O SONETO MACABRO

A tentação necrófila perpassa, como um calafrio pela espinha, nossa poesia em todas as fases, seja com explícita intenção sexual, seja devida ao simples fascínio despertado pelos símbolos mortuários. Seleciono aqui, como um punhado de ossos exumados, alguns restos vitais dessa temática que varia do fúnebre ao lúgubre, passando pelo lúbrico. [GM] MORTO VIVO [Afonso Celso] Mais pavoroso fado Não sonha a fantasia; Por morto ser tomado Alguém que inda vivia; Sentindo-se gelado Do susto na agonia, No féretro pregado Baixar à terra fria! Mas oh! inda é mais triste (Porém eu sou altivo, Não peço compaixão!) Sentir que o corpo existe Mas é sepulcro vivo De um morto coração. SONETO PREMONITÓRIO [Alphonsus de Guimaraens Filho] Sobre este plano, liso chão, me deito à maneira dos mortos. Que arrepio... Que sensação estranha de outro frio, como uma unha, me escalavra o peito... Me deito aqui, no liso chão, e espreito... Guardam as coisas, que do chão espio crescerem para mim, num desafio, não sei que grave gesto insatisfeito... Tanto me habituei a estar comigo que ir-me embora de mim me causa pena. No liso chão deitado o corpo sente um sossego de estar — de estar somente — coisa que à grande inércia se condena, pedra, talvez, de algum túmulo antigo... SONETO MAL-ASSOMBRADO [Amadeu Amaral] Minha alma é uma casa abandonada, por cujos tenebrosos corredores volteia a ronda volatilizada dos espectros de mortos moradores. Um dia esta mansão mal-assombrada, afugentando a treva e seus horrores, entraste, — alegre aparição alada, — num explodir de claridade e olores; mas de pronto fugiste, e hoje, silente, esconde a velha casa à luz do dia as mesmas sombras, que volteiam juntas. Ah! Terei de guardar eternamente na solidão desta alma escura e fria estas saudades de ilusões defuntas! SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO [Augusto dos Anjos] Para desvirginar o labirinto Do velho e metafísico Mistério, Comi meus olhos crus no cemitério, Numa antropofagia de faminto! A digestão desse manjar funéreo Tornado sangue transformou-me o instinto De humanas impressões visuais que eu sinto, Nas divinas visões do íncola etéreo! Vestido de hidrogênio incandescente, Vaguei um século, improficuamente, Pelas monotonias siderais... Subi talvez às máximas alturas, Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras, É necessário que inda eu suba mais! FABÍOLA [Castro Alves] Como teu riso dói... como na treva Os lêmures respondem no infinito: Tens o aspecto do pássaro maldito, Que em sânie de cadáveres se ceva! Filha da noite! A ventania leva Um soluço de amor pungente, aflito... Fabíola! É teu nome!... Escuta... é um grito, Que lacerante para os céus s'eleva!... E tu folgas, Bacante dos amores, E a orgia, que a mantilha te arregaça, Enche a noite de horror, de mais horrores... É sangue, que referve-te na taça! É sangue, que borrifa-te estas flores! E este sangue é meu sangue... é meu... Desgraça! MÚMIA [Cruz e Souza] Múmia de sangue e lama e terra e treva, podridão feita deusa de granito, que surges dos mistérios do Infinito amamentada na lascívia de Eva. Tua boca voraz se farta e ceva na carne e espalhas o terror maldito, o grito humano, o doloroso grito que um vento estranho para os limbos leva. Báratros, criptas, dédalos atrozes escancaram-se aos tétricos, ferozes uivos tremendos com luxúria e cio... Ris a punhais de frígidos sarcasmos e deve dar congélidos espasmos o teu beijo de pedra horrendo e frio!... MARCHA FÚNEBRE (II) [Emílio de Meneses] Esvaziaram de todo a cova em que dormiste O sono a que ainda tens a tu'alma sujeita, E vem dela o som cavo, o monótono e triste, Vão queixume da terra em lágrimas desfeita. Sinto distintamente! Esse queixume existe: É a saudade da terra aos teus ossos afeita; É o soluço que vem da cova em que dormiste O sono a que ainda tens a tu'alma sujeita. Há por tudo o rumor de um choro desolado; Cantam chorosamente as árvores e os fossos; Nossas almas lá vão, unidas lado a lado... Espalharam à noite os teus brancos destroços E a noite, na viuvez do teu perfil amado, Verte funereamente o luar sobre os teus ossos!... NOTURNO [Francisca Júlia] Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo Se arrasta em direção ao negro cemitério... À frente, um vulto agita a caçoula do incenso. E o cortejo caminha. Os cantos do saltério Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso; Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço; Chora no ar o rumor de um misticismo aéreo. Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha Da noite se ilumina ao resplendor da lua... Uma estrige soluça; a folhagem farfalha. E enquanto paira no ar esse rumor das calmas Noites, acima dele, em silêncio, flutua O lausperene mudo e súplice das almas. IRONIA DO MAR [Gilka Machado] Soa um grito de dor... e o detono de uma onda, Como uma salva, atroa e repercute, pelos Longes do ar... De onde veio a voz o ouvido sonda E, em vão, busco escutar do náufrago os apelos. E o truculento Mar sinistramente estronda, Ruge, regouga, rola, espuma, em rodopelos, E, talvez, porque, agora, almo tesouro esconda, Cada vez mais feroz se arrepia de zelos. Para a presa reter, muralhas de esmeralda Ergue, e, num riso atroz de realizado gozo, Veste-a de rendas mil, de flores a ingrinalda; Move a cabeça informe, as longas cãs balança, E, alçando a larga mão, num gesto vitorioso, Mostra, cinicamente, um cadáver de criança. CONTO TÉTRICO [Glauco Mattoso] Enorme e abandonado, o casarão rumores de assombrado já desperta! Tesouro esconderá também, na certa! À noite aventurar muitos lá vão. Armado de garrucha e mosquetão, um padre ali pernoita e põe-se alerta. Ulula o vento, range a porta aberta; em cada fresta espreita a aparição! Tomado de pavor, o padre brada "Em nome do Senhor! Quem vem aí?", enquanto ecoam passos pela escada. Caipora, corpo-seco, ogre ou saci... O que o matou? Versão desencontrada... Dos sustos cada um cuide por si... SONETO 579 HORRORIZADO [Glauco Mattoso] À noite a rua é calma, e em cada porta a tranca está passada. Algo se esgueira no escuro e, inda que humana alguém crer queira, aquela criatura estranha é morta! O corpo é descarnado; a espinha é torta; os pés são lodo; o rosto é uma caveira! Exala em torno o odor de podriqueira e seu roufenho arfar o ar mudo corta. Num quarto, o penitente mortifica o espírito e castigo aos céus implora: renega a vida mórbida e impudica. Ouve que a porta raspa a mão por fora. Hesita, e por fim abre; o monstro estica o braço, o agarra e os olhos lhe devora! CONFUSÃO [Gregório de Matos] Na confusão do mais horrendo dia, Painel da noite em tempestade brava, O fogo com o ar se embaraçava Da terra e água o ser se confundia. Bramava o mar, o vento embravecia Em noite o dia enfim se equivocava, E com estrondo horrível, que assombrava, A terra se abalava e estremecia. Lá desde o alto aos côncavos rochedos, Cá desde o centro aos altos obeliscos Houve temor nas nuvens, e penedos. Pois dava o Céu ameaçando riscos Com assombros, com pasmos, e com medos Relâmpagos, trovões, raios, coriscos. NOITE DE SÃO JOÃO [Guimarães Júnior] Noite de S. João! Quantas legendas Na terra espalhas! Noite imensa e bela! Quereis senti-la bem e compreendê-la? Ide aos campos do Sul, ide às fazendas. Do céu nas alvas e orvalhadas rendas, Favorita de Deus, nua resvela A lua cheia... É sua noite aquela! E das bruxas também, dizem legendas. Eu, livre pensador, de grave siso, Eu, que me ria dessas frioleiras, Depois que vi, ó flor do Paraíso, Brilhar à luz vermelha das fogueiras Teu divino semblante num sorriso, Creio em feitiços, creio em feiticeiras. A CORUJA [Gustavo Teixeira] Em uma noite de luar funéreo Em que os ventos dobravam a finados, Eu fui chorar no velho cemitério Por aquela que tanto havia amado! Buscava, da saudade sob o império, Sobre o sepulcro branco debruçado, Desvendar do Além Túmulo o mistério, Saber se a vida existe do outro lado. Eu chorava... De súbito, elevou-se Uma voz que gelava qual se fosse O chocalhar de uns ossos de esqueleto! Era uma estrige, o negro mocho infando Que repetia, sobre as campas voando, O sombrio monólogo de Hamleto... LIÇÃO ERRADA [Henrique Castriciano] ..E o sábio disse: "Meus senhores, esta Mulher que vemos sobre a laje fria, Foi como a noite vinda após um dia De cerração, num ermo de floresta. Seus olhos verdes como a verde giesta, Tinham brilhos de fúnebre ardentia, Fosforescentes como a pedraria De um colar de Princesa em régia festa. Não teve coração!" — E, nisto, o sábio Rasgou-lhe o seio e... recuou... Seu lábio Contraiu-se num gesto estranho e lento... No peito havia um coração partido Morto de amor, de lágrimas ungido, E lacerado pelo sofrimento! ANSEIOS [J. G. de Araújo Jorge] Água eu quisera ser, — pela alegria de te dar a beber meu próprio ser, por tua sede, que eu não mataria, — para molhar teus lábios por prazer... Vento eu quisera ser, — e à noite, iria adormecida, te surpreender ressonando em teu leito, e então seria o ar que precisas pra poder viver! Fogo eu quisera ser, — e em rubras chamas num delírio de amor, toda, abrasar-te, para ter a certeza de que me amas... Depois, para possuir-te, de verdade, terra eu quisera ser!... E disputar-te ciumento, à morte, pela eternidade! PRANTO SECO [Jorge de Lima] O que há sob essa máscara é um pranto seco, pranto final, sem lágrimas, calado. A pele ressecou-se em fruto peco, a fronte dolorida, o olhar parado. Não há saída mais para esse beco. Tudo perdido, tudo consumado. O que há sob essa máscara é um pranto seco, sem esponja de fel e último brado. As formigas subiram pela fronte e desceram ligeiras pelos cravos das patas ressequidas, pelas unhas... Cadáver seco em solitário monte, sem complacências e sem desagravos, sem madalenas e sem testemunhas. DESENGANO [Judas Isgorogota] Quando na tarde do terceiro dia Aquela sua febre sobreveio; E mais aquele frio e aquele anseio Que a alma saudosa e pura lhe pungia; E aquela tosse a abalançar-lhe o seio E mais aquela gosma que cuspia; A sua destra, estranhamente fria, Buscou a mão de alguém, que lhe não veio. E ela que estava imensa dor sentindo, Vendo-a crispada para o céu, sorrindo, Num riso amargo disse-lhe, à asquerosa Mão, que inda agora uma ilusão procura: " — Vai tu sozinha para a desventura, Ó miserável mão tuberculosa! NÓS DOIS [Judas Isgorogota] Dois túmulos, nós dois... Ambos, ao peito, Sob a insondável lápide marmórea, Temos sepulta a interrompida história De um desfortúnio mais do que perfeito. A nossa vida é um campo santo feito Somente para nós e para a inglória Mágoa que sinto, a mágoa intransitória Que te traz abatida desse jeito. Pena é que esse mistério que nos cinge Force a vivermos ambos, lado a lado, Como uma esfinge junto de outra esfinge... Sem que eu saiba o porquê de teu cuidado, Sem que saibas que é em ti que se restringe O meu silêncio de desventurado... A COVA [Luís Delfino] Faz mais larga essa cova, estúpido coveiro; Pois não vês que são dois buscando o mesmo leito? É preciso que caiba um longo travesseiro, Para dormirem face a face, peito a peito. Virei deitar-me em tempo: hoje não, não me deito Sem que nos braços meus a carregue primeiro: Quero cobri-la bem, pôr-lhe o tronco direito; Que é muito longo sempre o sono derradeiro. Guarda do cemitério, o jardineiro aí fica, Quero roseiras só, quero muitas roseiras; Que ardam rosas em que seu corpo multiplica. Que os pássaros aqui cantem horas inteiras: Que esta leiva, em que está da terra a flor mais rica, Seja o teu ninho, amor, quando um ninho, amor, queiras. TERROR [Luís Delfino] Quando vejo o teu corpo doentio Tremer, como haste branda a vento forte, Amortalha-me um hirto calafrio, Como se me tocasse a asa da morte. Um pensamento lôbrego e sombrio De alguém, que o doce e tênue fio corte De tua vida, assalta-me; mas rio, Pensando que hei de ter a mesma sorte. Tu não podes descer à sepultura, Sem que leves as horas de ventura, Que em ti achou minha alma, um vasto arneiro. Em teu trespasse, pois, quando tu fores, Morram os sóis no céu, no campo as flores... E, olha, espera, até logo, eu vou primeiro... AO PASSAR DE UM ATAÚDE [Luís Delfino] Viu Helena o ataúde, que passava, Levando os restos duma forma humana; Pois o tempo, que a cria, inda a profana... E o eco da dor nas faces lhe ficava. Quando se morre, o verme não se engana, E os mesmos dentes roedores crava Nas carnes frias de uma humilde escrava, Ou nas carnes da altiva soberana. Dos longos cílios de oiro rorejados, Glóbulos trêmulos, meio pendurados Nadam na luz, que nos seus olhos brilha! Mas que grandeza vai nesse abandono! Helena tudo vê de sobre um trono, Formosa, augusta e triste, à maravilha... MORS-AMOR [Mansueto Bernardi] Quisera ser o teu caixão, rainha! Abrir-me, receber-te e, após, fechado, Guardar numa eça, a glória, linha a linha, Do teu divino corpo amortalhado. E em meio à pompa do ritual sagrado, Eu, tronco vil de condição mesquinha, Contigo celebrar o meu noivado... Saber-te minha, inteiramente minha! Sentir-te! Amar-te sempre! E, face a face, Que o nosso estranho amor, fria consorte, Onde tudo termina, principiasse! E, ó volúpia sem fim! No último abrigo, Na quieta alcova conjugal da morte, A pouco e pouco me fundir contigo! A UMA CAVEIRA [Manuel Botelho de Oliveira] Esta, que vês Caveira pavorosa! este, que vês assombro denegrido! este que vês retrato carcomido! esta que vês pintura dolorosa! Esta que vês batalha temerosa! este que vês triunfo repetido! este que vês Castelo destruído! esta que vês Tragédia lastimosa! Esta enfim te apregoa a desventura com o mudo pregão de teus enganos pera buscar a vida mais segura: Se olhos não tem, nem língua em breves anos, nesta cegueira vês tanta loucura, ouves neste silêncio os desenganos. OS OLHOS DA MORTE [Martins Fontes] A impressão já guardaste, de estranheza, Já tiveste a memória da agonia, Vendo uma luz qualquer, durante o dia, Que, às vezes, fica, por descuido, acesa? Causa-nos mal-estar, dando surpresa, Uma alâmpada, a arder, serena e fria: Enquanto o sol fortíssimo irradia, Mete medo esse olhar, pela tristeza. O ouro é fúnebre e fosco. Sem viveza, A imóvel chama esbate-se, e, sombria, Vela de crepe a imagem da beleza. Fogo-fátuo que as campas alumia, Essa impassível, gélida clareza, Vem dos olhos da Morte: ela vigia. ÁRIA DO TRISTE [Murilo Araújo] Sombra. Apagou-se a luz dos candelabros... Medo... Os cães choram, lúgubres, nas quintas. Sombra, e na sombra eu penso em descalabros, Naufrágios, cinzas de visões extintas. Penso em formas informes, indistintas, Vultos defuntos lívidos e glabros Ah! as Ânsias choram como cães, famintas; E a Alegria apagou seus candelabros! Quando se irão as trevas que aprofundo? Quando emudecerão meus cães macabros? Quando meus risos alvorecerão? Ah! só quando me vier o "sono-fundo"... ..E acenderão a luz dos candelabros... E os círios de ouro resplandecerão! EXUMAÇÃO [Nelo Assunção] Quando me vires num caixão dourado, Lentamente a caminho do jazigo, Hás de dizer chorando, assim contigo: — "Aí vai o corpo do meu bem amado". Quando em visita ao derradeiro abrigo, Onde estarei, por certo descansado, Reza a Deus à lembrança do passado, Que antecipadamente eu te bendigo. Depois de muitos anos, exumado, Hão de voltar um dia ao desabrigo Os restos do infeliz abandonado. Nesse dia, verás, como castigo, Surgir destes meus ossos, abraçado, O teu retrato, que levei comigo. CASA MAL-ASSOMBRADA [Nelson de Araújo Lima] Muito longe da vila, entre o mato bravio Que cresce e se entrelaça e surge em cada fenda, Dormita silencioso o casarão sombrio... — Velho e austero solar de uma antiga fazenda... Dizem que quando o luar tece, em sombras a renda, Que se espalha no pátio e se espelha no rio, Rangem portas lá dentro e figuras de lenda Vagam pelos desvãos desse prédio vazio! Quando, às vezes, defronto esse túmulo avoengo E, evocando o passado, em meus olhos detenho Todo o antigo esplendor do rincão solarengo, Em fatais sugestões, nessas horas incertas, Ouço escravos gemer na água clara do engenho E correntes rolar pelas salas desertas!... ASSOMBRAÇÃO [Olavo Bilac] Conheço um coração, tapera escura, Casa assombrada, onde andam penitentes Sombras e ecos de amor, e em que perdura A saudade, presença dos ausentes. Evadidos da paz da sepultura, Num tatalar de tíbias e de dentes, Revivem os fantasmas da ternura, Arrastando sudários e correntes. Rangem os gonzos no bater das portas, E os corredores enchem-se de prantos... Um mundo de avejões do chão se eleva, Ressuscitado pelas horas mortas: Frios abraços gemem pelos cantos, Beijos defuntos fogem pela treva. RUÍNAS [Pethion de Villar] Entrei no velho templo: escombros, ruinarias! Necrópole de pedra — a nave. Espedaçados Nichos, a hera enrolando as pilastras sombrias, Troços de cruz, no chão altares derrocados. Fendidas de alto a baixo as vastas arcarias, Fustes sem pedestais, púlpitos derribados; Ainda sustida a torre aberta às ventanias, Milagres de equilíbrio em muros inclinados. Soturna e funeral, na abóbada sonora, Somente a voz do vento a gemer uns assombros, Dentro daquela igreja ameaçadora e vedra, Como a Alma do Mistério ali guardado outrora, Ainda a viver, saudosa, agarrada aos escombros Até que se esboroe a derradeira pedra! PESADELO [Raimundo Correia] Penetro a estância fúnebre e sombria, Extremo leito da mulher amada; E ergo a loisa que a cobre — despojada De toda a graça ideal que a revestia: Da beleza, onde um casto amor sorria, Pudica e doce, nada resta, nada! Nua de carnes, só a branca ossada, Que apalpo e sinto fria, fria, fria... E, o sono seu eterno interrompendo, Clamo... Da noite o vento álgido corta, Cai neve e é gélido o esplendor da lua... Então, a erguer-se, pávida, tremendo De frio e com pudor, me diz a "morta": "Cobre-me! Há tanto frio e estou tão nua!" ILUMINURA CRISTÃ (a Luiz Carlos) [Theoderick de Almeida] O homem de preto, que me parecia O Rei Peste de Poe, teologalmente, Acendeu na capela da abadia, Na ara mais alta, o círio penitente. À sua luz, a nave, então sombria, Ardeu do teto ao piso, de repente; A sombra do meu corpo, Ave Maria! Recordava um demônio, à minha frente. Encheu-se de fantasmas a capela: Os santos reviveram de alma acesa À labareda que extinguia a vela. E rezei pelo Artista — Deus sem nome, Que à luz da idéia, na ara da beleza, Como um círio de cera se consome. NINHO ABANDONADO [Ulisses Lins de Albuquerque] Que és hoje, peito meu? — Casa vazia, Onde no entanto, as ilusões, outrora, Ofertavam-me o vinho da Poesia, Embalando-me aos cânticos da aurora. Mas — por culpa, de quem? Nem sei! — um dia, Todas, bailando, a rir, foram-se embora; E desde então, na angústia que a excrucia, Minha alma — esta alma de criança — chora. E nunca mais um riso, um canto, um hino, Foi quebrar o silêncio impressionante Do ninho abandonado ao seu destino. Apenas, alta noite, às gargalhadas, Dele em redor, o vento frio, uivante, Lembra um triste clamor de almas penadas. UMA LEMBRANÇA [Úrsula Garcia] Eu quis levá-la ao cemitério, um dia, Mas em casa disseram: "Tão criança!" "É tão longe!... É tão triste!..." Eu insistia: — Não sabe o que é tristeza, ela, e nem cansa! A manhã é tão linda! O sol radia, O ar é tão puro, a brisa fresca e mansa... É um passeio ao campo. Não faria Mal algum visitar quem lá descansa... E eu pensava: — É melhor ir caminhando Com seus pezinhos, rindo, conversando, Voltar da cor das rosas que levou... Não foi comigo... Mas lá foi levada Numa manhã de sol... — muda, gelada, Lívida, inerte... E nunca mais voltou.
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Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes