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Murilo Monteiro Mendes (Juiz de Fora MG 1901-1975)

Religiosidade, surrealismo, hermetismo: três tentativas de definir este complexo caso de mineiridade universal, cujos escassos sonetos são ainda mais indisciplinados que os do outro mineiro do universo, Drummond. Ao decassílabo o poeta sempre arranja um jeito de escapar, performando com êxito a difícil, quase impossível crise do soneto rígido sem desmoralizar o molde. Alguns exemplos:


O ESPELHO

O céu investe contra o outro céu.
É terrível pensar que a morte está
Não apenas no fim, mas no princípio
Dos elementos vivos da criação.

Um plano superpõe-se a outro plano.
O mundo se balança entre dois olhos,
Ondas de terror que vão e voltam,
Luz amarga filtrando destes cílios.

Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?
Correspondo a um arquétipo ideal.
Signo de futura realidade sou.

A manopla levanta-se pesada,
Atacando a armadura inviolável:
Partiu-se o vidro, incendiou-se o céu.


MEDITAÇÃO DA NOITE

Noites de lanças e estandarte azul,
Não vertes sobre a terra desconforme
O teu bálsamo antigo de sossego:
Vem antes o veneno da tua esfera.

Que destruições geraste no teu ventre
Enquanto os homens se velavam a face!
Templo de experiência e expiação,
O incenso da matéria se respira

Nas tuas arcadas nuas e rochosas.
Somos agora a raça clandestina
Que, noite hostil, ainda não pudeste

Das dobras dos teus panos remover:
Ululantes erramos pelo mundo,
Conduzindo nossa morte corporal.


O FILHO PRÓDIGO

À beira do antiuniverso debruçado
Observo, ó Pai, a tua arquitetura.
Este corpo não admite o peso da cabeça...
Tudo se expande num sentido amargo.

Lembro-me ainda que me evocaste
Do teu caos para o dia da promessa.
O fogo irrompia das mulheres
E se floria o sol de girassóis.

Uma única vez eu te entrevi,
Entre humano e divino inda indeciso,
Atraindo-me ao teu íngreme coração.

Para outros armaste o teu festim:
E da tua música só vem agora
O soluço da terra, dissonante.


O RITO HUMANO

Pelas curvas da tarde vem surgindo
A inefável palavra Agnus Dei.
Ouço balidos pelo mundo inteiro:
Matam o cordeiro branco redentor.

As armas do futuro desenhadas
Vejo no espaço, túmulos abertos:
Os balidos rebentam das gargantas
Até dos que inda estão para nascer.

De variadas maneiras matam o homem.
Matam a pureza, a paz, a liberdade,
Pelo cutelo, a bomba, a guilhotina,

Pelo silêncio, a fome, a solidão.
Fecha o leque de plumas o Oriente,
Abre o Ocidente o tanque de terror.


MONTANHAS DE OURO PRETO

Desdobram-se as montanhas de Ouro Preto
Na perfurada luz, em plano austero.
Montes contempladores, circunscritos
Entre cinza e castanho, o olhar domado

Recolhe vosso espectro permanente.
Por igual pascentais a luz difusa
Que se reajusta ao corpo das igrejas,
E volve o pensamento à descoberta

De uma luta antiqüíssima com o caos,
De uma reinvenção dos elementos
Pela força de um culto ora perdido,

Relíquias de dureza e de doutrina,
Rude apetite dessa cousa eterna
Retida na estrutura de Ouro Preto.


AO ALEIJADINHO

Pálida a lua sob o pálio avança
Das estrelas de uma perdida infância.
Fatigados caminhos refazemos
Da outrora máquina da mineração.

É nossa própria forma, o frio molde
Que maduros tentamos atingir,
Volvendo à laje, à pedra de olhos facetados,
Sem crispação, matéria já domada.

O exemplo recebendo que ofereces
Pelo martírio teu enfim transposto,
Severo, machucado e rude Aleijadinho

Que te encerras na tenda com tua Bíblia,
Suplicando ao Senhor — infinito e esculpido —
Que sobre ti descanse os seus divinos pés.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes