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Jorge Mateus de Lima (União AL 1893-1953)
Apaixonado pelo alexandrino, praticou o decassílabo com igual mestria.
Abriu mão da rima quando lhe conveio, sem ceder à tentação de avacalhar
totalmente com o soneto, como prefeririam os modernistas mais radicais.
Os impecáveis (em forma e fundo) sonetos de Jorge de Lima foram por mim
comentados no exemplo abaixo:
SONETO 229 INCONSÚTIL Se alguém inda rejeita metro e rima, ou crê na obsolescência do soneto, ao vate alagoano é que o remeto: ninguém menos que o meu Jorge de Lima. Aos treze sonetava, tudo em cima. Ao modernismo adere de panfleto. Mas, décadas depois, como cometo, de novo dos catorze se aproxima. O caso é que o soneto permanece acima das marés, que vêm e vão, tal como se no céu sempre estivesse. É um ponto que ilumina a escuridão, e não, como o cometa, algo que desce ou passa, vanguardando a ocasião.Glauco Mattoso Estes são seus sonetos de que mais gosto: PLANTAS Nascem plantas nas trevas! Infelizes, buscam o Sol e o Sol não as visita. A Natureza faz-se mãe maldita: não lhes dá leite, não lhes dá nutrizes. Eis a tragédia anônima, infinita! Uma catléia, para ter matizes, por sobre as outras plantas se espevita e suga e arruína como as meretrizes... E esses desvios comprometedores, és tu, ó Natureza, que os concitas; e, para que teus erros vulgarizes, se crias plantas que dão fruto e flores, outras como as talófitas suscitas, que não têm folhas e não têm raízes. LÁGRIMA VELHO TEMA Ó lágrima bendita e santa e universal, Eu te quero cantar, e este meu canto inspire-o A feição que eu te dei, de intérprete geral Da dor de todo ser infalível martírio... Que processo te faz no minério em cristal, E na gota que luz no cálice do lírio? Talvez tenham os dois, uma tortura igual À tortura que funde em lágrimas o círio. Seja embora ilusão, hei de sempre mantê-la: No côncavo do céu, há lágrimas astrais E o bólide celeste é a lágrima da estrela! Malfadadas irmãs! são lágrimas iguais: A resina que cobre as árvores fendidas E a lágrima de dor das íntimas feridas! O RELÓGIO... Relógio, meu amigo, és a Vida em Segundos... Consulto-te: um segundo! E quem sabe se agora, Como eu próprio, a pensar, pensará doutros mundos Alma que filosofa e investiga e labora? Há de a morte ceifar somas de moribundos. O relógio trabalha... E um sorri e outro chora, Nas cavernas, no mar ou nos antros profundos Ou no abismo que assombra e que assusta e apavora... Relógio, meu amigo, és o meu companheiro, Que aos vencidos, aos réus, aos párias e ao morfético Tem posturas de algoz e gestos de coveiro... Relógio, meu amigo, as blasfêmias e a prece, Tudo encerra o segundo, insólito sintético: A volúpia do beijo e a mágoa que enlouquece! A VERDADE Esta planta pequena e encontradiça em flora no vale, na rechã, nos barrocais, na areia... E da grota à eminência ela nasce e vigora, de saúde, verdor, de clorofila, cheia... E, na treva do abismo ela germina, embora. Mas, em busca da luz, ei-la a subir! Anseia! Busca mais luz! E cresce... e se transforma! E agora é um arbusto! E depois, em árvore frondeia! Eu às vezes comparo esta planta à Verdade... Ofuscai-a, vereis: faz-se doutrina, templo... Derribá-la, vencê-la e dar-lhe fim, quem há de? "Um mito vós direis que deve ser desfeito"... "Este caso medito em muita gente é exemplo: Esta planta é a verdade; a treva o preconceito". MENTIRA ..E te chamam pecado! E haverá quem não sinta Que viver é mentir? Se o mundo inteiro mente O mentir é pecar? É pecadora a tinta Que novo faz o bonzo e a sepultura albente? ..E te chamam pecado! E haverá quem não minta, A si próprio negando o que sofre e o que sente? E o disfarce? E o retoque? E o dourador que pinta D'oiro a fiança e logra a descuidada gente? E se o mundo és tu própria! E se a vida és tu mesma Mentira secular, vitalizada, santa, Condição de existir do vertebrado à lesma! E se há lábio, meu Deus, que ensangüentado canta, E se há lábio, também, que bendizendo impreca... É pecado viver e o mundo inteiro peca! MEU DECASSÍLABO A natureza que seus filhos gera, e qual Saturno os próprios filhos mata, deu-te a noção a pouco e pouco exata, desse final que trágico te espera! Ser feliz por completo é uma quimera... Ao lado d'alma boa anda a insensata, como às vezes no Bom surge uma inata e atávica tendência de ser fera... Por mais indefectível que pareças, Homem, serás duma outra vida a imagem, pois justo é que tu nasças e pereças, herdeiro dos pavores do Selvagem e dos vícios, das dores, das desgraças originárias de milhões de raças... EPICICLO Alma, sê forte; corpo, sê robusto! Nesse conflito atávico e instintivo Sê como o gênio que possante e altivo Constrói antes de morto o próprio busto! Refreia o teu instinto e o doma a custo Da dor da grande dor de seres vivo... Eu quero! esse presente indicativo Otávio a conjugá-lo fez-se Augusto... Mas nunca concretizes teu ideal! Um ideal realizado é um transparente Fruto que ao ser provado sabe mal! O artista é como o Errático do mito: Onde pensa que é o fim, surge-lhe à frente A estrada interminável do Infinito! MANGUE Como se nasce plátano ou carvalho Eu nasci mangue no meu pátrio solo. Enquanto alteio em meu louvor um galho Trinta raízes de alicerce atolo. Outros são glórias, eu apenas valho Esse rochedo humílimo que rolo: Viver comigo, para o meu trabalho, Fincar-me às ribas, deste meu Pactolo... Deixar que os outros sejam leito e altar, Ostentem galas pomo grato às gentes, Ornem a fronte dos que vão casar; Para meu gozo, quero ser raiz, Ser galho tosco, distribuir sementes, Conquistar solo para o meu país. LAMPARINA Põe azeite na tua lamparina Para que a treva eterna se retarde. A tarde há de ensombrar a tua sina E a Morte é indefectível como a tarde. Observa: a sua luz não tem o alarde, Que as combustões de súbito confina. O fogaréu indômito ilumina, Mas, quase sempre, em dois instantes arde. A lamparina, entanto, muito calma, Luz pequenina, que parece uma alma, Que à Grande Luz celestial se eleva , Espera nesse cândido transporte, Que, extinto sendo o azeite, chegue a Morte, Que a luz pequena para a Grande leva. ZUMBI Em meu torrão natal Imperatriz , nas serras da Barriga e da Juçara, um homem negro, muito negro, quis mostrar ao mundo que tinha alma clara. E tem o sonho que Platão sonhara: que um sonho nobre não possui matiz. (O sol d'Egina é o mesmo sol do Saara, da Senegâmbia, de qualquer país). Em mil seiscentos e noventa e sete, galgam o topo da montanha a pique, os homens brancos de Caetano e Castro. E o negro herói que não se curva e inflete, faz-se em pedaços para que não fique com os homens brancos, o seu negro rastro... VOLTA D'ÁGUA Nas duas Alagoas, por três fozes, jorra a corrente, que a bramir se alteia, A conquista do mar! ruge e pateia o desafio das três rudes vozes. Voltam vencidas, quando mais velozes, forçam a barra, que entre os dois medeia, e vem com elas, abundantes doses da água salgada que lhe esturge a veia. Passa o canoeiro, colhe presto as velas, solta a canção que lhe dissipa as mágoas, pois vendo as águas regressando, nelas vê seu destino, ao líquido transposto: que ele torna também como essas águas, com a saudade no peito e em pranto o rosto. O PRIMEIRO DOS QUATORZE Há muita gente eu sei que não gosta de versos, Porque... não sei... talvez... porque não queira; Daí uma asserção de críticos diversos: Morrerá no Porvir a poesia inteira. Eu me esteio a mim mesmo em pontos controversos: A Ciência julgada austera e sobranceira Pousa no fictício os pedestais emersos Que sustêm uma bíblia eterna e verdadeira. Vede: a Química conta as moléculas; dita A Mecânica as leis tendo por base a inércia; Outros mundos além a Astronomia habita... Se mesmo o positivo é sonho e controvérsia Nem Porvir, nem ninguém, cousa alguma desliga A Ciência que sonha e o verso que investiga. DOR Dor é vida. Se vivo é porque sofro e sinto. O primeiro vagido é um hino ao sofrimento E o olhar do moribundo é o último lamento. Ambos vêm do sofrer e têm o mesmo instinto! A Dor é sempre o eterno e gigantesco plinto Que sustém Prometeu olhando o firmamento. Que depois se fez cruz e tornou-se em assento De quem sonha e comunga este trágico absinto. Fez Jesus ser um Deus e Dante ser poeta, Produziu o Evangelho e os versos de Lucano, Fez Tolstoi novo Cristo e fez Moisés profeta! Do nascer da criança ao desabrochar da flor, Do núcleo de uma ameba ao coração humano Procurai que achareis a palpitar a Dor! NATURA MATER Clorofila e pletora enchem-lhe o seio farto E trajam-lho de verde e cobrem-lho de ninhos! E tão nova, parece, é o seu primeiro parto Que fez o bosque, o rio, a flor e os passarinhos! Num dia assim eu sei, oh! mãe fecunda, eu parto Inânime, sem vida e sem ais, sem carinhos, E o teu seio eu irei um dia fecundar-to Na doçura talvez das flores dos caminhos! Do meu sangue farás a cor das tuas flores, Dos meus ossos os sais, dos músculos os troncos, Na química vital do teu parto sem dores! A Vida é um culto eterno ao forte, aos maus e aos broncos! Mãe, isola-me dos bons e dos frouxéis do ninho Quero ter a vitória em ser mau, sendo espinho! HOMO RIDENS Chama a fisiologia o "músculo risório" Dito de Santorini, o músculo do riso. Motora e sensitiva a sua ação pesquiso Entre antiga raiz de lácio palanfrório. Reflexo vital entre o bulbo e o sensório O riso há muito tempo entenebrece o siso Do poeta que o crê (se ele é bom) paraíso Quando o não crê (se é mau) inferno ou purgatório. E quem sabe se ri o lajedo da gruta Gargalhadas de pedra em suas rochas mudas, Que o nosso ouvido nunca as percebe e as escuta? Oh! animal que ris e explicações estudas "Homo ridens", possuis em tua face astuta O rir bom de Jesus e o riso mau de Judas! VELHO TEMA A SAUDADE Quem não a canta? Quem? Quem não a canta e sente? Chama que já passou mas que assim mesmo é chama... A Saudade, eu a sinto infinda, confidente. Que de longe me acena e me fascina e chama... Mágoa de todo o mundo e que tem toda gente: Uns sorrisos de mãe... uns sorrisos de dama... ..Um segredo de amor que se desfaz e mente... Quem não os teve? Quem? Quem não os teve e os ama? Olhos postos ao léu, altívagos, à toa, Quantas vezes tu mesmo, a cismar, de repente Te ficaste gozando uma saudade boa? Se vês que em teu passado uma saudade adeja, Faze que uma saudade a ti seja o presente! Faze que tua morte uma saudade seja! PAIXÃO E ARTE Ter Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem verso... O Verso é a Arte do Verbo o ritmo do som... Existe em toda a parte, ao léu da Vida, asperso E a Música o modula em gradações de tom... Blasfemador, ardente, amoroso ou perverso Quando a Paixão que o gera é Marília ou Manon... Mas é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso: Se o inspira o Ódio é mau, se o gera o Amor é bom... Diz a História Sagrada e a Tradição nos fala Dum amor inocente, (o mais alto destino): A Paixão de Jesus, o perdão a Madala. Homem, faze do Verso o teu culto pagão E canta a tua Dor e talha o alexandrino A quem te acostumou a ter Arte e Paixão. SETAS DO CÉU E são setas do céu (Ó sagitário!). Versos brotam de mim. Depois de lidos os distribuo por um destino vário, depondo em seus percursos meus sentidos. Exijo que eles sejam meu sudário. Reconheço-me: aqui os meus gemidos, e ali esse vulcão desnecessário, jogando lava em todos os sentidos. Que chegar de presenças! Que contágio! Que pajens anunciados e banidos! Nos bosques sugeridos que presságio! Perscruto-me nos verbos nunca ouvidos, apenas pressentidos ou passados. Ó bosque ermo de pássaros calados! NOMES LUMINARES Avistei-o através da treva em volta, rumo ao longínquo e ao próximo igualmente com seu galope e sua espada, e a escolta de cabelo incendiado, dele rente. Tudo foi hoje. O líquen cobre a mente, e o pórtico vedado ante a revolta. A corrosão dos olhos inda sente o clamor retumbando à última volta. Sagitários de flechas interiores urge dizer os nomes luminares: Lusbel, Lusbem, Lussom, Lusfer, Lusguia. Errante comunhão de encantadores possuem filtros, andam pelos ares fazem das aflições sua alegria. ESTRELA DE ABSINTO Se essa estrela de absinto desabar terei pena das águas sempre vivas porque um torpor virá do céu ao mar amortecer o pêndulo das vidas. Sob o livro da morte coisas idas já são as coisas deste mundo. No ar as vozes claras, tristes e exauridas. Há sombras ocultando a luz solar. Galopes surdos, cascos como goma. Viscosos seres, dedos de medusas contando silenciosos coisas nulas. Verdoengo e mole um ser estranho soma: Crânios como algas, vísceras confusas, massas embranquecidas de medulas. GUIA DOS GUIAS Em que distância de ontem te modulo, mundo de relativos compromissos? Novas larvas e germes em casulo, novos santos e monges e noviços. Não máscaras nos olhos. Nem simulo. Eu era pião, já vão evos mortiços naquele calendário agora nulo, com seus cerimoniais de escuros viços. Recordas-te do afim, teu rei colaço? Lembras-te dele em queda? Céus dos dias com luzeiros incêndios, lumes de aço. E tu, grande Lusbel, guia dos guias para reinar perdeste-me também a mim que fui o espelho em que te vias. DOR DO MUNDO Apenas eu te aceito, não te quero nem te amo, dor do mundo. Há honraria que nos abate como um punho fero mas aceitamos com sobrançaria. A um vate grego certo rei severo vazou-lhe os olhos para não fugir. Ó dor do mundo, eu vivo como Homero, aceito a provação que me surgir. Homero a tua história sinto-a; e urdo o teu destino, o meu e o de teu rei. Mas só teus olhos nossos passos guiam, e inda tens vozes para o mundo surdo, e luz para os outros cegos, luz que herdei com a aceitação dos olhos que não viam. OS POETAS Não procureis qualquer nexo naquilo que os poetas pronunciam acordados, pois eles vivem no âmbito intranqüilo em que se agitam seres ignorados. No meio de desertos habitados só eles é que entendem o sigilo dos que no mundo vivem sem asilo parecendo com eles renegados. Eles possuem, porém, milhões de antenas distribuídas por todos os seus poros aonde aportam do mundo suas penas. São os que gritam quando tudo cala, são os que vibram de si estranhos coros para a fala de Deus que é sua fala. TRIGO Ó poeta, mira esse trigal ardido em mágoa. Dos canteiros que tens feito as hastes inclinadas sobre o peito dão-te o aspecto de um deus encanecido. Ao mesmo tempo heróico e triste hás sido um anjo alegre e um diabo sem conceito. O trigo que plantaste, contrafeito é o pobre ázimo pão em que és cozido. Resta-te olhar os pássaros que do ermo voltam antes que o céu as sombras desça, ensombrando-lhes o último agasalho. Abre os olhos depois, ó deus enfermo: Talvez a noite enfim os umedeça ou lhes negue talvez o seu orvalho. SÃO FRANCISCOS Por esse ermo de tardes calcinadas houve em maio uma casa desvivida. Se andorinhas dormiam nas cumeadas só esvoaçavam na abóbada da ermida. Um santo ali vivia morta vida orando pelas casas habitadas. Sua casa, no entanto, era vivida na memória das coisas já passadas. Somente bichos langues basiliscos participam do pão que Deus lhes dá devorado por cobras e escorpiões. Pois ele é irmão dos sete São Franciscos: que o sétimo é ele próprio que ali está sob o acicate das flagelações. PRANTO SECO O que há sob essa máscara é um pranto seco, pranto final, sem lágrimas, calado. A pele ressecou-se em fruto peco, a fronte dolorida, o olhar parado. Não há saída mais para esse beco. Tudo perdido, tudo consumado. O que há sob essa máscara é um pranto seco, sem esponja de fel e último brado. As formigas subiram pela fronte e desceram ligeiras pelos cravos das patas ressequidas, pelas unhas... Cadáver seco em solitário monte, sem complacências e sem desagravos, sem madalenas e sem testemunhas. QUALQUER POEMA Vereis que o poema cresce independente e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas, algas e peixes lívidos sem dentes, veleiros mortos, coisas imprecisas, coisas neutras de aspecto suficiente a evocar afogados, Lúcias, Isas, Celidônias... Parai sombras e gentes! Que este poema é poema sem balizas. Mas que venham de vós perplexidades entre as noites e os dias, entre as vagas e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre... Qualquer poema é talvez essas metades: essas indecisões das coisas vagas que isso tudo lhe nutre sangue e ventre. OLHAR Eu sei que atrás do seu olhar havia um outro olhar como uma chama escrava: Sob o olhar de Raquel o olhar de Lia no pórtico das órbitas velava. Quando às vezes Raquel o olhar cravava em alguém ou a alguém Raquel seguia eram os olhos da irmã o que se via, era o olhar da pastora que ali estava. Debruça-se o pastor no olhar do filho. Que é que via nos olhos que fitava? Nos olhos bem-amados que é que via? Por certo de Raquel o estranho brilho. Mas atrás desse brilho bruxuleava o olhar de Lia, Lia, sempre Lia. CRIME Tudo estancara. Eu mesmo. Do alto vi-me: Um coração sangrava sobre as pedras. Vi afinal que um pobre ser abjeto um crime cometera. Reconheci-me. Clamei então: Meu Deus, meu Deus, parti-me, jogai o meu cadáver aos insetos, envolvei-me de cinza, ó Deus, feri-me os olhos para que eu me torne cego. E o Senhor Deus ungiu-me todo em cinza e mergulhou-me as órbitas em treva. Depois, ó Deus, chorastes sobre mim. E deste pobre rebotalho de Eva para Vossa grandeza renasci-me: Que à Vossa complacência não há crime. FOME Vinte séculos de revolução e inda há fome do pão que é a poesia. Quando tento saciá-la, tento em vão: é meu ritmo perene, noite e dia. Cristo, quero escutar Teu coração: pendo a cabeça e escuto-o. Essa agonia de fazer o poema, essa paixão, na Última Ceia começou. Seria, um de nós... um de nós era suspeito, um de nós entre os doze Te trairia. E sob o peso dessa suspeição, repousei a cabeça no Teu peito. E esse ritmo de vida que eu ouvia era o ritmo de fome deste pão. AIROSA ROSA E esta angústia de te recompor, traço a traço, tua boca dolorosa (fonte que se exauriu), teu rosto escasso, ó musa angelical e airosa rosa! Desfaz-se entre mim tua morte, em passo desvanecido e obscuro, a melodiosa dança. Afrouxa-se breve, breve o laço que nos prendia, ó musa e rosa airosa. Desvanecida frase e pensamento, ó lâmpada marinha, tênue vaga que te esvais! Onde pairas no momento em que procuro refazer-te, glosa, repetindo diante de mim a vaga presença angelical de oculta rosa? POETA DORMINDO Quando tu dormes vêm as albergálias (aves noturnas de impalpáveis genas), pousar nas tuas mãos atormentadas um viveiro de larvas epicenas. Descem contemplações anjo-animálias com seus cálices, vinhos e patenas, descem máscaras sempre renovadas mudando-te em ator de novas cenas. E papoulas enfeitam tua fronte, ó sacerdote de ignorado rito e de gozos com seres sem presença. Poeta dormindo, subterrânea fonte, quando gritas ninguém ouve esse grito que antecedeu teu grito de nascença. PEDRA O rochedo do sono é tão fechado, tão pedra de Esaú, tão existido, que ele cumpre na vida um grande fado, o de acolher um Édipo impunido. Sempre em seu bojo há um anjo adormecido e um menino num poço debruçado; o cão noturno late, e o seu latido é o grito do menino já afogado. À noite, barba-azul dormindo joga sete princesas pálidas no poço, e o poço voracíssimo as engole. E engole indiferente quem se afoga, sete pedras atadas ao pescoço que pedra e amor é o mesmo no seu gole. MORTE Virado para o Marão o avô morrido e o pai nesse Nordeste sepultado. Rio Lima e Mundaú. O filho nado, em limo e sal de mar sobrevivido. Nem da roda de fiar da avó, o ouvido conserva o som. Silêncio. O céu calado. Descobridor do oceano submergido, navegante de rio emparedado. Sôbolos rios e sôbolos oceanos, só uma sombra de nauta fragmentada no roteiro dos mares lusitanos. O restante é oceania naufragada: Cavernas de nau, âncoras e gáveas. Dessa vasa salobra a morte lave-as. MENINOS I Nas noites enluaradas cabeleiras das moças debruçadas, dos sobrados desciam como gatas borralheiras por sobre os nossos lábios descuidados. Beijávamos os cachos; das olheiras delas caíam prantos obstinados. Calmávamos com eles as fogueiras dos nossos próprios olhos assustados. Românticos demais. Nós os meninos urdíamos as tranças, e em seus braços ouvíamos suspiros desolados. Elas tinham soluços repentinos e nos acalentavam nos regaços. Ó meninos, ó noites, ó sobrados! MENINOS II Nas noites enluaradas as olheiras das donzelas suicidas dos sobrados iluminavam aves agoureiras e cães vadios tísicos e odiados. E também vinham claunes embriagados e sonâmbulas gatas borralheiras, sombras errantes, sombras forasteiras, rostos em cal e cinza transformados. Nós éramos meninos evadidos nas insônias das febres e das asmas, os olhos pelas noites acordados. Musas de infância ungiam meus sentidos. Eram musas infantes ou fantasmas? Ó meninos, ó noites, ó sobrados! LANTERNAS Era a noite dos círios. Percorria as ruas muita gente com lanternas. Tocavam e dançavam. Santa Iria veio de Santarém contra as paternas recomendações. Perguntei-lhe se ia ficar conosco. Súbito das ternas faces santificadas a magia divina transformou em sempiternas rosas as almas vãs, em corações algumas pedras, em jacintos as sujas taças de absinto das tavernas. E feitas todas as transformações, Santa Iria sorrindo se desfaz nas luzes variegadas das lanternas. UMA FLOR Era louco e era poeta o sepultado. Dei-lhe a rosa de cinzas: tinha tido pai no Nordeste e avô marão nevado. O novelo da avó em fio comprido ligado a outros avós. De monte nado, molhado de dois rios, foragido de relicário em ouro profanado. Tudo em luso e Nordeste havia sido. Que roteiro fiel sôbolos oceanos, que outra cosmoramia mais gajeira! Votado a D. Dinis foi trovador, escreveu cancioneiros transmontanos casou-se com uma ondina que era freira, certo é meu duplo; oferto-lhe uma flor. UMA ROSA As palavras são outras, mas a cena: a nuvem, o rochedo, o sol sem pino, a sombra amante, o mar, a praia amena, o cajado do pai são do menino. Só a medida unânime é pequena: a mão sobre o missal, o galo, o sino, o medo, a imperfeição, o verso e a pena, a mão sem paz contando o seu destino. E ali o esquife armado em crepes e osso, e a derradeira rosa a olhar inquieta fechar-se sobre si a urna lutuosa. Cavam ao lado. Cavam outro fosso. Irmão que vindes, se sois também poeta, eu tenho para vós inda uma rosa. CAVALOS Há cavalos noturnos: mel e fel. O cavalo que vai com Satanás e o cavalo que vai com São Miguel. O cavalo do santo vai atrás. E vai na frente a azêmola cruel. Mas vão os dois e cada qual com um ás. No cavalo da frente o atro anjo infiel com façanhas de guerra se compraz. São Miguel de la Mancha, D. Quixote, Garcia Lorca viu-te, vejo-te eu na luta igual com o ás da negação, arremeter com lança em riste e archote. E ao fim de tudo há um anjo que venceu: Tu, D. Quixote da Anunciação. ROSA AIROSA Devolve-me teu hálito, defunta companheira tombada nos joelhos do Senhor, companheira de mãos juntas e enfaixados os ombros e os artelhos. Um arcanjo augural teus lábios unta de bem-ungidos bálsamos vermelhos, mas não falas, não choras, não perguntas, não te miras nas fontes, nos espelhos. Presença angelical, formosa esquiva, fonte da eterna vida, origem e causa, rosa que desfolhada se reaviva. Nestes ermos, sem ti, ó rosa airosa é-me consolo te chamar sem pausa: ó lâmpada marinha, ó culta rosa. INVENÇÃO DE ORFEU, canto I A garupa da vaca era palustre e bela, uma penugem havia em seu queixo formoso; e na fronte lunada onde ardia uma estrela pairava um pensamento em constante repouso. Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela que do fundo do sonho eu às vezes esposo e confunde-se à noite à outra imagem daquela que ama me amamentou e jaz no último pouso. Escuto-lhe o mugido era o meu acalanto, e seu olhar tão doce inda sinto no meu: o seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios. Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto: semblante e leite, a vaca e a mulher que me deu o leite e a suavidade a mamar de dois seios. INVENÇÃO DE ORFEU, canto IV Nasce do suor da febre uma alimária que as horas certas volta pressurosa. Crio no jarro sempre alguma rosa. A besta rói a flor imaginária. Depois descreve em torno ao leito uma área de picadeiro em que galopa. Encare-a o meu espanto, vem a besta irosa e desbasta-me o juízo em sua grosa. Depois repousa as patas em meu peito e me oprime com fé obsidional. Torno-me exangue e mártir no meu leito, repito-lhe o que sou, que sou mortal. E ela me diz que invento esse delírio; e planta-se no jarro e nasce em lírio. INVENÇÃO DE ORFEU, canto V Dos porões vem um cheiro à maresia mesclado a odor de ratos e de charque. Verde náusea essa nau que pressagia males a quem embarque ou desembarque. Silenciosa sem que ninguém a marque percorre ancoradouros erradia; e é avisado o comércio que açambarque a carga apenas escureça o dia. Ela parece morta nos cais sujos que lhe povoam o casco de gusanos e a emporcalham com o limo de seus ralos. E ninguém sabe se essas velas, cujos marinheiros corvejam os oceanos, vieram trazer escravos ou levá-los. INVENÇÃO DE ORFEU, canto VII No centro um tribunal. Eu me recordo que havia em meio a ilha um tribunal. E por mais que me esforce afastar tal recordação, revejo o tribunal. Levaram-me a ele. Fui. Eu me recordo. Em torno havia um círculo fatal. Os olhos em redor. E tudo igual. Igual circunferência: o bem e o mal. Ilha e tribunal; e eu, ali, no meio e os olhos em redor. Eu me recordo. No centro o tribunal. Ergui-me e olhei-o. E olhou-me o tribunal em seu rebordo de olhares sobre mim, sobre os meus erros: E tudo em círculo entre o bem e o mal. INVENÇÃO DE ORFEU, canto VII Interroga-me o Rei. E eu em voz gasta: Minha mão artesã pertence à lei, e com ela registrei nas colunatas: Ó inatingível céu, enfim cansei. Fiquei então ao alto, nesses frisos. (Eis um pastor oculto me rondando.) Meu ânimo querido dos estilos olhava do alto o chão e o pastor, quando a vida era contínua; e as sombras n'água tremiam o reflexo das ruínas. Decidi-me de cima desabar-me. E desabando-me eis que ainda escutei aquela voz tão grave e tão divina: fui teu céu; e teu chão sempre serei. ERA O OLVIDO Com o olvido vão as andorinhas (quando outra voz como a sombra move sua distância desfolhada em neve) as torres da alma, peregrinas. Pairam sobre os ventos como ruínas; e avidamente a soluçar se atreve esta faixa de névoa, que tão breve, morre e nasce em ti, se em mim te inclinas. Já não querem o olvido nem sua pista; nem seus muros de ausentes mariposas errando como dunas ou faísca. Nem sequer seu antigo labirinto, que em ti minha vida acaba entre as cousas por um lírio arroxeado e um jacinto.
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |