faz então com que ela lhe não doa; Na pobreza em que está julga-se rica; O mal, sabe que passa, o bem, que fica; Por isso o bem acolhe e o mal perdoa. Quanto mais vive, mais se aperfeiçoa, Quanto mais sofre, mais se glorifica. Por essa alta moral os atos regra; Em nenhum outro esforço em vão se cansa, Por nenhum outro ideal se bate em vão. E é feliz, mais feliz porque se alegra Não com o muito que a sua mão alcança, Porém com o pouco que já tem na mão. A UM VELHO Por suas próprias mãos armado cavaleiro, Na cruzada em que entrou, com fé e mão segura, Fez um cerco tenaz ao redor do Dinheiro, E o colheu, a cuidar que colhia a Ventura. Moço, no seu viver errante e aventureiro, O peito abroquelou dentro de uma armadura; Velho, a paz vê chegar do dia derradeiro Entre a abundância do ouro e o tédio da fartura. No amor, de que é rodeado, adivinha e pressente O interesse que o move, o anima e o faz ardente; Foge por isso ao mundo e busca a solidão. O passado feliz o presente lhe invade, E vive de gozar a pungente saudade Das noites sem abrigo e dos dias sem pão. DE VOLTA Mais encanto que a mais populosa cidade, Dentre tantas que viu, a sua aldeia encerra, Uma nesga de gleba e socalcos de serra Sob um céu sempre azul, de ampla serenidade. Por tudo o olhar derrama ungido de saudade, E, evocando o passado, os tristes olhos cerra. Neste instante feliz, nada há que mais lhe agrade Que sentir-se entre os seus em sua própria terra. Chega. O primeiro amigo a quem a mão aperta, Quase à meiga pressão se esquiva, indiferente, E de outras efusões mais vivas se liberta. Nessa mão, que recua, outras, frias, pressente... Antes exílio e dor, pão duro e vida incerta, Que o desprezo arrostar da sua própria gente. PÉRFIDA Disse-lhe o poeta: "Aqui, sob estes ramos, Sob estas verdes laçarias bravas, Ah! quantos beijos, trêmula, me davas! Ah! quantas horas de prazer passamos! Foi aqui mesmo, como tu me amavas! Foi aqui, sob os úmidos recamos Desta aragem, que uma rede alçamos Em que teu corpo, mole, repousavas. Horas passava junto a ti, bem perto De ti. Que gozo então! Mas, pouco a pouco, Todo esse amor calcaste sob os pés". "Mas, disse-lhe ela, quem és tu? De certo, Essa mulher de quem tu falas, louco, Não, não sou eu, porque não sei quem és..." NO BAILE Flores, damascos... é um sarau de gala. Tudo reluz, tudo esplandece e brilha; Riquíssimos bordados de escumilha Envolvem toda a suntuosa sala. Moços, moças levantam-se; a quadrilha Rompe; um suave perfume o ar trescala; E Flora, a um canto, envolta na mantilha, Espera que o marquês venha tirá-la... Finda a quadrilha. Rompe a valsa inglesa. E ela não quer dançar! ela, a marquesa Flora, a menina mais formosa e rica! E ele não vem! Enquanto finda a valsa, Ela, triste, a sonhar, calça e descalça As finíssimas luvas de pelica! CARLOS GOMES Essa que plange, que soluça e pensa, Amorosa e febril, tímida e casta, Lira que raiva, lira que devasta, E que dos próprios sons vive suspensa, Guarda nas cordas uma escala imensa, Que, quando rompe, espaço fora arrasta Ora do mar as queixas, ora a vasta Sussurração de uma floresta densa. Ei-la muda; mas tal intensidade Teve a música enorme do seu choro, O dilúvio orquestral dos seus lamentos, Que, muda assim, rotas as cordas, há de Para sempre vibrar o eco sonoro Que su'alma lançou aos quatro ventos. CARIDADE A alma do homem se torna egoísta e má Porque a impiedade de hoje é a sua escola. Essa, que no Evangelho se acrisola, Caridade cristã, onde é que está? Capazes, hoje em dia, poucos há Dessa piedade rara, que consola, Que os olhos fecha para dar a esmola, A fim de que não veja a quem a dá. Sede piedosos. Bem-aventurados Os que fazem o bem de olhos fechados. Pois a esmola é só útil e eficaz, Só tem justo valor, sem dano ou perda, Se não chega a saber a mão esquerda O benefício que a direita faz. OUTRA VIDA Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera Depois, resta-me, entanto, o consolo incessante De sentir, sob os pés, a cada passo adiante, Que se muda o meu chão para o chão de outra esfera. Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa Lei que me condenou à tortura constante; Porque em tudo adivinho a morte a todo instante, Abro o seio, risonha, à mão que o dilacera. No ambiente que me envolve há trevas do seu luto; Na minha solidão a sua voz escuto, E sinto, contra o meu, o seu hálito frio. Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto! Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto Que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio...
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |