|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Pedro Militão Kilkerry (Santo Antônio de Jesus BA 1885-1917)

Espécie de simbolista transviado ou desgarrado, este boêmio tinha fama de maldito nas rodas da capital baiana. Nada deixou em livro e, além de esparsa como bibliografia, sua poesia é fragmentária como linguagem — tão descontínua e desconexa que despertou a atenção dos concretistas para o pioneirismo do poeta em relação às vanguardas nacionais, a começar pelo modernismo, passando pelo surrealismo e chegando ao próprio concretismo. Sua sintaxe hermética e seu vocabulário enigmático fazem supor o delírio dum alucinado, mas logo desfazem tal impressão por força da rigidez formal do soneto. Resta o impacto do nonsense que, a todo momento, produz o efeito dum bestialógico, aliás muito eficaz se declamado em público, perante platéia jovial. Talvez não fosse a intenção do poeta, nem a de Augusto de Campos ao resgatar-lhe a importância. Mas que nosso mallarmaico baiano tem algo de maluco-beleza, lá isso tem...


DA IDADE MÉDIA
(NAUFRÁGIO DE VICENTE SODRÉ)

Perto, as Curi-Muri. Aves mortas de sono,
Na água que ao céu azul os reflexos indaga,
Caravelas de Assombro, em cansado abandono,
Embalam-se ao cantar requebroso da vaga.

Grande, em Socotorá, pelo esplendor do entrono
De Lísia, fora a luta, — e o chuço e a lança e a adaga
Tudo fremiu... e o brônzeo estrondeante detono
De montanha em montanha ecoou, de fraga em fraga.

Amplas asas do Mal, dormem, rinzam-se as velas...
Mas os corcéis, em fúria, eis que Bóreas desata,
Solta em longo bufido, assombrando as estrelas...

Solta... e ao peso das naus que o largo sonho perde,
— Formidável Tritão — alça a cauda de prata
E, alto, o Mar espadana a cabeleira verde.


Novamente, espadana a verde cabeleira
Triunfalmente a tremer e ébrio raiva revolta,
E no louco rugir do rugido que solta
Vai-lhe o despedaçar da loucura primeira.

A procela se enfreia e à tenebrenta escolta...
Mas na salsugem salta a brocada madeira
Dos cascos; o velame é solto e à derradeira
Ânsia, a redomoinhar, são-lhe os mastros, em volta.

E a procela se enfeita e à dura escolta enfreia...
Amortece o fragor. Em temblado que entrista,
Há por longe o chorar de tristonha sereia...

— Rosa — desbrocha a luz às venturas e às mágoas,
E mais desbrocha, e mais... Conquistador, conquista,
Todo o orgulho de um sonho, aboiavam nas águas!


NA VIA APPIA

..Ei-los passam enfim, capacetes brunidos...
Purpureia, assombroso, oceano flamejante
De mil togas flutuando. E ebria, nesse instante,
Uma pompa de fogo os plebeios sentidos.

Lá vão rufos leões, a áureos carros jungidos,
Ao concento da voz dos histriões em descante.
De volúpia, a marmórea, a Carne eletrizante,
É qual lírio que vai de pétalos flectidos.

Nua! — à espádua esparzida a manhã dos cabelos —
Nua! na esplendidez que, Áureo Sonhar, prelibes...
Como em leito de sol, levam-na, doce fardo,

Cordos núbios de bronze, — agitando flabelos
Da plumagem real e centínea das íbis,
Por seu rosto de alambre aromado de nardo...


SOB OS RAMOS

É no Estio. A alma, aqui, vai-me sonora,
No meu cavalo — sob a loira poeira
Que chove o sol — e vai-me a vida inteira
No meu cavalo, pela estrada a fora.

Ai! desta em que te escrevo alta mangueira
Sob a copada verde a gente mora.
E em vindo a noite, acende-se a fogueira
Que se fez cinza de fogueira agora.

Passa-me a vida pelo campo... E a vida
Levo-a cantando, pássaros no seio,
Qual se os levasse a minha mocidade...

Cada ilusão floresce renascida;
Flora, renasces ao primeiro anseio
Do teu amor... nas asas da Saudade!


TAÇA

Aquela taça de metal que, um dia,
À Laura, um dia assim, lhe oferecera,
Entre relevos delicados de hera,
"Saudade" em letras de rubis trazia.

E era um riso de amor e de poesia
Em cada riso ou flor da primavera...
E Laura, a um canto, cruel, por que a esquecera,
Laura que soluçou, porque eu partia?

Anos derivam. De remorsos presa
Não é que vai, acaso, à soledade
Da abandonada... Vai por fantasia.

Mas, como um choro, vê, vê com surpresa,
Desmancharem-se as letras da "Saudade"
Que aquela taça de metal trazia.


FLORESTA MORTA

Por que, à luz de um sol de primavera
Uma floresta morta? Um passarinho
Cruzou, fugindo-a, o seio que lhe dera
Abrigo e pouso e que lhe guarda o ninho.

Nem vale, agora, a mesma vida, que era
Como a doçura quente de um carinho,
E onde flores abriam, vai a fera
— Vidrado o olhar — lá vai pelo caminho.

Ah! quanto dói o vê-la, aqui, Setembro,
Inda banhada pela mesma vida!
Floresta morta a mesma coisa lembro;

Sob outro céu assim, que pouco importa,
Abrigo à fera, mas, da ave fugida,
Há no meu peito uma floresta morta.


MARE VITAE (a David de Persicano)

— Remar! remar! — E a embarcação ligeira
Foi deslizando, como um sonho da água.
De pé, na proa, era a gonfaloneira
— Remar! remar! — a minha própria Mágoa.

E esmaia, logo, uma ilusão. E afago-a
Ao som de fogo de canção guerreira,
Vai deslizando como um sonho da água
— Remar! remar! a embarcação ligeira.

Mas uma voz de súbito. Gemendo,
Sob o silêncio côncavo dos astros
Quem canta assim de amor? Eu não compreendo...

E oh! Morte — eu disse — esta canção me aterra:
Dá-me que tremam palpitando os mastros
Ao som vermelho da canção de guerra.


VINHO

Alma presa da Grécia, em prisão de turquesa!
Vibre a Vida a cantar nessas taças à Vida,
Como, dentro do Sangue, a Alma da Natureza
— Num seio nu, num ventre nu, — ferve incendida!

Vinho de Cós! e quente! a escorrer sobre a mesa
Como um rio de fogo, onde vela perdida,
Braço branco, embalada à flor da correnteza,
Floresce ao sol, floresce à luz, floresce à Vida!

Oh! bem-vinda; bem-vinda essa vela que chega!
Nau de rastro que traz a ilusão de uma grega
Descerrando à Volúpia a clâmida aquecida...

Vinho de Cós! vinho de Cós! e os nossos olhos
De Virgílios a errar entre vagas e escolhos,
Argonautas de Amor sobre os mares da Vida!


RITMO ETERNO

Abro as asas da Vida à Vida que há lá fora.
Olha... Um sorriso da alma! — Um sorriso da aurora!
E Deus — ou Bem! ou Mal — é Deus cantando em mim,
Que Deus és tu, sou eu — a Natureza assim.

Árvore! boa ou má, os frutos que darás
Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás.
E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo,
Casa multiplicando as asas deste mundo...

Oh, braços para a Vida! Oh, vida para amar!
Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...
Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo,

É minh'alma, é teu seio, e um firmamento mudo.
Mas, aos ritmos da Terra, és um ritmo do Amor?
Homem! ouvir a teus pés a Natureza em flor!


AD VENERIS LACRIMAS

Em meus nervos, a arder, a alma é volúpia... Sinto
Que Amor embriaga a Íon e a pele de ouro. Estua,
Deita-se Íon: enrodilha a cauda o meu Instinto
Aos seus rosados pés... Nyx se arrasta, na rua...

Canta a alâmpada brônzea? O ouvido aos sons extinto
Acorda e ouço a voz ou da alâmpada ou sua.
O silêncio anda à escuta. Abre um luar de Corinto
Aqui dentro a lamber Hélada nua, nua.

Íon treme, estremece. Adora o ritmo louro
Da áurea chama, a estorcer os gestos com que crava
Finas frechas de luz na cúpula aquecida...

Querem cantar de Íon os dois seios, em coro...
Mas sua alma — por Zeus! — na água azul doutra Vida
Lava os meus sonhos, treme em seus olhos, escrava.


CETÁCEO

Fuma. É cobre o zenite. E, chagosos do flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um longo vôo branco.

Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunido a pele atijolada.

Tine em cobre o zenite e o vento arqueja o oceano
Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.

E na verde ironia ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d'água ou do sol vermelho.


AMOR VOLAT

Não, não é que comigo ele nasceu... A sua asa
Só a um tempo ruflou desse modo, tamanho!
Bateu-me o coração... E outro não sei que, estranho,
Rudamente o rasgou como o seu bico em brasa...

Entrou-mo todo, enfim, como quem entra em casa
E em meu sangue, a cantar, fez de um boêmio no banho!
Oh! Que pássaro mau! E eu nunca mais o apanho!
Vês: estou velho já. Treme-me o passo, e atrasa...

Olha-me bem, no peito, o rubro ninho aberto!
Hoje, fúnebre, a piar, uma estrige ao telhado
E o meu seio vazio! e o meu leito deserto!

E vivo só por ver, como curvo aqui fico,
Esse pássaro voar, largamente, um bocado
De músculos pingando a levar-me no bico!


CERBERO

É, não vens mais aqui... Pois eu te espero,
Gele-me o frio inverno, o sol adusto
Dê-me a feição de um tronco, a rir, vetusto
— Meu amor a ulular... E é o teu Cerbero!

É, não vens mais aqui... E eu mais te quero,
Vago o vergel, todo o pomar venusto
E a cada fruto de ouro estendo o busto,
Estendo os braços, e o teu seio espero.

Mas como pesa esta lembrança... a volta
Da aléia em flor que em vão, toda, transponho,
E onde te foste, e a cabeleira solta!

Vais corações rompendo em toda a parte!
Virás, um dia... E à porta do meu Sonho
Já Cerbero morreu, para agarrar-te.


O MURO

Movendo os pés doirados, lentamente,
Horas brancas lá vão, de amor e rosas
As impalpáveis formas, no ar, cheirosas...
Sombras, sombras que são da alma doente!

E eu, magro, espio... e um muro, magro, em frente
Abrindo à tarde as órbitas musgosas
— Vazias? Menos do que misteriosas —
Pestaneja, estremece... O muro sente!

E que cheiro que sai dos nervos dele,
Embora o caio roído, cor de brasa,
E lhe doa talvez aquela pele!

Mas um prazer ao sofrimento casa...
Pois o ramo em que o vento à dor lhe impele
É onde a volúpia está de uma asa e outra asa...

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes