|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Cecília Meireles (Rio de Janeiro RJ 1901-1964)

Da mais carimbada figurinha feminina da fase moderna (a quem prefiro chamar de "a rainha da reticência") nos ficaram poucos sonetos para obra tão vasta, mas suficientes para que um deles — "2º motivo da rosa" — fosse incluído por Italo Moriconi entre os cem melhores do século.


À HORA EM QUE OS CISNES CANTAM...

Nem palavras de adeus, nem gestos de abandono.
Nenhuma explicação. Silêncio. Morte. Ausência.
O ópio do luar banhando os meus olhos de sono...
Benevolência. Inconseqüência. Inexistência.

Paz dos que não têm fé, nem carinho, nem dono...
Todo o perdão divino e a divina clemência!
Oiro que cai dos céus pelos frios do outono...
Esmola que faz bem... — nem gestos, nem violência...

Nem palavras. Nem choro. A mudez. Pensativas
abstrações. Vão temor de saber. Lento, lento
volver de olhos, em torno, augurais e espectrais...

Todas as negações. Todas as negativas.
Ódio? Amor? Ele? Tu? Sim? Não? Riso? Lamento?
— Nenhum mais. Ninguém mais. Nada mais. Nunca mais...


A CHUVA CHOVE...

A chuva chove mansamente... como um sono
que tranqüilize, pacifique, resserene...
A chuva chove mansamente... Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine...

E vem-me o sonho de uma véspera solene,
em certo paço, já sem data e já sem dono...
Véspera triste como a noite, que envenene
a alma, evocando coisas líricas de outono...

..Num velho paço, muito longe, em terra estranha,
com muita névoa pelos ombros da montanha...
Paço de imensos corredores espectrais,

onde murmurem, velhos órgãos, árias mortas,
enquanto o vento, estrepitando pelas portas,
revira in-fólios, cancioneiros e missais...


SOB A TUA SERENIDADE...

Não me ouvirás... É vão... Tudo se espalha
pelos ermos de azul... E permaneces
sobre o vale das súplicas e preces
com solenes grandezas de muralha...

Minha alma, sem Te ouvir nem ver, trabalha
tranqüila. Solidão... Desinteresses...
Por que pedir? De tudo que me desses
nada servira a esta existência falha...

Nada servira, agora... E, noutra vida,
oh! noutra vida eu sei que terei tudo
que há na paragem bem-aventurada...

Tudo, — porque eu nasci desiludida,
e sofri, de olhos mansos, lábio mudo,
não tendo nada e não pedindo nada...


PANORAMA ALÉM...

Não sei que tempo faz, nem se é noite ou se é dia.
Não sinto onde é que estou, nem se estou. Não sei nada.
Nem ódio, nem amor. Tédio? Melancolia.
— Existência parada. Existência acabada.

Nem se pode saber do que outrora existia.
A cegueira no olhar. Toda a noite calada
no ouvido. Presa a voz. Gesto vão. Boca fria.
A alma, um deserto branco: — o luar triste na geada...

Silêncio. Eternidade. Infinito. Segredo.
Onde, as almas irmãs? Onde, Deus? Que degredo!
Ninguém... O ermo atrás do ermo: — é a paisagem daqui.

Tudo opaco... E sem luz... E sem treva... O ar absorto...
Tudo em paz... Tudo só... Tudo irreal... Tudo morto...
Por que foi que eu morri? Quando foi que eu morri?


A INOMINÁVEL...

Leve... — Pluma... Surdina... Aroma... Graça...
Qualquer coisa infinita... Amor... Pureza...
Cabelo em sombra, olhar ausente, passa
como a bruma que vai na aragem presa...

Silenciosa. Imprecisa. Etérea taça
em que adormece luar... Delicadeza...
Não se diz... Não se exprime... Não se traça...
Fluido... Poesia... Névoa... Flor... Beleza...

Passa... — É um morrer de lírios... Olhos quase
fechados... Noite... Sono... O gesto é gaze
a estender-se, a alargar-se... — E enquanto vão

fugindo aos passos teus, Visão perdida,
chovem rosas e estrelas pela vida...
Silêncio! Divindade! Iniciação!


CANÇÃOZINHA DE NINAR

O mar o convalescente mira.
— Que pena, que pena no seu mirar! —
Como quem namora, suspira,
e quem tem medo de se enamorar.

Água, que pareces um ramo de flores,
o nome dos humanos amores
mora na espuma do mar...

O céu o convalescente mira.
— Que pena, que pena no seu mirar! —
Como quem vai morrer, suspira
e quem tem medo de ressuscitar.

Nuvem, que pareces um ramo de flores,
o nome dos humanos amores
mora no hálito do ar...


2º MOTIVO DA ROSA (a Mário de Andrade)

Por mais que te celebre, não me escutas,
embora em forma e nácar te assemelhes
à concha soante, à musical orelha
que grava o mar nas íntimas volutas.

Deponho-te em cristal, defronte a espelhos,
sem eco de cisternas ou de grutas...
Ausências e cegueiras absolutas
ofereces às vespas e às abelhas,

e a quem te adora, ó surda e silenciosa,
e cega e bela e interminável rosa,
que em tempo e aroma e verso te transmutas!

Sem terra nem estrelas brilhas, presa
a meu sonho, insensível à beleza
que és e não sabes, porque não me escutas...


MUSEU

Espadas frias, nítidas espadas,
duras viseiras já sem perspectiva,
cetro sem mãos, coroa já não viva
de cabeças em sangue naufragadas;

anéis de demorada narrativa,
leques sem falas, trompas sem caçadas,
pêndulos de horas não mais escutadas,
espelhos de memória fugitiva;

ouro e prata, turquesas e granadas,
que é da presença passageira e esquiva
das heranças dos poetas, malogradas:

a estrela, o passarinho, a sensitiva,
a água que nunca volta, as bem-amadas,
a saudade de Deus, vaga e inativa...?


O RAMO DE FLORES DO MUSEU, 1

Ó cinérea Princesa, as vossas flores
ficarão para sempre mais perfeitas,
já que o tempo extinguiu brilhos e cores;

já que o tempo extinguiu a habilidosa
mão que elevou, serenas e direitas,
a túlipa sucinta e a ardente rosa

Não há mais ilusão de outra presença
que o Amor, que inspirou graças tão finas
— que ninguém viu e em que ninguém mais pensa —
porque os homens e o mundo são de ruínas

E este ramo de pétalas franzinas,
leve, liberto da mortal sentença,
tinha, ó Princesa, fábulas divinas
em cada flor, sobre o nada suspensa


O RAMO DE FLORES DO MUSEU, 2

Que fantasmas lerão, nas incolores
pétalas, as mensagens não aceitas
em nítidos momentos anteriores?

Que fantasmas verão a vossa airosa
figura erguendo as claras mãos desfeitas,
noutro império, a uma luz mais gloriosa?

Ó cinérea Princesa, é muito densa
do mundo humano a trama das neblinas...
A floresta do absurdo é negra, é imensa,
e as sibilas se escondem, repentinas.

Crepitam os junquilhos e as boninas
a um vento secular de indiferença.
Mas, entre vãs paredes vespertinas,
o ramo existe, sem que a morte o vença.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes