|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Olegário Mariano Carneiro da Cunha (Recife PE 1889-1958)

Políticos e tabeliães raramente dão bons poetas (embora o puxa-saquismo os coloque, de vez em quando, numa academia), mas neste caso temos um notório notário que, além de político, foi poeta popular graças ao sentimental lirismo que o situa sem rigidez entre o parnasianismo e o simbolismo. Se há quem diga que sou poeta dos bassês ou dos periquitos, nada contra rotular Olegário de "poeta das cigarras", já que o bichinho foi seu tema predileto, como, entre outros bons temas, se nota na amostra abaixo.


OLHOS TERNOS

Olhos ternos azuis, humildes, inocentes,
Orvalhados de dor, da lágrima sentida...
Chorais, e com razão, os amores ausentes,
Que são a vossa luz na estrada desta vida.

Chorais como dois lagos calmos, transparentes,
Refletindo a amplidão de uma tela estendida...
Olhos ternos azuis, desmaiados, dormentes,
Vejo em vós o sofrer de uma monja sentida.

Chorai, olhos azuis, que a lágrima divina
Vale mais do que rir de boca pequenina
Que comece a falar, mil beijos implorando...

Prefiro a vossa luz inundada na mágoa...
Olhos ternos azuis, ao ver-vos cheios d'água,
Eu padeço também... mas vos amo, chorando.


CONSELHO DE AMIGO

Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro,
Gosto da tua frívola cantiga,
Mas vou dar-te um conselho, rapariga:
Trata de abastecer o teu celeiro.

Trabalha, segue o exemplo da formiga,
Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro,
E tu, não tendo um pouso hospitaleiro,
Pedirás... e é bem triste ser mendiga!

E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava
(Quem dá conselhos sempre se consome...)
Continuava cantando... continuava...

Parece que no canto ela dizia:
— Se eu deixar de cantar morro de fome...
Que a cantiga é o meu pão de cada dia.


ALMA DO ESTIO

Alma do estio! Em ti palpita e canta
A vida nos seus múltiplos rumores,
Guardas, num canto estreito da garganta,
Dias melhores para os lavradores.

Se levantas a voz, de cada planta
Rompe, em volúpia, o espírito das flores...
A Natureza, a ouvir-te, se ataranta...
Calam-se as fontes... Quedam-se os pastores.

És, sendo pobre e sendo humilde e mansa,
Com teu canto de eterna adolescência,
O prenúncio dos dias de abastança.

Que o sol, jorrando as madrugadas claras,
Quando te ouve cantar, com mais violência
Semeia os campos e amadura as searas...


O ENTERRO DA CIGARRA

As formigas levavam-na... Chovia...
Era o fim... Triste outono fumarento!...
Perto, uma fonte, em suave movimento,
Cantigas de água trêmula carpia.

Quando eu a conheci, ela trazia
Na voz um triste e doloroso acento.
Era a cigarra de maior talento,
Mais cantadeira desta freguesia.

Passa o cortejo entre árvores amigas...
Que tristeza nas folhas... Que tristeza!
Que alegria nos olhos das formigas!...

Pobre cigarra! Quando te levavam,
Enquanto te chorava a Natureza,
Tuas irmãs e tua mãe cantavam...


ÁGUA CORRENTE

Água corrente! Água de um rio quieto
Cortando a alma ignorada do sertão!
Levas à tona, aspecto por aspecto,
Os aspectos da vida em refração.

Água que passa... Sonho predileto
Do lavrador que lavra o duro chão.
Trazes-me sempre a evocação de um teto...
Água! Sangue da terra! Religião...

Há na tua bondade humana e leal,
Quando a roda maior moves do Engenho,
Qualquer bafejo sobrenatural...

Ouvindo, ao longe, o teu magoado som,
Água corrente! eu me enterneço e tenho
Uma imensa vontade de ser bom...


RENÚNCIA

Renunciar. Todo o bem que a vida trouxe,
Toda a expressão do humano sofrimento
A gente esquece assim como se fosse
Um vôo de andorinha em céu nevoento.

Anoiteceu de súbito. Acabou-se
Tudo... A miragem do deslumbramento...
Se a vida que rolou no esquecimento
Era doce, a saudade inda é mais doce.

Sofre de ânimo forte, alma intranqüila!
Resume na lembrança de um momento
Teu amor. Olha a noite: ele cintila.

Que o grande amor, quando a renúncia o invade,
Fica mais puro porque é pensamento,
Fica muito maior porque é saudade.


MIGALHA DE VENTURA

Tirem-me a luz que os olhos me alumia,
O ar que me enche os pulmões e o céu que adoro;
Tirem-me esses momentos de alegria,
Tirem-me a voz de pássaro canoro;

Tirem-me a paz do espírito, a harmonia
Da vida, e o mar que canta, quando eu choro
Tirem-me a noite e, ao luar da noite fria,
O sonoro esplendor do céu sonoro;

Tirem-me a glória de viver, o encanto,
A lágrima, o sorriso, a mocidade
Que faz com que eu na vida engane tanto!

Tirem-me o manto, deixem-me desnudo,
Mas não me tirem da alma esta saudade,
Que é meu sangue, meu ser, meu pão, meu tudo!


ASSOMBRAÇÃO

Cera, "rimmel", pomadas, parafina,
Talco, "rouge", "cilion"... Mademoiselle
Gasta um dinheiro louco na surdina
Mas, quando sai, que sedução na pele!

A boca de morango se ilumina,
O olhar provocador que não repele,
Antes, em filtros mágicos, fascina,
E ao delírio mais alto nos impele.

Mas, se pela manhã, alguém surpreende
Mademoiselle em pijama e sem cabelo,
Antes de restaurada... ó monstro! ó — duende!

Corre gritando: "— Que animal é este?"
Como se no pavor de um pesadelo
Um Saci-Pererê lhe aparecesse...


A ALEGRIA DE VIVER!

Para a alegria de viver nada nos falta:
Sol, natureza clara e sinos a tocar,
Nuvens imateriais na montanha mais alta,
Ondas desenrolando a planura do mar;

O céu tranqüilo e azul que a madrugada esmalta,
O alvoroço de amor de ninhos soltos no ar.
E a água que da montanha entre begônias salta
E, em cambiantes de luz, forma um riacho a cantar.

O vento que sussurra, o silêncio que espreita,
Vôos de pombas numa apoteose de penas,
Tudo em torno de nós é tão puro e tão bom,

Que a criatura feliz, em divina colheita,
Enche as mãos sem querer... (como as mãos são pequenas!)
De perfume, de sol, de cor, de luz, de som.


OS TRÊS REIS MAGROS

Amas a três peraltas. Dividida
Tua alma é deles. Cada qual pior.
Andam-se engalfinhando toda a vida...
Gaspar e Baltasar e Melchior.

Este joga "foot-ball". É um rei do "sport",
Difícil de levar-se de vencida.
Aquele tem uma barata Ford.
E o outro é um bate-calçadas da Avenida.

Isso é um nunca acabar! De luta em luta,
De mentira em mentira, esperta e astuta,
Vais a vida levando... Mas bem vês:

Tornas teus dias cada vez mais agros
E, dando o coração aos três reis magros,
Ficas mais magra do que todos três.


Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes