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José Fernando Marques de Freitas Filho (Rio de Janeiro RJ 1958)
Autor e pesquisador teatral, seu interesse em estudar Nelson Rodrigues
talvez explique a idéia de transformar em soneto as mais trágicas
figuras femininas que encontrou naquele e noutros dramaturgos, a começar
pelos gregos. Muito à vontade no decassílabo, cujo metro (despreocupado
com sinéreses) e cuja rima maneja com descontração, reuniu suas
aventuras poéticas num bem-negramente-humorado livro, RETRATOS DE
MULHER.
INÊS DE CASTRO A antiga corte lusitana a fez a vítima inocente dos algozes que não lhe consentiram ser Inês, a pátria de dom Pedro, mas velozes, armados de bom ódio português, de medo armas brancas e ferozes, de bons motivos e de sordidez, mataram-na, aos gritos, a altas vozes. O príncipe colheu os seus pedaços, ferido, alucinado de saudade, lançando maldições aos homicidas. Que mais faria ele? Com seus braços de homem que conhece a crueldade, matou quem lhe tomara duas vidas. LEONOR DE MENDONÇA Jazia em seu palácio, pressurosa, a esposa de dom Jaime, Leonor. De seu, só mesmo vida interior, tristezas e langor na tarde rosa. A vila onde vivia era Viçosa mas não a sua vida sem frescor. Surgiu Alcoforado, e seu amor perturba a paz de moça virtuosa. O duque, tão cioso e desconfiado, percebe a fita que ela presenteara a semelhante herói que, por seu lado, nos próprios aposentos da duquesa sem ver o risco ali se apresentara. E morre Leonor, tão sem defesa. A FALECIDA Seu nome de batismo era Zulmira, a prima de Glorinha: tez morena, os olhos claros, lassos, voz pequena. Casara com Tuninho e não sentira amor por seu marido então delira arrependida como Madalena. Tuninho, desatento, sente pena do estranho jeito casto de Zulmira. Depois se vai saber que, infiel, andara se entregando a Pimentel que brusco penetrara em sua vida. O amor, a culpa, o gozo, a dor, a rima: flagrada em adultério pela prima, decide seu destino a falecida. MEDÉIA A mágica Medéia das poções, dos golpes e do amor ilimitado o fez tripudiar sobre os dragões trazendo o manto mítico esperado. Ali os dois ligaram corações: Medéia e seu herói vão lado a lado. Foi triste que ele ouvisse outras canções e desse o grande amor por terminado. A pálida estrangeira, rejeitada, da mágoa de mulher abandonada destila o mais terrível dos destinos: sofrida abraça os filhos, seus amores, e atira sobre eles os rancores vingando-se do pai nos dois meninos. SALOMÉ Salomé, bailarina adolescente, tentava seduzir João Batista, o místico profeta indiferente que a sua carne tenra não conquista. Por outro lado Herodes, sob o dente do desejo maduro, só avista o corpo da sobrinha, reluzente. A jovem só queria João Batista. Querendo o impossível arrancou de seu padrasto Herodes, sob o sol de uma lua tão virgem quanto fria, a graça de, na bíblica bandeja, ter os olhos do homem que deseja. Mas, consumado o crime, morreria. OFÉLIA A moça confiara no rapaz. Não iria supor que ele dissesse que não alimentasse o que foi doce e que, em suma, o deixasse em paz. Ofélia o via forte, bom, sagaz. E ele: que perdesse o interesse, que fosse a um convento, enfim, que fosse assim tão de repente, assim sem mais. O príncipe, imerso em sã loucura, não teve, pois, cuidados, nem sonhara o mal que faz à moça que maltrata. Ninguém soubera o quanto a água escura com sua tez de limo conquistara o coração de Ofélia que se mata. MARIA Na sua vida não se percebia a luz que noutras vidas se notava. O namorado vinha todo dia: de seu amor ela não era escrava. De frágil estrutura fugidia, Woyzeck, era assim que se chamava, talvez já suspeitasse de Maria. O bom soldado já desconfiava de certo oficial que, vaidoso, fazia ver as glórias militares à moça a contemplá-lo da janela. Um dia, encontra os dois, intui o gozo que traziam no fogo dos olhares, e se adivinha o que ele fez a ela. A DAMA DAS CAMÉLIAS Profissão, prostituta. Tenham calma: seus favores sabiam ser diletos. Prostituta, diziam, mas com alma na lua escura de seus olhos retos. A pele clara à noite sob a palma inspirava salários e sonetos. Mas onde se separam corpo e alma sob o contorno dos cabelos pretos? Paixão de quem não deve, por "métier", se apaixonar, teria de ser triste o seu amor, se é que amor existe. Foi esta a trajetória da mulher: das salas onde sobram pompa e pose às valsas róseas da tuberculose. GENI A dama das camélias mais modesta atende por Geni: moça bonita e dada a certas cismas, acredita que a vida, mais que a morte, nos detesta. Sua sina estampada em sua testa: não ser amada por ninguém, maldita (no próprio seio encontra a sorte escrita). Ninguém lhe faz, como aos cachorros, festa. Mas, trôpego, Herculano apareceu. No início tímido, ele iria ao céu arrastando consigo a namorada daquela cama torpe de bordel. Geni amou, cansou, traiu, sofreu e se matou deixando a voz gravada. CLITEMNESTRA Alimentava-se de ódio, há longos anos, ao homem, seu marido, que matara a filha do casal, dileta e cara. O crime, o mais perverso dos enganos, obedecera a muito estranhos planos dos deuses em que ele confiara, ídolos vis, de crueldade rara. Mas deuses não conseguem ser humanos nem têm por que supor o que no peito magoado de quem ama se alimenta. O homem, vitorioso e displicente, voltava das batalhas para o leito a hora que sonhara se apresenta e ela o mata gloriosamente. A CONCUBINA CHINESA O rei a transformou em namorada. A pele sobre a pele, a gargalhada, crianças sensuais, correndo e rindo na confusão dos corpos indo e vindo. Mas, certo dia, olhou-a como escrava. Talvez para sentir se ela o amava, trocou-a, caprichoso, por alguém que recolheu com tédio em seu harém. Ela então viveria o pesadelo: chorou de ciúme, ódio, desespero (o amor é mesmo o quero-porque-quero) e faleceu de dor, sem esquecê-lo. O rei chegou, sorriu e, de olhos lassos, também morreu de amor mas nos seus braços. DESDÊMONA O próprio pai não reconheceria Desdêmona, a tímida veneziana capaz de amar o mouro, à revelia de toda norma néscia e desumana. Otelo a conquistara, certo dia; a moça o recebera, pura e lhana. A mão escura e forte protegia a pálida patrícia veneziana. Mas ele, de felicidade rara no amor como na guerra, despertara a inimizade vil do subalterno que, lúcido, pretende destruí-lo minando a paz daquele amor tranqüilo. Termina em morte o que era amor eterno. FEDRA Tornada só por seu marido, Fedra dirige os sentimentos a alguém que, ao invés de ardor, é pura pedra. Romance incestuoso, mal ou bem, no peito do enteado não penetra paixão de homem por mulher, refém que o moço é de si mesmo, não de Fedra. O jovem não precisa de ninguém. A ama inconfidente irá contar, sem juízo, ao rapaz indiferente o quanto a moça sofre, o quanto sente, o quanto o seio já não quer guardar. Desfecho triste, sim, mas prenunciado, falecem ambos, Fedra e seu amado. JUDITE Aquele amor completo perturbava parentes e vizinhos solitários. Os beijos e abraços milionários faziam-lhes inveja escura e cava. Mas, dentro de Gilberto, principiava a bílis, o rancor de tais salários de amor e de prazer extraordinários: "Não posso ser feliz", choramingava. Vieram os ciúmes mais mesquinhos. Mudou também a cândida Judite; até o banho a dois tornou-se obsceno. Cruéis, os tais parentes e vizinhos, ferozes inimigos do desquite, mataram-na, felizes, com veneno. EPÍLOGO Melhor cantar o amor feliz, talvez, que sombrio insistir em descrever os mórbidos avessos do prazer, a dor, o suicídio, a viuvez. Melhor cantar o amor-verão em vez de revirar os pântanos do ser, o nunca-mais, o pérfido querer, desenhando em tateante português esses tristes retratos de mulher. Que meu leitor desleia, se quiser, as linhas que buscaram imitar os traços da silhueta feminina o amor, a dor, a morte, a sorte, a sina. Enfim, esqueça, feche o livro, azar.
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