|| | ||S|| | ||O|| | ||N|| | ||E|| | ||T|| | ||Á|| | ||R|| | ||I|| | ||O|| | ||||| | ||||| | ||||| | || |
Gilka da Costa de Melo Machado (Rio de Janeiro RJ 1893-1980)
Com a paulista Francisca Júlia e a potiguar Auta de Souza forma o grande
trio feminino do pré-modernismo. Se Francisca é a mais social e Auta a
mais espiritual, Gilka é certamente a mais carnal das três. Coincidindo
com a Semana de 22, seu livro MULHER NUA ao mesmo tempo reafirmou o
soneto (revigorando a estética simbolista que já se esgotava) e
escandalizou na temática que, para os padrões da época, ainda parecia
licenciosa demais para não ser assinada por um homem. É dessa fase que
seleciono os sonetos abaixo:
ANALOGIA Amo o Inverno assim triste, assim sombrio, lembrando alguém que já não sabe amar; e sempre, quando o sinto e quando o espio, julgo-te eterizado, esparso no ar. Afoita, a alma do Inverno desafio, para inda te querer e te pensar... para gozá-lo e gozar-te, que arrepio!... que semelhança em ambos singular!... Loucura pertinaz do meu anelo: emprestar-te, emprestar-lhe uma emoção, pelo mal de perder-te querer tê-lo... Amor! Inverno! Minha aspiração! quem me dera resfriar-me no teu gelo! quem me dera aquecer-te em meu verão!... OLHOS NUNS OLHOS De onde vêm, aonde vão teus olhos, criança, tão cansados assim de caminhar? dessa tua existência nova e mansa como pode provir um tal pesar? A alma de fantasia não se cansa! nunca existiu tristeza nesse olhar; é que a minha mortal desesperança te olha e nos olhos teus vai se espelhar. Com toda a vista em tua vista presa, penso: uma dor tão dolorosa assim só há na minha interna profundeza... Não me olhes mais, formoso querubim! que vejo nos teus olhos a tristeza dos meus olhos olhando para mim. NO CAVALO Belo e heróico, agitando as veludosas crinas, meu árdego animal, tens a sofreguidão do infinito o infinito haures pelas narinas e, sem asas obter, buscas fugir do chão. Domino-te; entretanto, és tu que me dominas. É um desejo que espera a humana direção a tua alma, e, transpondo os valos e as campinas, meu sentimento e o teu se compreendendo vão. Amas o movimento, o perigo, as distâncias; meigo, sentimental, tens arrojadas ânsias, em tuas veias corre um férvido calor. Quando em teu corpo forte o frágil corpo aprumo eu me sinto disposta a lançar-me, sem rumo, às conquistas da Glória e às conquistas do Amor! FELINA (à minha gata) Minha animada boa de veludo, minha serpente de frouxel, estranha, com que interesse as volições te estudo! com que amor minha vista te acompanha! Tens muito de mulher, nesse teu mudo, lírico ideal que a vida te emaranha, pois meu ser interior vejo desnudo se te investigo a mansuetude e a sanha. Expões, a um tempo langorosa e arisca, sutilezas à mão que te acarinha, garras à mão que a te magoar se arrisca. Guardas, ó tato corporificado! a alta ternura e a cólera daninha do meu amor que exige ser amado! TRISTEZA O prazer nos embriaga, a dor nos alucina; só tu és a verdade e és a razão, Tristeza! flor emotiva, rosa esplêndida e ferina, noute da alma, fulgindo, em astros mil acesa. Não te amedronta o mal, o bem te não fascina, és o riso truncado e a lágrima represa; posta entre o gozo e a dor satânica e divina moves eternamente um pêndulo a incerteza. Etérea sedução das longas horas mortas, horas de treva e luz; mistério do sol-posto; mal que não sabes doer e bem que não confortas... Trago dentro de mim, desde que me acompanhas, um veneno de mel, um mortífero gosto, um desgosto em que gosto alegrias estranhas. TRISTEZA (II) Tristeza no langor das lentas melodias, no lirismo do mel que afaga o paladar, nos perfumes sutis, nas carícias macias, na espasmódica luz da hora crepuscular... Tristeza universal, que de tudo me espias, desde quando alonguei pela existência o olhar; tristeza que apagaste as louras ardentias das fortes emoções que eu sonhara expressar. Vindo tenhas, talvez, para encher os meus dias, das distâncias do céu, das distâncias do mar... se magoas não sei, não sei se delicias. Sei que de há muito morro a te sentir e amar, sei que me vivo em ti, Tristeza, e as alegrias hoje apenas me dão vontade de chorar. ESCUTANDO-ME Nas horas de trevor, quando, erma, a Terra dorme, dos longes de mim mesma, em súplicas, se eleva uma voz que parece a de um ser multiforme, que vem da minha treva e vai morrer na treva. Esta múltipla voz, esta voz triste e enorme, voz que minha não é por tão funda e longeva, a vibrar, sem que o tempo a enfraqueça ou transforme, os sentidos me exalta, amotina, subleva. É a tumultuária voz de velhos mortos seres renascidos em mim, voz de anteriores vozes, de vidas que vivi nas penas mais atrozes!... Quem poderá calar a multidão aflita que, sempre, em minha calma e em meus silêncios grita: Deus, Senhor, onde estão da existência os prazeres?!... MISÉRIA Miséria minha íntima riqueza, neste viver lentíssimo e enfadonho! imortal estatuária da beleza dos versos dolorosos que componho! Cedo, teu vulto, de lirial esguieza, olhei, de minha mãe no olhar tristonho; e nem supunha, àquele seio presa que eras tu que aleitavas o meu sonho!... Deste-me, em ouro que se não consome, ao espírito quanto me extorquiste ao corpo, ó pão ideal da minha fome! Faças-me a alma robusta e a forma etérea, amo-te assim minha opulência triste, minha faustosa e imácula miséria! REFLEXÕES Homem! um dia para mim partiste, colhendo-me no horror da plenitude de uma penúria em que eu medrava, triste, qual flor de neve em meio a erma palude. Desde então, com prazer, sempre, seguiste os desfolhos da minha juventude; e o tempo faz que para mim se enriste melhor teu trato cada vez mais rude. Se fiel a ti o corpo meu persiste, a alma idealiza o amor, sonha-o, se ilude... guardes-me, embora, de perfídia em riste! À pertinácia do teu trato rude, o amor se fez minha virtude triste e meu pecado cheio de virtude! REFLEXÕES (II) Se de maldades anda a vida cheia, duas virtudes pairam sobre a Terra: uma tudo que tem aos mais descerra, outra tudo que tem na alma refreia. Esta semelha uma enoutada serra; aquela é uma planície à Lua-cheia, e se uma de si mesma vive alheia, a outra sofre o pavor do quanto encerra. Do Bem seguem as duas pela trilha: esta lutando, num esforço rude, aquela em gozo ideal que a maravilha. Se ambas iguais parecem na existência, chama-se uma inconsciência da Virtude, chama-se outra Virtude da consciência. REFLEXÕES (III) Na soturna mudez dos meus infaustos dias dentro em mim, sem que alguém os possa divisar, há um anjo que abençoa as minhas agonias e um demônio que ri do meu grande pesar. Um me ordena a tortura, e fala em fugidias delícias, e ergue aos céus o austero e frio olhar; o outro tem seduções, risos, frases macias e açula-me a um prazer bem fácil de alcançar. Dous poderes rivais se defrontam em mim; como atender, porém, a esse duplo comando? um dos dous (qual dos dous?) deve triunfar por fim? Minha vontade hesita, é a um pêndulo igual, e eu morro, lentamente, oscilando... oscilando... entre as dores do Bem e as delícias do Mal. REFLEXÕES (IV) Eu sinto que nasci para o pecado, se é pecado, na Terra, amar o Amor; anseios me atravessam, lado a lado, numa ternura que não posso expor. Filha de um louco amor desventurado, trago nas veias lírico fervor, e, se meus dias a abstinência hei dado, amei como ninguém pode supor. Fiz do silêncio meu constante brado, e ao que quero costumo sempre opor o que devo, no rumo que hei traçado. Será maior meu gozo ou minha dor, ante a alegria de não ter pecado e a mágoa da renúncia deste amor?!... REFLEXÕES (V) Busco fora de mim o que existe somente em mim; sempre serei a solitária flor que, da infausta existência esquecida, inconsciente, varia na embriaguez febril do próprio odor. Distribui-se meu ser de tal modo no ambiente, que chego a uma alma irmã perto de mim supor; sinto comigo, alguém, longe de toda gente, e as multidões me dão da soledade o horror. O que anseio é só meu, só no meu ser existe, e por isso me fiz muito triste, assim triste, no sonho de afeição que me é dado compor... Procuro-me a mim mesma, em meus longes perdida, sem poder encontrar, dentro de estranha vida, um amor, outro amor, para o meu louco amor!... REFLEXÕES (VI) Ó meu santo pecado, ó pecadora virtude minha! ó minha hesitação! bem diferente esta existência fora, ermo de ti tão frágil coração!... Se ora és sensualidade cantadora, instinto vivo, alegre volição, logo és consciência calma, pensadora, silenciosa tortura da razão. Contudo, eu te bendigo, eu te bendigo, ó dúbio sentimento, que comigo vives, minha agonia e meu prazer! Quanto lourel minha existência junca, por ti, pecado, que não foste nunca, por ti, virtude, que ainda sabes ser! REFLEXÕES (VII) Meu espírito eterno insatisfeito inútil teu esforço de pureza! hoje, que obténs das multidões, o pleito, do que nunca é maior tua tristeza. Ante o teu sonho consumado, esfeito, notas, cheio da máxima surpresa, que, na ânsia de ser grande, ser perfeito, mentiste a Deus, mentiste à natureza. A ti mesma mentiste, e, merencória e humilde, Alma, contemplas estas flores que se vêm de esfolhar por tua glória. Sofres, os olhos te transbordam de água!... doem mais do que injúrias os louvores por um bem que se fez cheia de mágoa. REFLEXÕES (VIII) Ouve, minh'alma, e pensa muito, pensa: nossa pobre existência já se evade, cheia de tédio, cheia de descrença, sem que leve sequer uma saudade. Olham-me com a friez da indiferença esses por quem, repleta de piedade, trocaste outrora uma ventura imensa pelo atroz desespero que me invade! Regressa ao teu Amor, goza um momento, que o momento de amor que a vida goza mais do que a eternidade é longo e lento. Ante o pequeno bem de almas tão frias, porque te não sustaste, alma piedosa, com remorso do mal que nos fazias?!... REFLEXÕES (IX) Amei o Amor, ansiei o Amor, sonhei-o uma vez, outra vez (sonhos insanos!)... e desespero haja maior não creio que o da esperança dos primeiros anos. Guardo nas mãos, nos lábios, guardo em meio do meu silêncio, aquém de olhos profanos, carícias virgens, para quem não veio e não virá saber dos meus arcanos. Desilusão tristíssima, de cada momento, infausta e imerecida sorte de ansiar o Amor e nunca ser amada! Meu beijo intenso e meu abraço forte, com que pesar penetrareis o Nada, levando tanta vida para a Morte!... IRONIA DO MAR Soa um grito de dor... e o detono de uma onda, Como uma salva, atroa e repercute, pelos Longes do ar... De onde veio a voz o ouvido sonda E, em vão, busco escutar do náufrago os apelos. E o truculento Mar sinistramente estronda, Ruge, regouga, rola, espuma, em rodopelos, E, talvez, porque, agora, almo tesouro esconda, Cada vez mais feroz se arrepia de zelos. Para a presa reter, muralhas de esmeralda Ergue, e, num riso atroz de realizado gozo, Veste-a de rendas mil, de flores a ingrinalda; Move a cabeça informe, as longas cãs balança, E, alçando a larga mão, num gesto vitorioso, Mostra, cinicamente, um cadáver de criança.
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |