|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Gregório de Matos Guerra (Salvador BA 1623-1696)

A importância do Boca do Inferno deveria equivaler, para o Brasil, à de Camões para Portugal, mas aqui a crítica dá menos peso à tradição e ao pioneirismo, de sorte que nosso vanguardista protobarroco permanece mais visível por conta da bocagem que, aliás, lhe dá primazia cronológica sobre o próprio Bocage. Não por acaso Gregório parodia Camões em "Sete anos", antecipando-se à sátira bocagiana. Prototípico do estilo gregoriano é o antológico exemplo abaixo.


UM SONETO

Um soneto começo em vosso gabo:
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.

Na quinta torce agora a porca o rabo;
A sexta vai também desta maneira:
Na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi?
Direi que vós, Senhor, a mim me honrais
Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.

Nesta vida um soneto já ditei;
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.


O exemplo acima é um caso típico de "processoneto", em que cada poeta
glosa à sua maneira o mote máximo que seria a própria feitura do molde.
O mais evidente precedente de Gregório foi Lope de Vega (1562-1635),
cujo soneto é famoso na literatura espanhola:


EL SONETO

Un soneto me manda hacer Violante,
que en mi vida me he visto en tal aprieto:
catorce versos dicen que es soneto,
burla burlando, van los tres delante.

Yo pensé que no hallara consonante,
y estoy en la mitad de otro cuarteto;
mas, si me veo en el primer terceto,
no hay cosa en los cuartetos que me espante.

Por el primer terceto voy entrando,
y aun parece que entré con pie derecho,
pues fin con este verso le voy dando.

Ya estoy en el segundo, y aun sospecho
que estoy los trece versos acabando:
contad si son catorce, y está hecho.


Minha incursão no processoneto comenta justamente os exemplos acima,
variando apenas na ordem dos fatores a fim de não ficar no mero
arremedo:


SONETO 233 SONETADO

Já li Lope de Vega e li Gregório,
pois ambos sonetaram do soneto,
seara na qual minha foice meto,
tentando fazer algo meritório.

Não quero usar o mesmo palavrório,
mas pilho-me, no meio do quarteto,
montando a anatomia do esqueleto.
No oitavo verso, o alívio é provisório.

Contagem regressiva: faltam cinco.
Mais quatro, e fico livre do problema.
Agora faltam três... Deus, dai-me afinco!

Com dois acabo a porra do poema.
Caralho! Só mais um! Até já brinco!
Gozei! Matei a pau! Que puta tema!


Glauco Mattoso Talvez o mais referido soneto de Gregório seja o que vai abaixo: CIDADE DA BAHIA A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem freqüente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha, Para o levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam muito pobres: E eis aqui a cidade da Bahia. O soneto acima foi parafraseado no século XIX por outro baiano, o repentista Moniz Barreto: BAHIA À religião, às leis nenhum respeito; Ufano o vício, o mérito escondido; Favoneado o crime, e não punido; Muitas sociedades sem proveito; Para cabalas cada vez mais jeito; Em juiz qualquer zote convertido; Austero e violento o corrompido Nos mais notando o mínimo defeito; Por aqui, por ali, casas roubadas; Carne muito barata em teoria; Todas as coisas úteis mal paradas; Ruim prosa nos jornais, ruim poesia; Francesas contradanças já cansadas: "Eis aqui a cidade da Bahia". Outros sonetos de Gregório: TRISTE BAHIA Triste Bahia! ó quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vi eu já, tu a mi abundante. A ti trocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado, Tanto negócio e tanto negociante. Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote. Oh se quisera Deus, que de repente Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote! NESTE MUNDO Neste mundo é mais rico o que mais rapa: Quem mais limpo se faz, tem mais carepa; Com sua língua, ao nobre o vil decepa: O velhaco maior sempre tem capa. Mostra o patife da nobreza o mapa: Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa; Quem menos falar pode, mais increpa: Quem dinheiro tiver, pode ser Papa. A flor baixa se inculca por tulipa; Bengala hoje na mão, ontem garlopa: Mais isento se mostra o que mais chupa. Para a tropa do trapo vazo a tripa, E mais não digo, porque a Musa topa Em apa, epa, ipa, opa, upa. QUE ME QUER O BRASIL Que me quer o Brasil, que me persegue? Que me querem pasguates, que me invejam? Não vêem que os entendidos me cortejam, E que os nobres é gente que me segue? Com o seu ódio a canalha que consegue? Com sua inveja os néscios que motejam? Se quando os néscios por meu mal mourejam, Fazem os sábios que a meu mal me entregue. Isto posto, ignorantes e canalha, Se ficam por canalha, e ignorantes No rol das bestas a roerem palha: E se os senhores nobres elegantes Não querem que o soneto vá de valha, Não vá, que tem terríveis consoantes. CALÇÃO DE PINDOBA Um calção de pindoba, a meia zorra, Camisa de urucu, mantéu de arara, Em lugar de cotó, arco e taquara, Penacho de guarás, em vez de gorra. Furado o beiço, e sem temor que morra O pai, que lho envasou cuma titara, Porém a Mãe a pedra lhe aplicara Por reprimir-lhe o sangue que não corra. Alarve sem razão, bruto sem fé, Sem mais leis que a do gosto, quando erra, De Paiaiá tornou-se em abaité. Não sei onde acabou, ou em que guerra: Só sei que deste Adão de Massapé Procedem os fidalgos desta terra. CASACA DE VELUDO Bote a sua casaca de veludo, E seja capitão sequer dois dias, Converse à porta de Domingos Dias, Que pega fidalguia mais que tudo. Seja um magano, um pícaro, um cornudo, Vá a palácio, e após das cortesias Perca quanto ganhar nas mercancias, E em que perca o alheio, esteja mudo. Sempre se ande na caça e montaria, Dê nova solução, novo epíteto, E diga-o, sem propósito, à porfia; Que em dizendo: "facção, pretexto, efecto" Será no entendimento da Bahia Mui fidalgo, mui rico, e mui discreto. EL-REI NA BARRIGA Quem cá quiser viver, seja um Gatão; Infeste a terra toda, e invada os mares; Seja um Chegay, ou um Gaspar Soares; E por si terá toda a Relação. Sobejar-lhe-á na mesa vinho e pão, E tenha os que lhe dou por exemplares, Que a vida passará sem ter pesares, Assim como os não tem Pedro de Unhão. Quem cá se quer meter a ser sisudo, Um Gil nunca lhe falta que o persiga; E é mais aperreado que um cornudo. Coma, beba, e mais furte, e tenha amiga, Porque o nome d'El-Rei dá para tudo A todos que El-Rei trazem na barriga. PROTÓTIPO GENTIL Protótipo gentil do Deus muchacho, Poeta singular o mais machucho, Que no mais levantado do cartucho Quis trazer o Pegaso por penacho. Triunfante ao Parnaso entrou gavacho Com décimas do métrico capucho; Se são suas, merece um bom cachucho, Que por boas conseguem bom despacho. Mas o sol, que na aurora do desfecho Os párpados abrindo vos viu micho, Por ser vosso talento de relexo, Logo disse: não éreis vós o bicho, Que vos sente nas ancas este sexo, Que vos limpe essas barbas c'um rabicho. PADRE FRISÃO Este padre Frisão, este sandeu, Tudo o demo lhe deu e lhe outorgou, Não sabe musa musae, que estudou, Mas sabe as ciências, que nunca aprendeu. Entre catervas de asnos se meteu, E entre corjas de bestas se aclamou, Naquela Salamanca o doutorou, E nesta salacega floresceu. Que é um grande alquimista isso não nego, Que alquimistas do esterco tiram ouro, Se cremos seus apógrafos conselhos. E o Frisão as Irmãs pondo ao pespego, Era força tirar grande tesouro, Pois soube em ouro converter pentelhos. SENHOR DOUTOR Senhor Doutor, muito bem-vinda seja A esta mofina e mísera cidade, Sua justiça agora, e eqüidade, E letras com que a todos causa inveja. Seja muito bem-vindo, porque veja O maior disparate e iniqüidade, Que se tem feito em uma e outra idade Desde que há tribunais, e quem os reja. Que me há de suceder nestas montanhas Com um ministro em leis tão pouco visto, Como previsto em trampas e maranhas? É ministro de império, mero e misto, Tão Pilatos no corpo e nas entranhas, Que solta a um Barrabás, e prende a um Cristo. LOBO CERVAL Lobo cerval, fantasma pecadora, Alimária cristã, selvage humana, Que eras com vara pescador de cana, Quando devias ser burro de nora. Leve-te Berzabu, vai-te em má hora, Levanta desta vez fato e cabana, E não pares senão na Taprobana, Ou no centro da Líbia abrasadora. Parta-te um raio, queime-te um corisco, Na cama estejas tu, morras na rua, Sepultura te dêem montes de cisco. E toda aquela coisa que for tua Corra sempre contigo o mesmo risco, Ó selvagem cristão! ó besta crua! SETE ANOS Sete anos a nobreza da Bahia Servia a uma pastora Indiana bela, Porém servia a Índia e não a ela, Que à Índia só por prêmio pretendia. Mil dias na esperança de um só dia Passava, contentando-se com vê-la, Mas frei Tomás usando de cautela, Deu-lhe o vilão, quitou-lhe a fidalguia. Vendo o Brasil, que por tão sujos modos Se lhe usurpara a sua Dona Elvira, Quase a golpes de um maço e de uma goiva: Logo se arrependeram de amar todos, E qualquer mais amara, se não vira Para tão limpo amor tão suja noiva. CASOU-SE Casou-se nesta terra esta e aquele, Aquele um gozo filho de cadela, Esta uma donzelíssima donzela, Que muito antes do parto o sabia ele. Casaram por unir pele com pele; E tanto se uniram, que ele com ela Com seu mau parecer ganha para ela, Com seu bom parecer ganha para ele. Deram-lhe em dote mil cruzados, Excelentes alfaias, bons adornos, De que estão os seus quartos bem ornados: Por sinal que na porta e seus contornos Um dia amanheceram, bem contados, Três bacias de trampa e doze cornos. SER ESTUDANTE Mancebo sem dinheiro, bom barrete, Medíocre o vestido, bom sapato, Meias velhas, calção de esfola-gato, Cabelo penteado, bom topete; Presumir de dançar, cantar falsete, Jogo de fidalguia, bom barato, Tirar falsídia ao moço do seu trato, Furtar a carne à ama, que promete; A putinha aldeã achada em feira, Eterno murmurar de alheias famas, Soneto infame, sátira elegante; Cartinhas de trocado para a freira, Comer boi, ser Quixote com as damas, Pouco estudo: isto é ser estudante. SANTO ENTRUDO Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas, Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro, Os perus em poder do pasteleiro, Esguichar, deitar pulhas, laranjadas; Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas, Gastar para comer muito dinheiro, Não ter mãos a medir o taverneiro, Com réstias de cebolas dar pancadas; Das janelas com tanhos dar nas gentes, A buzina tanger, quebrar panelas, Querer em um só dia comer tudo; Não perdoar arroz, nem cuscuz quente, Despejar pratos, e alimpar tigelas: Estas as festas são do Santo Entrudo. PROCISSÃO DE CINZA Um negro magro de sufulié justo, Dois azorragues de um joá pendentes, Barbado o Peres, mais dois penitentes, Seis crianças com asas sem mais custo. De vermelho o mulato mais robusto, Três fradinhos meninos inocentes, Dez ou doze brichotes mui agentes, Vinte ou trinta canelas de ombro onusto. Sem débita reverência seis andores, Um pendão de algodão tinto em tijuco, Em fileira dez pares de menores. Atrás um cego, um negro, um mameluco, Três lotes de rapazes gritadores: É a procissão de cinza em Pernambuco. RECIFE Por entre o Beberibe e o Oceano, Em uma areia sáfia e alagadiça, Jaz o Recife, povoação mestiça, Que o Belga edificou, ímpio tirano. O povo é pouco, e muito pouco urbano, Que vive à mercê de uma lingüiça, Unha de velha insípida e enfermiça, E camarões de charco em todo o ano. As damas cortesãs e mui rasgadas, Olhas podridas, sopas pestilências Sempre com purgações, nunca purgadas. Mas a culpa têm Suas Reverências, Pois as trazem tão rompidas e escaladas, Com cordões, com bentinhos e indulgências. SERGIPE Três dúzias de casebres remendados, Seis becos, de mentrastos entupidos, Quinze soldados, rotos e despidos, Doze porcos na praça bem criados. Dois conventos, seis frades, três letrados, Um juiz, com bigodes, sem ouvidos, Três presos de piolhos carcomidos, Por comer dois meirinhos esfaimados. Damas com sapatos de baeta, Palmilha de tamanca como frade, Saia de chita, cinta de raqueta. O feijão, que só faz ventosidade, Farinha de pipoca, pão que greta, De Sergipe d'El-Rei esta é a cidade. ILHA DE ITAPARICA Ilha de Itaparica, alvas areias, Alegres praias, frescas, deleitosas, Ricos polvos, lagostas deliciosas, Farta de Putas, rica de baleias. As Putas, tais ou quais, não são más preias, Pícaras, ledas, brandas, carinhosas, Para o jantar as carnes saborosas, O pescado excelente para as ceias. O melão de ouro, a fresca melancia, Que vem no tempo, em que aos mortais abrasa O sol inquisidor de tanto oiteiro. A costa, que o imita na ardentia, E sobretudo a rica, e nobre casa Do nosso Capitão Luís Carneiro. CAOS CONFUSO Ó caos confuso, labirinto horrendo, Onde não topo luz, nem fio achando; Lugar de glória, aonde estou penando; Casa da morte, aonde estou vivendo! Ó voz sem distinção, Babel tremendo; Pesada fantasia, sono brando; Onde o mesmo que toco, estou sonhando; Onde o próprio que escuto, não o entendo. Sempre és certeza, nunca desengano; E a ambas pretensões com igualdade, No bem te não penetro, nem no dano. És ciúme martírio da vontade; Verdadeiro tormento para engano; E cega presunção para verdade. A DOR Em o horror desta muda soledade, Onde voando os ares a porfia, Apenas solta a luz a aurora fria, Quando a prende da noite a escuridade. Ah cruel apreensão de uma saudade! De uma falsa esperança fantasia, Que faz que de um momento passe a um dia, E que de um dia passe à eternidade! São da dor os espaços sem medida, E a medida das horas tão pequena, Que não sei como a dor é tão crescida. Mas é troca cruel, que o fado ordena; Porque a pena me cresça para a vida, Quando a vida me falta para a pena. CHORO Como exalas, penhasco, o licor puro, Lacrimante a floresta lisonjeando? Se choras por ser duro, isso é ser brando, Se choras por ser brando, isso é ser duro. Eu, que o rigor lisonjear procuro, No mal me rio, dura penha, amando; Tu, penha, sentimentos ostentando, Que enterneces a selva, te asseguro. Se a desmentir afetos me desvio, Prantos, que o peito banham, corroboro, De teu brotado humor, regato frio. Chora festivo já, cristal sonoro; Que quanto choras se converte em rio, E quanto eu rio, se converte em choro. ORIGINAL E CÓPIA Se há de ver-vos quem há de retratar-vos E é forçoso cegar quem chega a ver-vos, Sem agravar meus olhos, e ofender-vos, Não há de ser possível copiar-vos. Com neve, e rosas quis assemelhar-vos, Mas fora honrar as flores, e abater-vos; Dois zéfiros por olhos quis fazer-vos; Mas quando sonham eles de imitar-vos? Vendo que a impossíveis me aparelho, Desconfiei da minha tinta imprópria, E a obra encomendei a vosso espelho. Porque nele com luz, e cor mais própria Sereis, se não me engana o meu conselho, Pintor, pintura, original, e cópia. MANCEBINHO Amor, cego, rapaz, travesso, e zorro, Formigueiro, ladrão, mal doutrinado, Em que lei achai vós, que um home honrado Há de andar trás de vós como um cachorro? Muitos dias, mancebinho, há, que morro Por colher-vos um tanto descuidado, Que à fé que bem de mim tendes zombado, Pois me fazeis cativo, sendo forro. Não vos há de valer erguer o dedo Se desatando a voz da língua muda Me não dais minha carta de alforria. Mas em tal parte estais, que tenho medo, Que alguém poderá haver, que vos acuda, Sem que pagueis tamanha rapazia. DESPREZADO Já desprezei; hoje sou desprezado; Despojo sou de quem triunfo hei sido; E agora nos desdéns de aborrecido, Desconto as ufanias de adorado. O Amor me incita a um perpétuo agrado; O decoro me obriga a um justo olvido: Eu não sei, no que emprendo, e no que lido, Se triunfo o respeito, se o cuidado. Porém, vença o mais forte sentimento, Perca o brio maior autoridade, Que é menos o ludíbrio, que o tormento. Quem quer, só do querer faça vaidade, Que quem logra em amor entendimento, Não tem outro capricho, que a vontade. TRÊS AMANTES Com vossos três amantes me confundo, Mas vendo-vos com todos cuidadosa, Entendo que de amante e amorosa Podeis vender amor a todo o mundo. Se de amor vosso peito é tão fecundo, E tendes essa entranha tão piedosa, Vendei-me de afeição uma ventosa, Que é pouco mais que um selamim sem fundo. Se tal compro, e nas cartas há verdade, Eu terei, quando menos, trinta damas, Que infunde vosso amor pluralidade. E dirá, quem me vir com tantas chamas, Que Vicência me fez a caridade, Porque o leite mamei das suas mamas. DESCARTO-ME Descarto-me da tronga, que me chupa, Corro por um conchego todo o mapa, O ar da feia me arrebata a capa, O gadanho da limpa até a garupa. Busco uma freira, que me desentupa A via, que o desuso às vezes tapa, Topo-a, topando-a todo o bolo rapa, Que as cartas lhe dão sempre com chalupa. Que hei de fazer, se sou de boa cepa, E na hora de ver repleta a tripa, Darei por quem mo vase toda Europa? Amigo, quem se alimpa da carepa, Ou sofre uma muchacha, que o dissipa, Ou faz da sua mão sua cachopa. PEQUEI, SENHOR Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido; Porque, quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na sacra história, Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. MEU DEUS Meu Deus, que estais pendente de um madeiro, Em cuja lei protesto de viver, Em cuja santa lei hei de morrer Animoso, constante, firme e inteiro: Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minha vida anoitecer, É, meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai, manso Cordeiro. Mui grande é vosso amor e o meu delito; Porém pode ter fim todo o pecar, E não o vosso amor, que é infinito. Esta razão me obriga a confiar, Que, por mais que pequei, neste conflito Espero em vosso amor de me salvar. ORAÇÃO Na oração, que desaterra a terra, Quer Deus que a quem está o cuidado dado, Pregue que a vida é emprestado estado, Mistérios mil, que desenterra enterra. Quem não cuida de si, que é terra, erra, Que o alto Rei, por afamado amado, É quem assiste ao desvelado lado, Da morte ao ar não desaferra, aferra. Quem do mundo a mortal loucura cura, A vontade de Deus sagrada agrada, Firma-lhe a vida em atadura dura. Ó voz zelosa que dobrada brada, Já sei que a flor da formosura, usura, Será no fim desta jornada nada. ÉS TERRA Que és terra, homem, e em terra hás de tornar-te, Te lembra hoje Deus por sua Igreja; De pó te faz espelho, em que se veja A vil matéria, de que quis formar-te. Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te E como o teu baixel sempre fraqueja Nos mares da vaidade, onde peleja, Te põe à vista a terra, onde salvar-te. Alerta, alerta, pois, que o vento berra. Se assopra a vaidade e incha o pano, Na proa a terra tens, amaina e ferra. Todo o lenho mortal, baixel humano, Se busca a salvação, tome hoje terra, Que a terra de hoje é porto soberano. DIA DO JUÍZO O alegre do dia entristecido, O silêncio da noite perturbado O resplandor do sol todo eclipsado, E o luzente da lua desmentido! Rompa todo o criado em um gemido, Que é de ti mundo? onde tens parado? Se tudo neste instante está acabado, Tanto importa o não ser, como haver sido. Soa a trombeta da maior altura, A que a vivos, e mortos traz o aviso Da desventura de uns, d'outros ventura. Acabe o mundo, porque é já preciso, Erga-se o morto, deixe a sepultura, Porque é chegado o dia do juízo. INCONSTÂNCIA Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Depois da Luz se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em contínuas tristezas a alegria. Porém, se acaba o Sol, por que nascia? Se é tão formosa a Luz, por que não dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia? Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza, Na formosura não se dê constância, E na alegria sinta-se tristeza. Começa o mundo enfim pela ignorância, E tem qualquer dos bens por natureza A firmeza somente na inconstância. PRAZER E PESAR Um prazer, e um pesar quase irmanados, Um pesar, e um prazer, mas divididos Entraram nesse peito tão unidos, Que Amor os acredita vinculados. No prazer acha Amor os esperados Frutos de seus extremos conseguidos, No pesar acha a dor amortecidos Os vínculos do sangue separados. Mas ai fado cruel! que são azares Toda a sorte, que dás dos teus haveres, Pois val o mesmo dares, que não dares. Emenda-te, fortuna, e quando deres, Não seja esse prazer em dois pesares, Nem prazer enterrado nos Prazeres. CONFUSÃO Na confusão do mais horrendo dia, Painel da noite em tempestade brava, O fogo com o ar se embaraçava Da terra e água o ser se confundia. Bramava o mar, o vento embravecia Em noite o dia enfim se equivocava, E com estrondo horrível, que assombrava, A terra se abalava e estremecia. Lá desde o alto aos côncavos rochedos, Cá desde o centro aos altos obeliscos Houve temor nas nuvens, e penedos. Pois dava o Céu ameaçando riscos Com assombros, com pasmos, e com medos Relâmpagos, trovões, raios, coriscos. CARREGADO DE MIM Carregado de mim ando no mundo, E o grande peso embarga-me as passadas, Que como ando por vias desusadas, Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo. O remédio será seguir o imundo Caminho, onde dos mais vejo as pisadas, Que as bestas andam juntas mais ornadas, Do que anda só o engenho mais profundo. Não é fácil viver entre os insanos, Erra, quem presumir, que sabe tudo, Se o atalho não soube dos seus danos. O prudente varão há de ser mudo, Que é melhor neste mundo o mar de enganos Ser louco cos demais, que ser sisudo. RAINHA DAS MULATAS Jelu, vós sois rainha das Mulatas, E sobretudo sois Deusa das putas, Tendes o mando sobre as dissolutas, Que moram na quitanda dessas Gatas. Tendes muito distantes as Sapatas, Por poupar de razões, e de disputas, Porque são umas putas absolutas, Presumidas, faceiras, pataratas. Mas sendo vós Mulata tão airosa Tão linda, tão galharda, e folgazona, Tendes um mal, que sois mui cagarrosa. Pois perante a mais ínclita persona Desenrolando a tripa revoltosa, O que branca ganhais, perdeis cagona. LUÍS FERREIRA DE NORÔ Que aguarde Luís Ferreira de Norô... Tão grande pespegar pelo besbê...! Para o Puto, que aguarda tal pespê..., E faz servir seu cu de cocó... Subverteu-se a cidade de Sodô... Pelo muito, que andou de caranguê...: A Palácio também creio, sucé... O mesmo, que à cidade de Gomô... Que desse em pescador Antônio Luí...? Nefando gosto tem o seu cará..., Em não querer topar ponta de cri... Pois tanto se namora do pescá..., A cuama se vá pescar lombri..., E em castigo de Deus morra queimá... PUTA PORCA Chegando à Cajaíba, vi Antonica, E indo-lhe apolegar, disse-me caca, Gritou Tomás em tono de matraca Bu bu pela mulher, que foge à pica. Eu, disse ela, não sou mulher de crica, Que assomo como rato na buraca, Quem me lograr há de ter boa ataca, Que corresponda ao vaso, que fornica. Nunca me fez mister dizer, quem merca, Porque a minha beleza é mar que surca Alto baixel, que traz cutelo, e forca. E pois você tem feito, com que perca, Diga essas confianças à sua urca, Que eu sei, que em cima de urca é puta porca. SOR MADAMA DE JESUS Confessa Sor Madama de Jesus, Que tal ficou de um tal Xesmeninês, Que indo-se os meses, e chegando o mês, Parira enfim de um Cônego Abestruz. Diz, que um Xisgaravis deitara à luz Morgado de um Presbítero montês, Cara frisona, garras de Irlandês Com boca de cagueiro de alcatruz. Dou, que nascesse o tal Xisgaravis, Que o parisse uma Freira: vade in paz, Mas que o gerasse o Senhor Padre! arroz Verdade pois o coração me diz, Que o Filho foi sem dúvida algum trás, Para as barbas do Pai, onde se pôs. DONA URRACA Dizem, que é mui formosa Dona Urraca. Quem o sabe, ou quem viu esta minhoca? Poderá ter focinho de Taoca, E parecer-me a mim uma macaca. Hei de querê-la, sem ver-lhe a malaca Em risco de estar podre a Sereroca? E se ela acaso for galinha choca, Como hei de dar por ela uma pataca? A mim me tenham todos por velhaco Se amar a tal fragona por capricho, Sem primeiro revê-la até o buraco. Que pode facilmente o muito lixo, Por não limpar às vezes o mataco, Terem-lhe os caxandés tapado o esguicho. VICÊNCIA Lavai, lavai, Vicência, esses sovacos, Porque li num pronóstico almanaque, Que vos tresanda sempre o estoraque, E por isso perdestes casa, e cacos. Hoje que estais vizinha dos buracos Das pernas gafeiras, dareis mor baque, Que tanta caca hei medo, que vos caque, E que fujam de vós té os macacos. Tratai de perfumar-vos, e esfregar-vos, Que quem quer esfregar-se, anda esfregada, Senão ide ser Freira, ou enforcar-vos. Porque está toda a terra conjurada, Que antes de vos provar, hão de cheirar-vos, E lançar-vos ao mar, se estais danada. O LOGRA Está o Logra torto? é cousa rara! Diz que um olho perdeu por uma puta; Barato o fez, que há puta dissoluta, Que me quer arrancar ambos da cara. Oh quem tão baratinho amor comprara, Que um olho é pouco preço sem disputa; Se não diga-o Betica, que de astuta Mais de uma dúzia de olhos me almoçara. Saí desta canalha tão roído, E deixaram-me Harpias tão roubado, Que não logrei da vista um só sentido. Não foi o Logra não mais desgraçado, Porque posto que um olho tem perdido, O outro lhe ficou para um olhado. DONA LAZÉRIA Beleta, a vossa perna tão chagada Olha poderá ser pelo podrida, Mas eu não quero Olha em minha vida Podrida pelo mal inficionada. Estais tão lazarenta, e empestada, Tão hética, mirrada, e carcomida, Que uma pilhancra vossa bem moída Servirá de peçonha refinada. O que vos gabo é ser presuntuosa Em tal calamidade, em tal miséria, Como se a podridão fora formosa. Mas se acaso vos dói, Dona Lazéria, O gume deste verso, ou desta prosa, Sabei que o vosso humor deu a matéria.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes