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Raul de Leoni Ramos (Petrópolis RJ 1895-1926)
Se defini Cecília Meireles como "rainha da reticência", posso definir
Leoni como "rei das cousas", tal a insistência com que usa "cousas",
além de "ingenuidade", para definir sua vaga e ingênua filosofia das
coisas, às vezes dirigindo-se ao leitor num tom pretensamente
aconselhador, porém sem a agudeza lapidar dum Bastos Tigre. Embora fale
muito de almas, não dá para ser classificado de simbolista; embora
resvale o cientificismo, não tem a contundência teratológica dum Augusto
dos Anjos (a quem se assemelha pela obra única e irrotulável). Uma coisa
é certa: Leoni trabalha magistralmente o soneto e manipula as imagens
com desenvoltura rara, razão pela qual seu livro LUZ MEDITERRÂNEA não
passou despercebido mesmo tendo saído simultaneamente ao modernismo.
Considero, por motivos pessoais, sua obra-prima o soneto "Desconfiando",
ao qual não pude deixar de replicar com o "Mancomunado":
DESCONFIANDO Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo, Atento tu me escutas quando falo; Bem antes que te exponha o meu desejo Já pronto estás correndo a executá-lo. Achas em tudo um venturoso ensejo De servir-me de servo e de vassalo; Perdoa-me a verdade num gracejo. Serias, se eu quisesse, o meu cavalo... Mas não penses que estólido eu te creia Como um Patroclo abnegado, não: De todos os excessos se receia... O certo é que, em rancor, por dentro estalas; Odeias-me, que eu sei, mas, histrião, Beijas-me as mãos por não poder cortá-las... SONETO 534 MANCOMUNADO Te beijo as mãos por não poder cortá-las e os pés por não poder pisar-te a face. Odeio-te, mas brinco que te amasse a ponto de inalar o odor que exalas. Bem sei que habitarei tuas senzalas porque não tens quem mais se dedicasse a teu prazer: ninguém que assim abrace, de bruços, tuas botas que mais ralas! Por dentro, me revolto quando as lambo; por fora me sorris, me crês submisso; te fazes de mandão; eu, de molambo. Se queres, serei teu cavalariço, cavalo, até! Serás meu Thor, meu Rambo, meu Átila! Porém sem compromisso! Glauco Mattoso Eis o panorama da obra sonetística de Leoni: MAQUIAVÉLICO Há horas em que minha alma sente e pensa, Num tempo nobre que não mais se avista, Encarnada num príncipe humanista, Sob o Lírio Vermelho de Florença. Vejo-a, então, nessa histórica presença, Harmoniosa e sutil, sensual e egoísta, Filha do idealismo epicurista, Formada na moral da Renascença. Sinto-a, assim, flor amável do Helenismo. Virtuose restaurando os velhos mapas Do gênio antigo, entre exegeta e artista. E ao mesmo tempo, por diletantismo, Intrigando a política dos papas, Com a perfídia elegante de um sofista... ADOLESCÊNCIA Eu era uma alma fácil e macia, Claro e sereno espelho matinal Que a paisagem das cousas refletia, Com a lucidez cantante do cristal. Tendo os instintos por filosofia, Era um ser mansamente natural, Em cuja meiga ingenuidade havia Uma alegre intuição universal. Entretinham-me as ricas tessituras Das lendas de ouro, cheias de horizontes E de imaginações maravilhosas. E eu passava entre as cousas e as criaturas, Simples como a água lírica das fontes E puro como o espírito das rosas... MEFISTO Espírito flexível e elegante, Ágil, lascivo, plástico, difuso, Entre as cousas humanas me conduzo Como um destro ginasta diletante. Comigo mesmo, cínico e confuso, Minha vida é um sofisma espiralante; Teço lógicas trêfegas e abuso Do equilíbrio na Dúvida flutuante. Bailarino dos círculos viciosos, Faço jogos sutis de idéias no ar Entre saltos brilhantes e mortais, Com a mesma petulância singular Dos grandes acrobatas audaciosos E dos malabaristas de punhais... CONFUSÃO Alma estranha esta que abrigo, Esta que o Acaso me deu, Tem tantas almas consigo Que eu nem sei bem quem sou eu. Jamais na Vida consigo Ter de mim o que é só meu; Para supremo castigo, Eu sou meu próprio Proteu. De instante a instante, a me olhar, Sinto, num pesar profundo, A alma a mudar... a mudar... Parece que estão, assim, Todas as almas do Mundo, Lutando dentro de mim... SERENIDADE Feriram-te, alma simples e iludida. Sobre os teus lábios dóceis a desgraça Aos poucos esvaziou a sua taça E sofreste sem trégua e sem guarida. Entretanto, à surpresa de quem passa, Ainda e sempre, conservas para a Vida A flor de um idealismo, a ingênua graça De uma grande inocência distraída. A concha azul envolta na cilada Das algas más, ferida entre os rochedos, Rolou nas convulsões do mar profundo; Mas inda assim, poluída e atormentada, Ocultando puríssimos segredos, Guarda o sonho das pérolas no fundo. FELICIDADE Sombra do nosso Sonho ousado e vão! De infinitas imagens irradias E, na dança da tua projeção, Quanto mais cresces, mais te distancias... A Alma te vê à luz da posição Em que fica entre as cousas e entre os dias: És sombra e, refletindo-te, varias, Como todas as sombras, pelo chão... O Homem não te atingiu na vida instável Porque te embaraçou na filigrana De um ideal metafísico e divino; E te busca na selva impraticável, Ó Bela Adormecida da alma humana! Trevo de quatro folhas do Destino!... FELICIDADE (II) Basta saberes que és feliz, e então Já o serás na verdade muito menos: Na árvore amarga da Meditação, A sombra é triste e os frutos têm venenos. Se és feliz e o não sabes, tens na mão O maior bem entre os mais bens terrenos E chegaste à suprema aspiração, Que deslumbra os filósofos serenos. Felicidade... Sombra que só vejo, Longe do Pensamento e do Desejo, Surdinando harmonias e sorrindo, Nessa tranqüilidade distraída, Que as almas simples sentem pela Vida, Sem mesmo perceber que estão sentindo... CREPUSCULAR Poente no meu jardim... O olhar profundo Alongo sobre as árvores vazias, Essas em cujo espírito infecundo Soluçam silenciosas agonias. Assim estéreis, mansas e sombrias, Sugerem à emoção com que as circundo Todas as dolorosas utopias De todos os filósofos do mundo. Sugerem... Seus destinos são vizinhos: Ambas, não dando frutos, abrem ninhos Ao viandante exânime que as olhe. Ninhos, onde vencidas de fadiga, A alma ingênua dos pássaros se abriga E a tristeza dos homens se recolhe... HISTÓRIA ANTIGA No meu grande otimismo de inocente, Eu nunca soube porque foi... um dia, Ela me olhou indiferentemente, Perguntei-lhe por que era... Não sabia... Desde então, transformou-se, de repente, A nossa intimidade correntia Em saudações de simples cortesia E a vida foi andando para a frente... Nunca mais nos falamos... vai distante... Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante Em que seu mudo olhar no meu repousa, E eu sinto, sem no entanto compreendê-la, Que ela tenta dizer-me qualquer cousa, Mas que é tarde demais para dizê-la... ARTISTA Por um destino acima do teu Ser, Tens que buscar nas cousas inconscientes Um sentido harmonioso, o alto prazer Que se esconde entre as formas aparentes. Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder Nem no pões na tua alma, nem no sentes Na tua vida, e o levas, sem saber, Ao sonho de outras almas diferentes... Vives humilde e inda ao morrer ignoras O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!) Mas não faz mal, meu bômbix inocente: Fia na primavera, entre as amoras, A tua seda de ouro, que nem usas Mas que faz tanto bem a tanta gente... INGRATIDÃO Nunca mais me esqueci!... Eu era criança E em meu velho quintal, ao sol-nascente, Plantei, com a minha mão ingênua e mansa, Uma linda amendoeira adolescente. Era a mais rútila e íntima esperança... Cresceu... cresceu... e, aos poucos, suavemente, Pendeu os ramos sobre um muro em frente E foi frutificar na vizinhança... Daí por diante, pela vida inteira, Todas as grandes árvores que em minhas Terras, num sonho esplêndido semeio, Como aquela magnífica amendoeira, Eflorescem nas chácaras vizinhas E vão dar frutos no pomar alheio... TORRE MORTA DO OCASO Esguia torre ascética, esquecida Na bruma de um crepúsculo profundo! És, no mais triste símbolo do mundo, A renúncia tristíssima da Vida! Tua existência é um pensamento fundo Levantado na pedra adormecida: Bem sentes quanto é inútil e infecundo O esforço na vertigem da subida!... Como és profética de longe... quando, Na moldura do poente de ouro e rosa, Interpretando todos os destinos, Vais por todos os ventos espalhando Tua filosofia dolorosa, Na balada sonâmbula dos sinos!... A HORA CINZENTA Desce um longo poente de elegia... Sobre as mansas paisagens resignadas; Uma humaníssima melancolia Embalsama as distâncias desoladas... Longe, num sino antigo, a Ave-Maria Abençoa a alma ingênua das estradas; Andam surdinas de anjos e de fadas Na penumbra nostálgica, macia... Espiritualidades comoventes Sobem da terra triste, em reticência, Pela tarde sonâmbula, imprecisa... Os sentidos se esfumam, a alma é essência, E entre fugas de sombras transcendentes, O Pensamento se volatiliza... PRUDÊNCIA Não aprofundes nunca, nem pesquises O segredo das almas que procuras: Elas guardam surpresas infelizes A quem lhes desce às convulsões obscuras. Contenta-te com amá-las, se as bendizes, Se te parecem límpidas e puras, Pois se, às vezes, nos frutos há doçuras, Há sempre um gosto amargo nas raízes... Trata-as assim, como se fossem rosas, Mas não despertes o sabor selvagem Que lhes dorme nas pétalas tranqüilas. Lembra-te dessas flores venenosas! As abelhas cortejam de passagem, Mas não ousam prová-las nem feri-las... AOS QUE SONHAM Não se pode sonhar impunemente Um grande sonho pelo mundo afora, Porque o veneno humano não demora Em corrompê-lo na íntima semente... Olhando no alto a árvore excelente, Que os frutos de ouro esplêndidos enflora, O Sonhador não vê, e até ignora A cilada rasteira da Serpente. Queres sonhar? Defende-te em segredo, E lembra, a cada instante e a cada dia, O que sempre acontece e aconteceu: Prometeu e o abutre no rochedo, O Calvário do Filho de Maria E a cicuta que Sócrates bebeu! PUDOR Quando fores sentindo que o fulgor Do teu Ser se corrompe e a adolescência Do teu gênio desmaia e perde a cor, Entre penumbras em deliqüescência, Faze a tua sagrada penitência, Fecha-te num silêncio superior, Mas não mostres a tua decadência Ao mundo que assistiu teu esplendor! Foge de tudo para o teu nadir! Poupa ao prazer dos homens o teu drama! Que é mesmo triste para os olhos ver E assistir, sobre o mesmo panorama, A alegoria matinal subir E a ronda dos crepúsculos descer... UNIDADE Deitando os olhos sobre a perspectiva Das cousas, surpreendo em cada qual Uma simples imagem fugitiva Da infinita harmonia universal. Uma revelação vaga e parcial De tudo existe em cada cousa viva: Na corrente do Bem ou na do Mal Tudo tem uma vida evocativa. Nada é inútil; dos homens aos insetos Vão-se estendendo todos os aspectos Que a idéia da existência pode ter; E o que deslumbra o olhar é perceber Em todos esses seres incompletos A completa noção de um mesmo ser... LEGENDA DOS DIAS O Homem desperta e sai cada alvorada Para o acaso das cousas... e, à saída, Leva uma crença vaga, indefinida, De achar o Ideal nalguma encruzilhada... As horas morrem sobre as horas... Nada! E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida, Volta, pensando: "Se o Ideal da Vida Não veio hoje, virá na outra jornada..." Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim, Mais ele avança, mais distante é o fim, Mais se afasta o horizonte pela esfera. E a Vida passa... efêmera e vazia: Um adiamento eterno que se espera, Numa eterna esperança que se adia... INSTINTO Glória ao Instinto, a lógica fatal Das cousas, lei eterna da criação, Mais sábia que o ascetismo de Pascal, Mais bela do que o sonho de Platão! Pura sabedoria natural Que move os seres pelo coração, Dentro da formidável ilusão, Da fantasmagoria universal! És a minha verdade, e a ti entrego, Ao teu sereno fatalismo cego, A minha linda e trágica inocência! Ó soberano intérprete de tudo, Invencível Edipo, eterno e mudo, De todas as esfinges da Existência!... PLATÔNICO... As idéias são seres superiores, Almas recônditas de sensitivas Cheias de intimidades fugitivas, De escrúpulos, melindres e pudores. Por onde andares e por onde fores, Cuidado com essas flores pensativas, Que têm pólen, perfume, órgãos e cores E sofrem mais que as outras cousas vivas. Colhe-as na solidão... são obras-primas, Que vieram de outros tempos e outros climas Para os jardins de tua alma que transponho, Para com elas teceres, na subida, A coroa votiva do teu Sonho E a legenda imperial da tua Vida. IMAGINAÇÃO Scherazade do espírito, que rendas Num fio ideal de verossimilhança O Símbolo e a Ilusão, únicas prendas Que nos vieram dos deuses como herança! Transformando em alhambras nossas tendas, Na tua voz o nosso olhar alcança As Mil e uma Noites da Esperança E a esfera azul dos sonhos e das lendas! Quando o despeito da Realidade Nos fere, és quem de novo nos persuade, Com teu consolo que nem sempre engana, Porque, na tua esplêndida eloqüência, És o sexto sentido da Existência E a memória divina da alma humana! FORÇA MALDITA Eras fraco e feliz, sem meditar, E na tua consciência vaga e obscura, A vida, sob um luar de iluminura, Era um conto de fadas para o olhar. Um dia, um rude e pérfido avatar Vestiu-te de uma força ingrata e impura, E sonhaste a ciclópica aventura De o espírito das cousas penetrar. Mas, ah! homem ingênuo, desde quando Deste o primeiro passo da escalada, Foste, como um tristíssimo Sansão, Na fúria da tua obra desgraçada, Estremecendo, aluindo, derrubando As colunas do Templo da Ilusão!... VIVENDO... Nós, incautos e efêmeros passantes, Vaidosas sombras desorientadas, Sem mesmo olhar o rumo das passadas, Vamos andando para fins distantes... Então, sutis, envolvem-nos ciladas De pequenos acasos inconstantes, Que vão desviando, a todos os instantes, A linha leviana das estradas... Um dia, todo o fim a que chegamos, Vem de um nada fortuito, entretecido Nas surpresas das horas em que vamos... Para adiante! Ó ingênuos peregrinos! Foi sempre por um passo distraído Que começaram todos os destinos... PARA A VERTIGEM! Alma, em teu delirante desalinho, Crês que te moves espontaneamente, Quando és na Vida um simples redemoinho, Formado dos encontros da torrente! Moves-te porque ficas no caminho Por onde as cousas passam, diariamente. Não é o Moinho que anda: é a água corrente Que faz, passando, circular o Moinho... Por isso, deves sempre conservar-te Nas confluências do Mundo errante e vário, Entre forças que vêm de toda parte. Do contrário, serás, no isolamento, A espiral, cujo giro imaginário É apenas a Ilusão do Movimento!... EXORTAÇÃO Sê na Vida a expressão límpida e exata Do teu temperamento, homem prudente; Como a árvore espontânea que retrata Todas as qualidades da semente! O que te infelicita é sempre a ingrata Aspiração de uma alma diferente, É meditares tua forma inata, Querendo transformá-la, de repente! Deixa-te ser!... e vive distraído Do enigma eterno sobre que repousas, Sem nunca interpretar o seu sentido! E terás, de harmonia com tua alma, Essa felicidade ingênua e calma, Que é a tendência recôndita das cousas!... EGOCENTRISMO Tudo que te disserem sobre a Vida, Sobre o destino humano, que flutua, Ouve e medita bem, mas continua Com a mesma alma liberta e distraída! Interpreta a existência com a medida Do teu Ser! (a verdade é uma obra tua!) Porque em cada alma o Mundo se insinua, Numa nova Ilusão desconhecida. Vai pelos próprios passos, num assomo De quem procura por si próprio o fundo Da eterna sensação que as cousas têm! Existe, em suma, por ti mesmo, como Se antes da tua sombra sobre o Mundo Não houvera existido mais ninguém!... SABEDORIA Tu que vives e passas, sem saber O que é a vida nem porque é, que ignoras Todos os fins e que, pensando, choras Sobre o mistério do teu próprio Ser, Não sofras mais à espera das auroras Da suprema verdade a aparecer: A verdade das cousas é o prazer Que elas nos possam dar à flor das horas... Essa outra que desejas, se ela existe, Deve ser muito fria e quase triste, Sem a graça encantada da incerteza... Vê que a Vida afinal, sombras, vaidades É bela, é louca e bela, e que a Beleza É a mais generosa das verdades... ET OMNIA VANITAS... ..E vive assim... Como filosofia O Prazer, como glórias e esperanças Uma vida espontânea e correntia E um gesto irônico ao que não alcanças! Seja a vida um punhado de horas mansas, Numa felicidade fugidia: A piedosa ilusão de cada dia E o bailado de sombras das lembranças. Ama as cousas inúteis! Sonha! A Vida... Viste que a Vida é uma aparência vaga, E todo o imenso sonho que semeias, Uma legenda de ouro, distraída, Que a ironia das águas lê e apaga, Na memória volúvel das areias!... A ÚLTIMA CANÇÃO DO HOMEM... Rei da Criação, por mim mesmo aclamado, Quis, vencendo o Destino, ser o Rei De todo esse Universo ilimitado Das idéias que nunca alcançarei... Inteligência... esse anjo rebelado Tombou sem ter sabido a eterna lei: Pensei demais e, agora, apenas sei Que tudo que eu pensei estava errado... De tudo, então, ficou somente em mim O pavor tenebroso de pensar, Porque as idéias nunca tinham fim... Que mais resta da fúria malograda? Um bailado de frases a cantar... A vaidade das formas... e mais nada... CRISTIANISMO Sonho um cristianismo singular Cheio de amor divino e de prazer humano; O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano, A beatitude com mais luz e com mais ar... Um pequeno mosteiro em meio de um pomar, Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano, Num misticismo lírico, a sonhar Na orla florida e azul de um lago italiano... Um cristianismo sem renúncia e sem martírios, Sem a pureza melancólica dos lírios, Temperado na graça natural... Cristianismo de bom-humor, que não existe, Onde a Tristeza fosse um pecado venial, Onde a Virtude não precisasse ser triste... DECADÊNCIA Afinal, é o costume de viver Que nos faz ir vivendo para a frente; Nenhuma outra intenção, mas simplesmente O hábito melancólico de ser... Vai-se vivendo... é o vício de viver... E se esse vício dá qualquer prazer à gente, Como todo prazer vicioso é triste e doente, Porque o Vício é a doença do Prazer... Vai-se vivendo... vive-se demais, E um dia chega em que tudo que somos É apenas a saudade do que fomos... Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos Que somos sombras, que já não somos mais nada Do que os sobreviventes de nós mesmos!... ALMAS FRIAS Almas desoladoramente frias De uma aridez tristíssima de areia, Nelas não vingam essas suaves poesias Que a alma das cousas, ao passar, semeia... Desesperadoramente estéreis e sombrias, Onde passam (triste aura que as rodeia!) Deixam uma atmosfera amarga, cheia De desencantos e melancolias... Nessa árida rudeza de rochedo, Mesmo fazendo o bem, sua mão é pesada, Sua própria virtude mete medo... Como são tristes essas vidas sem amor, Essas sombras que nunca amaram nada, Essas almas que nunca deram flor... TRANSUBSTANCIAÇÃO Esta carne em que existo há de tornar-se um dia Em húmus germinal, em seiva fecundante. Decompondo-se em Pó, há de ser a energia De vidas que sobre ela hão de viver adiante... Será fonte, Princípio, a tábida apatia De um movimento novo, intérmino e constante, Sua ruína será a feraz embriogenia De outros tipos de Vida, instante para instante. Há de um horto florir por sobre o seu passado. Borboletas iriais e anêmonas olentes, Vidas da minha Morte, eu mesmo transformado... E, assim, irei buscando a Perfeição perdida, Vivendo na Emoção de seres diferentes Que a Morte é a transição da Vida para a Vida... CALA A BOCA, MEMÓRIA! Cala a boca, Memória! Basta, basta! O que o Tempo te disse não me digas. Que pareces até minha madrasta Quando me vens cantar tuas cantigas. Tua voz me faz mal e me vergasta, E a chorar, muitas vezes, tu me obrigas. Piedade, Memória leonoclasta, Não despertes, assim, dores antigas. Vai, recolhe-te à tua soledade, E que o teu braço nunca mais me leve À sepultura da Felicidade! Segue um conselho meu, de ora em diante: Junto a quem está de luto, não se deve Falar de quem morreu, a todo instante... SEI DE TUDO Sei de tudo o que existe pelo mundo. A forma, o modo, o espírito e os destinos. Sei da vida das almas e aprofundo O mistério dos seres pequeninos. Sei da ciência do Espaço, sei o fundo Da terra e os grandes mundos submarinos, Sei o Sol, sei o Som e o elo profundo Que há entre os passos humanos e os divinos. Sei de todas as cousas, a teoria Do Universo e as longínquas perspectivas Que emergem da expressão das cousas vivas. Sei de tudo e oh! tristíssima ironia! Pelo caminho eterno por que vou, Eu, que sei tudo, só não sei quem sou... VELHA NATUREZA Tudo que a velha Natureza gera Vai sempre rumo do melhor futuro; Ela fecunda com o ânimo seguro De quem muito medita e delibera... O seu gênio de artista mais se esmera Na teoria sutil do claro-escuro, Com que exalta a verdade mais austera, Frisando em tudo o símbolo mais puro... Só faz o Mau e o Hediondo para efeito De projetar mais longe e sem nuance A alma cheia de luz do que é perfeito, Como cavou o Abismo nas entranhas, Para dar mais relevo e mais alcance À soberba estatura das montanhas... EUGENIA Nascemos um para o outro, dessa argila De que são feitas as criaturas raras; Tens legendas pagãs nas carnes claras E eu tenho a alma dos faunos na pupila... Às belezas heróicas te comparas E em mim a luz olímpica cintila. Gritam em nós todas as nobres taras Daquela Grécia esplêndida e tranqüila... É tanta a glória que nos encaminha Em nosso amor de seleção, profundo, Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis), Se um dia eu fosse teu e fosses minha, O nosso amor conceberia um mundo, E do teu ventre nasceriam deuses...
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |