|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Emílio de Meneses (Curitiba PR 1866-1918)

Depois de Gregório, foi o maior satírico do soneto brasileiro. Apelidado "rei do trocadilho" e "o último boêmio", ficou também famoso por epigramas em trova. Boemia e irreverência foram, segundo consta, o motivo da má vontade de Machado quanto à admissão do gordo na Academia. Sobre um de seus anedóticos trocadilhos fiz o seguinte soneto:


SONETO 328 GORDO

Emílio de Meneses aproveita
a lenda de seu porte arredondado:
Com brilho, trocadilhos tem bolado,
e às vezes os limites não respeita.

De bonde viajando, certa feita,
sentou no mesmo banco, lado a lado
com outro tipo gordo avantajado,
mas tanto peso o assento não aceita.

"Primeira vez que vejo", disse, "um banco
quebrando, não por falta, por excesso
de fundos!", no seu tom jocundo e franco.

Sem dúvida, o segredo do sucesso
do gordo é não deixar passar em branco
a chance de gozar seu próprio sesso...

		Glauco Mattoso



Se alguém achou que fui deselegante em minha homenagem ao gordo, veja
como outros o homenageavam:


EMÍLIO DE MENESES [Esaó & Jacub]

Reunindo os deuses todos em concílio,
Trata-os a vinho de Hebe e a mel do Himeto
E, chaleirando-os, peço-lhes auxílio
Que agora em grandes áfricas me meto.

Jove, no entanto, franze o supercílio
E ameaça-me Plutão com rubro espeto;
E eu não sei como ponha o mestre Emílio
Entre as catorze malhas de um soneto.

Entram-lhe as pernas, entra o busto e agora
A cabeça prender-lhe experimento,
Em que a família do Parnaso mora.

Por mais que o intente é baldo o meu intento:
Qual! num soneto?! Ficam-lhe de fora
A papada, os bigodes e o talento.


E se alguém achou que o próprio Emílio era deselegante, veja como ele
não poupava sequer os outros gordos:


O PLENIPOTENCIÁRIO DA FACÚNDIA (a Oliveira Lima)

De carne mole e pele bambalhona,
Ante a própria figura se extasia.
Como oliveira — ele não dá azeitona,
Sendo lima — parece melancia.

Atravancando a porta que ambiciona,
Não deixa entrar nem entra. É uma mania!
Dão-lhe por isso a alcunha brincalhona
De paravento da diplomacia.

Não existe exemplar na atualidade
De corpo tal e de ambição tamanha,
Nem para a intriga igual habilidade.

Eis, em resumo, essa figura estranha:
Tem mil léguas quadradas de vaidade
Por milímetro cúbico de banha.


E se alguém achou que Emílio só alfinetava gente grande, veja como ele
tratava certos tipos populares:


SAI... AZAR!

Seis horas. Estação da Leopoldina.
Tomo o trem. Mal me abanco, uma velhota,
De setenta anos, fala, sopra, arrota,
Numa desenvoltura de menina.

Quero ler. A carcaça, de voz fina,
Tanto fala e me diz tanta lorota,
Que, na raiva, o jornal se me amarrota
E ainda o raio da velha me bolina.

Quero fugir. A peste me segura.
Por pouco mais me torno um assassino.
Sinto que passa um vento de loucura.

E julgo ver que, em meio ao desatino,
Eu era da polícia a atroz figura,
E a velha era a figura do Aurelino.


Na verdade, o gordo não poupava ninguém, nem a si mesmo e nem depois de
morto, a julgar pelos sonetos recebidos por Chico Xavier que figuram no
tópico sobre O SONETO PSICOGRAFADO. Nada lhe escapava à mordacidade, e,
desde um presidente da República Velha (Wenceslau Brás) até um pedagogo
negro (Hemetério de Souza), todos lhe mereceram sonetos implacavelmente
caricaturais. Seleciono abaixo alguns exemplos de personalidades e
curiosidades flagradas pelo gordo:


[UM MAGRO] (a Lauro Müller)

De uma magreza de evitar chuvisco,
Tem a altura fatal de um pára-raio.
Tão alto que, se o aspecto lhe rabisco,
Na vertigem da altura até desmaio.

Hoje é o senhor de cobiçado aprisco
De tenros diplomatas em ensaio;
Astuto, na rijeza de obelisco,
Não nos encara, espia de soslaio.

De alma arguta e sagaz, nada quimérica,
Feita de tino e de sabedoria,
Tudo a seu ver é uma função numérica.

Mas de andar e viajar, tem a mania.
— Cometa diplomático da América,
— Judeu errante da diplomacia.


[UM FEIO] (a Barbosa Lima)

Nada tem de ridícula a fealdade
Quando ela, em certas caras, se figura.
Quem vai rir da sinistra catadura
Com que o Barbosa Lima nos invade?

É uma cara abortiva. É, de verdade!
Se uma dama pejada o olhar lhe atura,
Ei-la já parturiente prematura,
Sem os encantos da maternidade.

Mas tem parentes a valer o cabra!
E para colocar qualquer parente,
Se não há vaga, faz com que ela se abra.

Tudo consegue por terror somente,
Pois que, mostrando a cara hostil, macabra,
Faz abortar o próprio Presidente!


[UM NARIGUDO]

Homem sério, porém politiqueiro,
De inteligência mais ou menos clara,
É um edil, camarista ou camareiro,
De raro estofo e de feição bem rara.

Mais seco do que arenque de fumeiro,
Todo feito em lasquinhas de taquara,
Sacode em contorções o corpo inteiro
E tem puxos de filme pela cara.

Tem um nariz de cinco ou seis andares.
Se ele o entulhasse, num mister diverso,
De bicha, traques, fogos populares,

Faria uma fortuna, — é incontroverso, —
Pois, naquele nariz, turvem-se os ares!
Cabem todos os traques do universo!


[UM VELHO CORRUPTO]

Marechal, senador e proprietário,
De alma vazia e de algibeiras cheias,
Ninguém conhece o sangue originário
Que lhe infla as mil nonagenárias veias.

É tão feio que, assim, nonagenário,
À sua própria fealdade une as alheias.
O seu rosto é um mosaico extraordinário
De pedacinhos de mulheres feias.

Mosaico de canhões, namoros cava.
E, no cinema, o pé reiúno toca,
Até que a dama, a rir, o mande à fava.

Se nalguma tourada se coloca,
Ele que, em tempos, foi um vaca brava,
Hoje não dá nem mesmo para choca.


[UMA MULHER GIGANTE]

Um tal caso me foi contado a sério
E tanta graça nele achei, mas tanta,
Que não guardo segredo nem mistério
Como pede um amigo do Marroanta.

Este, cedendo do desejo ao império
De conhecer a tal mulher giganta,
Procurou com cautela e com critério
Ver de perto a Abonah que às mais suplanta.

Ergo o entusiasmo quanto posso. Alcance-o
Quem o quiser e, dele, à altura suba,
Conforme diz o nosso amigo Amâncio.

Só sei que disse sacudindo a juba:
— Bela, para mulher do Henrique Câncio
Ou para proa do Comandutuba!


[UM HOMEM GIGANTE]

Foi-se a Abonah de colossal memória
Que, andando, percorria todo o espaço
Que vai da Lapa até o jardim da Glória
No simples movimento de um só passo.

O que a tornava ainda mais notória
Era a cor do seu couro escuro e baço
Enquanto que o Teotônio passa à história
Pela cabeça fulva de mormaço.

O vácuo que ela deixa está preenchido
Pelo tal alemão que, se não erro,
Dos homens é, no mundo, o mais comprido.

Ao vê-lo ruivo e magro, ouve-se um berro:
Deste, o Lopes Trovão é o pai querido
E a mãe é a cábrea Marechal de Ferro!


[UM HOMÚNCULO]

Tão pequenino e trêfego parece,
Com seu passinho petulante e vivo,
A quem o olha, assim, com interesse,
Que é a quinta-essência do diminutivo.

Figura de leiloeiro de quermesse,
Meloso e parecendo inofensivo,
Tem de despeitos a mais farta messe,
E do orgulho é o humílimo cativo.

Não há talento que ele não degrade,
Não há ciência e saber que ele, à porfia,
Não ache aquém da sua majestade.

Dele um colega, há tempos, me dizia:
É o Hachette ilustrado da vaidade,
É o Larousse da megalomania!


PROSOPOPÉIA DA PEPA AO PUPO (a Pepa Ruiz e Pupo de Morais, mercadores)

Parece peta. A Pepa aporta à praça
E pede ao Pupo que lhe passe o apito.
Pula do palco, pálida, perpassa
Por entre um porco, um pato e um periquito.

Após, papando, em pé, pudim com passa,
Depois de peixes, pombos e palmito,
Precípite, por entre a populaça,
Passa, picando a ponta de um palito.

Peças compostas por um poeta pulha,
Que a papalvos perplexos empulha,
Prestando apenas pra apanhar os paios,

Permuta a Pepa por pastéis, pamonha...
— Que a Pepa apupe o Pupo e à popa ponha
Papas, pipas, pepinos, papagaios!


[UM PRESIDENTE IRRELEVANTE] (a Wenceslau Brás)

Nem ótimo, nem péssimo. Vai indo.
Personificação do meio-termo,
Veio das vascas do governo findo
E é um paliativo no país enfermo.

Ora galgando altura, ora caindo,
Ora na multidão, ora num ermo,
Alguns afirmam que é um talento lindo,
Outros que é um pobre e simples estafermo.

De livres-pensadores teve os votos,
Continuando entre os boatos e os devotos,
A ser o que carrega a maior trouxa.

Da presidência, em meio à lufa-lufa,
Quanto mais se lhe bate — mais estufa,
Quanto mais se lhe aperta — mais afrouxa.


[UM DISSIMULADO] (a Júlio de Mesquita)

Com este agora a musa não contava!
Nem a musa mordaz, nem a brejeira,
Em certo dia o vejo a deitar lava,
Aproximo-me e encontro uma geleira.

Quando a aparência é fria, a alma está brava.
Se aquela é tormentosa, esta é fagueira.
E assim, da vida, o rumo, a sós, desbrava,
E, a sós, colima o termo da carreira.

Por muito que o humorismo o prenda e engrade,
Ele não esbraveja nem se irrita,
Mas se lhe escapa com facilidade.

A golpes de talento o laço evita
E ao ridículo opõe a habilidade.
Eis, mal pintado, o Júlio de Mesquita.


[UM FALSO PROFETA] (a Múcio Teixeira)

Múcio, o profeta, Múcio o hierofante,
Múcio que tudo cura e não se cura
Dos seus graves acessos de loucura,
Nem na fama de reles cartomante,

Talvez agora, num só breve instante
Por presente, pretérita e futura
Audácia, pague em horas de amargura,
O fez, o faz e o há de fazer por diante!...

Nada mais para inquérito é preciso,
A polícia debalde assim tateia
Em passo incerto, trôpego e indeciso!...

Ouça o conselho que lhe dá a "Colméia"
Com partícula vivíssima de juízo:
— Meta o Múcio, o profeta, na cadeia!


[UM PAULISTANO UFANO]

É um bandeirante novo, sem as botas
De andar em carrascais, ou serras brutas,
De penetrar nas mais profundas grotas
Ou se internar nas mais soturnas grutas.

É o bandeirante urbano nas devotas
Ânsias de ver em formas resolutas,
O esplendor das metrópoles remotas
Em plintos, colunatas e volutas.

Ele antevê, nas cores mais exatas
Da Paulicéia as graças infinitas,
No áureo fulgor de mágicas palhetas.

Porém, depois dos bons tempos de pratas,
Ele que é homem que detesta as fitas,
Sente a falta do "arame" nas gavetas.


[UM PAULISTA NARCISISTA] (a Amadeu Amaral)

Dizem que, às vezes, quer se achar bonito,
Mas, nem sendo Amadeu e sendo amado,
Mas muito amado mesmo, eu não hesito:
Se não é feio é bem desengraçado.

Entretanto se o vejo (isto é esquisito)
Através de um soneto burilado,
É mais que belo, afirmo em alto grito,
É o próprio Apolo que lhe fica ao lado.

Mais comprido que a universal história,
Este Leconte, com seu ar caipira,
Me deixa uma impressão nada ilusória.

Quando ele ao alto a inspiração atira,
Com a cabeça a topar no céu da glória,
É um guindaste a guindar a própria lira.


[UM MINEIRO AGIGANTADO]

Este vale, em toicinho, a inteira Minas;
Derretê-lo, seria um desencargo
Para a atual crise das gorduras suínas.
(O Monteirinho a isso põe embargo).

Arrota francos, marcos, esterlinas,
Mas uma alcunha o faz azedo e amargo:
"Senador Tonelada". Usa botina
Cinqüenta e quatro, à sombra, bico largo.

Tem uma proverbial sobrecasaca,
Cujo pano daria, em cor cinzenta,
Para o Circo Spinelli uma barraca.

Da do Oliveira Lima ela é parenta
Pois só o forro das mangas dá, em alpaca,
Para o novo balão do Ferramenta.


[UM GAÚCHO ESQUENTADO]

Lá na terra dos Pampas tem o nome
De Chimarrita, diz o Leal de Souza,
E este apelido afirmam que o consome
E é o que o há de levar à fria lousa.

Se lho repetem briga e já não come,
Não pára, não descansa, não repousa,
Agüenta a sede, suportando a fome,
Dando o estrilo feroz por qualquer cousa.

Entretanto, não tem os dotes falhos;
Do talento gaúcho é um belo adorno
E tem brilhantes feitos e trabalhos.

Rapadurescamente espalha em torno,
Uma impressão de cheiro a vinha-d'alhos,
De um leitãozinho mal tostado ao forno.


[UM GAÚCHO PETULANTE]

Empertigado malandrim pachola,
De polainas, monóculo e bombachas,
Mandou pôr nas botinas meia sola
E abandonou de vez Porto das Caixas.

Traz registradas na caraminhola
Marcas de pontapés e de bolachas;
Faz versos; nos lundus ao tom da viola
É o Conde Monsaraz das classes baixas.

De Senhá-Flor na rabadilha, ansioso,
De focinho no ar e ereto rabo
Tem estesias de cachorro gozo.

Come sardinha e dois vinténs de nabo;
Bufa num quebra-queixo pavoroso
E arrota petisqueiras de nababo.


[UM MÚSICO BARBUDO]

Tem a doença do som e a fatuidade
De pensar que todo ele, fibra a fibra,
É o sonoro instrumento em que só se há de
Vibrar o canto em que o universo vibra.

No seu queixo que pesa mais de libra,
E de pêlos na escura densidade,
Pensa que o contraponto se equilibra
À harmonia da capilaridade.

Quando, às vezes, a crítica o abarba
Ele, acudindo ao exigente apelo,
Do ardor de um gênio musical se engarba.

De um filho de Isaú, a cara é o selo,
Pois nem o Padre Eterno tem mais barba,
Nem as onze mil virgens mais cabelo.


[UM POETA DE NOMEADA] (a Asclepíades Jambeiro)

Para o teu nome a fórmula sintética
Vou fazer, ó de Ulisses companheiro,
Sem fugir às leis clássicas da estética
E partindo da análise primeiro.

Tiraste os quatro pés (isto é dialética)
Do verso asclepiadeu e, prazenteiro,
Ao jâmbico emprestando rima poética,
Eis-te agora Asclepíades Jambeiro.

Dos quatro pés ficou-te a inteligência
Pois é nela que mora o asclepiadeu,
Diverso apenas pela desinência.

Da alma ao corpo a tua métrica desceu
E, conforme as leis da arte e as leis da ciência,
Dáctilo tens um pé e outro espondeu.


[UM POETA ATEU] (a Saturnino Barbosa)

Pedagogo pernóstico e pedante
Com vastas pretensões a literato;
Barrigudinho, cético, insensato,
Portador de uma cara extravagante.

Eis o poetastro trêfego e barato
Que o chicote da crítica ululante
A zero reduziu, no mesmo instante
Em que passou a residir no mato.

Hoje não vibra mais, é letra morta,
Nem sonetos, nem livros maltrapilhos:
Passa o tempo a pedir, de porta em porta.

Há de acabar assassinando os seus,
Como Saturno a devorar seus filhos,
O matador sacrílego de Deus.


[UM CRÍTICO CÍTRICO]

É, sem tirar nem pôr, um grande jornalista.
Quando erra ou quer errar, erra com matemática.
Faz uma escaramuça e o jogo salta à vista
Mas não há quem resista à formidável tática.

Torce algebricamente a verdade e conquista
O aplauso até de quem tenha traquejo e prática.
Sei-o mesmo por mim que, apesar de trocista,
Nunca deixo de o ler (restrições à gramática).

Mas, em arte, Jesus! Nem se aproveita a cinza.
Como crítico é igual aos outros. Deixa o suco
E, fibra a fibra, toda a bagaceira espinza.

Todo o crítico é assim, mais ou menos, caduco.
Sendo em arte incapaz, na obra alheia é ranzinza.
— O crítico, em geral, é uma espécie de eunuco.


[UM CRÍTICO CASTIÇO]

Este é o ranzinza-mor, porém no bom sentido.
Monta guarda à pureza e à precisão do idioma.
É o espectro do imbecil, o horror do presumido;
Contra ele a arraia miúda o ódio que tem não doma.

Geninhos da Garnier, geniões de ar sucumbido,
Poetinhas de salão, poetarrões de redoma
Que deturpam a língua, ai deles! é sabido:
O cacete é aforismo e a cacetada é axioma.

Mas este foge à lei (que aliás é conceituosa)
De que a crítica faz só aquele que, perverso,
De produzir, o orgulho e a delícia não goza.

De pena o bico atroz, no vernáculo, imerso,
Se a sabe esmerilhar, sabe polir a prosa,
Se o sabe criticar, sabe compor o verso.


[UM DIPLOMATA ARGENTINO]

Nada de raivas, ódios e rancores
Contra as provas de afeto da Argentina,
Que, para nos livrar dos dissabores
Escolhe um estadista papa-fina.

Da vizinha, entre os grandes oradores
Nenhum existe que melhor defina
Num congresso qualquer os seus amores
Por estes "macaquitos" que ela ensina.

Rebadalando vinte mil badalos
Para mostrar-lhe quanto está contente
Deve o Brasil, à língua, dar estalos.

Além disso, a Argentina (isto é eloqüente)
Se a tal congresso, manda um tal Zeballos,
Prova que ela, coitada! — não tem gente.


[DIPLOMACIA ARGENTINA]

Era uma vez um cão inteligente
Que aos pés do dono, quieto, ressonava
Mas que fez escapar subitamente
Ruidoso gás que à tripa acumulava.

Compreendendo quanto era inconveniente
E que o próprio dono por isso o castigava
Ao próprio rabo mostra afiado dente
Dando à cara expressão severa e brava!

Da Argentina a imortal diplomacia
(Eu desta descoberta aqui me gabo)
No tal caso do Chile assim dormia!

Mas coitada! — foi mesmo obra do diabo:
Acorda e, vendo a rata que fazia,
Vira o focinho e rosna ao próprio rabo!


[UM NEGRO ILUSTRADO] (a Hemetério de Souza)

Neto de Ubá, do príncipe africano,
Não faz congadas, corta no maxixe;
Herbert Spencer de ébano e de guano,
É um Froebel de Nanquim ou de azeviche.

No pedagogium de que é soberano,
Diz que: — Comigo a crítica se lixe;
Sou o mais completo pedagogo urbano,
Pestalozzi genial pintado a piche!

Nagi fez da cor preta a cor reiúna.
Na vasta escala da ornitologia,
Se águia não é, também não é graúna.

Um amador de pássaros diria:
Este Hemetério é um pássaro turuna,
É o vira-bosta da pedagogia.


[UM NEGRO ILUSTRADO (II)]

O preto não ensina só gramática.
É pelo menos o que o mundo diz.
Mete-se na dinâmica, na estática
E em muitas coisas mais mete o nariz.

Dizem que, quando ensina matemática,
As lições de mais B, de igual a X,
Em vez de em lousa, com saber e prática,
Sobre a palma da mão escreve a giz.

Uma aluna dizia: — Este Hemetério
Do ensino fez um verdadeiro angu,
Com que empanturra todo o magistério.

E é um felizardo, o príncipe zulu,
Quando manda um parente ao cemitério,
Tem um luto barato: fica nu.


DOMINGO QUENTE

Isto não é um domingo, é um crematório.
O vento é o bafo de algum forno aéreo.
Cada trabalho é um desperdício inglório,
Tem cada esforço a marca de um cautério.

Mas, afinal de contas, cebolório!
Quem, clima tal, pode levar a sério?
Sinto na alma o tostado do Sertório,
E na pele o queimado do Hemetério.

O Hemetério dá assunto... Mas precário.
Dizer-se que ele é branco e é preto o lírio?
Desse tema já tem ele um rosário.

Estes "Salpicos" são o meu martírio!
Ah! Lembro agora o nosso pobre erário:
O Pandiá, finalmente, é grego ou sírio?


O FORO EM FÉRIAS

Hoje entra o foro nas sabidas férias.
Mas que férias ainda quer o foro?
Se a justiça é preguiça, que ouça lérias,
O que é melhor que ouvir um desaforo.

Se estas coisas são mesmo coisas sérias,
Que se guarde, é melhor, certo decoro,
Que andarem juízes a fazer pilhérias
E a veranear em centros de namoro.

Não me refiro ao Pedro Francelino,
Que é velho e surdo, o que não é segredo,
Mas que, entre damas, finge de menino.

Esse, o Celso e mais outros têm tal dedo,
Que até parece terem por destino
Imitar o Torquato Figueiredo.


O BUSTO DO CÉSAR... DE CAXANGÁ

Não consentimos que o escultor nos venha
Mostrar, em bronze, o malfadado busto
Do César de arraial, César da Penha,
Que anda a fingir de poderoso e justo.

O artista está a pensar que o santo e a senha
Nos há de dar o César, que hoje, a custo,
Suporta da Opinião o relho e a lenha,
Que não é Caio e nada tem de Augusto.

O soneto de bronze do Solfieri
A que a GAZETA alude em tom faceto,
Abona o poeta sem que o riso gere.

Mas ao Dantas, nem busto, nem soneto!
Busteá-lo ou sonetá-lo a alma nos fere:
César, é César, Dantas é... Barreto!


SEGREDOS... SEGREDOS...

Diálogo ouvido anteontem, muito cedo:
— O poeta dos "Salpicos" anda torto.
— Do pé? Da mão? Das mãos? Dos pés? De um dedo?
— Não! Fica ao largo sem entrar no porto...

— Não compreendo. — Pois ouça, mas... segredo!
Ele pensa que mata e dá conforto.
Porém, se prega a trama e entra no enredo,
O Chimarrita, há muito, era homem morto!

— Cada vez, vejo as coisas mais escuras.
— Ouça-me a história e, na memória, grave-a.
Maximiliano afirma entre mil juras:

Prefiro, a pé, subir o alto da Gávea,
Contra mim próprio, ler descomposturas,
A ler um elogio ao Rivadávia...


UM DESPACHO ESCABROSO

A vistoria deve ser completa:
O pé-direito para começar,
O porão habitável, a área infecta,
Tudo isto é simples e rudimentar.

Ai!... se eu fosse engenheiro, em vez de poeta,
Iria, com dispensa do auxiliar,
Calculando o valor para a coleta,
À frente e aos fundos de qualquer andar.

Os comentários, pois, assim brejeiros,
Da GAZETA não têm muita razão.
Os peritos são firmes e certeiros.

Em certos casos de Obras e Viação
Não são moles nem nada os engenheiros...
E o próprio chefe deles é um Durão.


POISSON D'AVRIL

Não há coisa tão pulha e tão cediça
Como essa de pregar insulsa peta
A primeiro de abril. (É de justiça
Dizer que não há disso na GAZETA).

Há quem mande anunciar que se diz missa
Por alma de quem vive. Há quem se meta
A enviar pastéis de areia ou de cortiça,
Ou do que lhe dá, acaso, na veneta.

Mas tudo isso é tão velho e tão batido
Que ninguém come do pastel funesto,
Nem ouve a missa pelo "falecido".

Um, porém, teve graça, não contesto!
Foi o "poisson d'Avril" de um "a pedido":
— O Monteirinho declarou que é honesto!


DEDICATÓRIA (numa página de livro)

Não fora o medo de uma rima em igre
E, nela, eu moldaria este soneto.
Mas vejo o caso preto, mas tão preto,
Que a própria tinta preta mais denigre.

Eia! Alma à larga! O medo, dela, emigre
Pois lá acima, já está, pronto, um quarteto,
E eu creio bem que, dando um tom faceto,
Alcanço um D. Xiquote e amanso um tigre.

Bem! Vou ver se consegue este terceto
Que o verbo "denigrar" para ele imigre
(O "denegrir" já foi metido a espeto).

Que um não denigra e que outro não denigre
A intenção de ofertar este folheto
Ao talento sem par do Bastos Tigre.


[A JOGATINA]

Tenham paciência, amigos do CORREIO!
Esse caso está torto, torto, torto,
E, desta vez, vocês fizeram feio,
Mas um feio, mais feio que um aborto!

Eis a verdade: Já que não há meio
De ver, por uma vez, o jogo morto,
Tira-se dele, ao menos, o custeio
De asilos para os que não têm conforto.

Zarpar o Pão de Açucar barra fora,
O Paranapiacaba ser fedelho,
Ver o Monteiro Lopes cor da aurora,

É mais fácil que, em jogo, ouvir conselho!
Logo, se os vícios, o vicioso adora,
Pague os vícios, e: Viva o Érico Coelho!


[VOTO DIRETO]

Enquanto o voto, que é função de crítica
Alta função do senso e da moral,
Da inteligência lúcida e analítica,
For exercido por qualquer boçal,

Hão de rir os patifes da política
Que ensangüentam esta capital,
Explorando a ilusão fasa e jesuítica
Do estafado sufrágio universal.

Por isso ó caro Gil Vidal, emprega
O teu talento e a tua sã razão,
A ver se se transforma esta bodega.

A não ser isso, faça-se a eleição
Para evitar depois o pega-pega,
No local apropriado: a Detenção...


[CARGA TRIBUTÁRIA]

Certo "pau-d'água" que um pifão tremendo
Tomara, tudo em duplicata via
E assim, de dupla vista um poste vendo:
"Tão perto um d'outro, dois lampiões" dizia.

— "Mas eu por pouca coisa não me prendo;
Vamos! o centro deve ser meu guia!"
Avança e a testa ao poste em choque horrendo
Bate: "Deste do meio eu não sabia!"

Ao contribuinte que anda meio tonto
Por tanto imposto que lhe cai no pêlo
Apliquemos agora aquele conto.

Na duplicata do Conselho, é vê-lo
Ir pelo meio a ver se escapa e pronto,
Passa entre os dois mas cai no Serzedelo!


[ALCOOLISMO]

A leitura do tópico tremendo
À lembrança me trouxe uma anedota
Velha, tão velha quanto aquela bota
Que era toda o Larousse do remendo.

Certo alcoolista, um sábio artigo lendo
De um médico alemão de grande nota
Contra o álcool, diz em compulsão devota:
"Como ele prova quanto o vício é horrendo!"

E acrescenta: "A verdade em mim desperta!
Eu não quero pelo álcool cair morto,
Vou dizê-lo bem alto e de alma aberta!"

Tal leitura me traz tanto conforto,
Que vou beber saudando a descoberta
Três garrafas de bom vinho do Porto!...


[ALCOOLISMO (II)]

Viram? O caso até parece peta!
Quem leu acaso, ao lado, o outro soneto,
Vê que, comigo, está fazendo um dueto
A séria e severíssima GAZETA.

Se, de um lado, lhe veio hoje à veneta
Mostrar do vício o fúnebre esboceto,
De outro lado vai dando, em tom faceto,
"Reclame" à clara, à escura, à mista, à preta!

É que não tem razão a velha rixa
De quem, às claras, bebe por capricho,
Com quem, ocultamente, escorropicha:

Do barril de bom chope, ao claro esguicho,
Depois de salgadíssima salsicha,
Deixem lá que é bem bom matar o bicho!...


MARIPOSAS

Dão-me os jornais notícia de uma empresa
Fundada para dar cartas de fiança
Quanto a aluguel de prédios. Com certeza
Grande futuro tal idéia alcança.

Vai fazer, pelo menos, a limpeza
De umas imundas sucursais do avança,
Que exploram com torpíssima esperteza
Todo aquele que quer fazer mudança.

E tanto elas embrulham inquilinos
Como sai embrulhado o proprietário
Com fiadores matreiros e ladinos.

Tenha portanto a empresa por fadário
Dar cabo desses antros clandestinos
Que assim presta um serviço extraordinário.


O MEU BATISMO

Quis alegre surgir pela manhã
Do dia de hoje a procurar alguém
Que quisesse a alegria honesta e sã
Que estas páginas trêfegas contêm.

Fugindo ao nosso eterno rã-me-rã
Busquei um nome que casasse bem
Aos gostos de uma folha folgazã,
E a meu próprio aqui dou meu parabém!

Lembraram-me diversos, mas nenhum
Deles, não sei por que, pude achar bom
E quase estive a batizar-me "Pum!" —

Mas passa um automóvel. Pego o som:
— Fan-fan! — Fen-fen! — Fin-fin! — Fon-fon! — Fun-fun!
De fan-fen-fin-fon-fun, quis ser FON-FON!


[AGRADECENDO UM ALMOÇO]

Esta idéia de almoço, eu por mim já sabia,
Não podia deixar de ser obra do Oswaldo,
Pois o que mais lhe ameiga e abranda a fantasia
É o gozo do pirão, é a bóia, é o grude, é o caldo.

Entre um novo sermão e uma nova iguaria
Fica, de senso falho, e de bom senso baldo.
Ele ingere um tutu, rosnando a Ave-Maria
E, deglutindo um bife, invoca São Geraldo.

Já que a mesa me traz a estupenda vantagem
De ver-vos a meu lado, alegres, fartos, sãos,
Mastiguei e digiro, a gosto, esta homenagem.

Mas, olhem! Tudo na vida tem o seu senão:
Depois de tanto cibo e tanta beberagem
Não vá da idéia o pai morrer de indigestão.


[VIGARICES]

Que o delegado de olho vivo seja
Nesse inquérito, ao qual já deu início
E, se a verdade descobrir deseja,
Note que o gajo é mestre no artifício.

Com tal nome não vai à minha igreja,
Pois de pátria não ter, tem ele o vício:
Em qualquer parte em que Patrício esteja
Ele de todos há de ser patrício.

O caso nada tem de extraordinário:
O vigarista, porque andasse pronto,
Viu no patrício o desejado otário.

Mas repare só a polícia neste ponto:
Se prender o contista do vigário,
Não deixe solta a vítima do conto.


[SANTOS FERIADOS]

Sem ter ofício certo, o nosso papa
Matuta agora em que passar o dia.
Da prisão que o envolve não se escapa
E, de Veneza, sofre a nostalgia.

Do mundo crente dominando o mapa
E, exercendo a maior soberania,
Vê, entretanto, que o mundo se lhe escapa
E não conhece o que dirige e guia.

Para se distrair, o prisioneiro,
Os dias santos, impiedoso, corta
Mas um concede ao celestial porteiro!

E não fizesse que, de cara torta,
Quando soltasse o alento derradeiro,
São Pedro, à face, lhe trancava a porta!


[DESFALQUES ECLESIÁSTICOS]

Seu cônego Rangel, brabo não seja!
Ninguém furtou seu rico patrimônio;
Ninguém foi profanar a sua igreja;
Você se perde num caminho errôneo.

Não sei por que você grita e troveja,
Sem ser procurador de Santo Antônio.
Até parece nessa má peleja
Que há dentro de você qualquer demônio.

O santo, dizem, era irmão dos pobres.
Santo Antônio dos pobres, não o nego,
Foi um santo dos mais puros e nobres!

Mas dos "irmãos" nenhum foi burro ou cego
E o que deixaram, carregando os cobres,
Não chega a dar quatro vinténs no prego...


IMPRESSÕES DE VIAGEM

(a Monna Delza, que declarou que no Rio as portas e janelas das casas
nunca são fechadas)

Como é bela a mentira quando nasce
De uma formosa boca feminina!
Nem nos faz o rubor subir à face,
Tanto é discreta, delicada e fina.

Se o que a Monna declara, declarasse
O Belisário Távora, imagina
O leitor que esta coisa assim ficasse,
Sem protestos da crítica ferina?

À Delza agradecemos a carícia
Das suas doces impressões de viagem,
Nas quais não há nem sombras de malícia.

Mas cá no seio da camaradagem,
Se assim fosse, que glória a da polícia
E que vergonha para a gatunagem!


NOTURNO

Tudo cor de azeitona. Fim do mês.
Noite opípara: a lua, qual pedaço
De manjar branco, gira pelo espaço.
Ergue-se o monte como um bolo inglês.

Vejo a calda do oceano e a languidez
Da geléia d'arbustos que, em melaço
De orvalho, treme à aragem. Há um bagaço
De nuvens no ar. O mar, de vez em vez,

Lança n'areia espumas de cerveja...
Vejo um sorvete e até de abacaxi
Sob a forma de torre de uma igreja!

Pelo espinheiro além, quanto palito!
E as estrelas, no céu, longe daqui,
São biscoitos jogados no infinito!


MESMICE

Quisera eu pôr nestes quatorze versos
Um leve, fino, alegre comentário
A algum novo e notável caso diário,
Entre os casos urbanos mais diversos.

Percorro dos jornais o noticiário,
Leio artigos e tópicos dispersos,
A pedidos satânicos, perversos,
Desastres, crimes, contos-do-vigário.

Nada encontro que inspire à alegre musa
Uma nota satírica e atrevida
Que nos nervos um frêmito produza.

É sempre a mesma coisa repetida:
Luza o sol, venha a noite, o sol reluza,
Como o banal, se reproduz a vida!


O GATO PRESO

Malvado Gato, Gato irreverente,
Que sem pena os políticos arranhas,
Que enches de medo da polícia a gente
Com as tuas endiabradas gatimanhas.

A polícia persegue-te inclemente
E uma reclame estardalhante apanhas.
Aumentas a edição galhardamente
E, com os aplausos, mais "crame" ganhas.

Escaldado, não temes água fria;
De unhas de fora, investes com coragem
Contra a bajulação e a hipocrisia.

Elas, sentindo os arranhões, reagem;
Mete a polícia o Gato na enxovia,
Deixando em liberdade... a gatunagem.

Outra faceta do gordo foi o talento publicitário, que humilharia os
aspirantes a Olivetto da mídia atual, incapazes de diferenciar
expressões como "costas largas" e "costas quentes". Na época era comum
poetas serem autores de anúncios que, na falta de rádio ou TV, eram
afixados em locais públicos, inclusive bondes. Tem sido lembrado o poema
de Bastos Tigre para um remédio popular, exibido em todo bonde:

Veja, ilustre passageiro,
O belo tipo faceiro
Que o senhor tem a seu lado!
E no entretanto, acredite,
Quase morreu de bronquite:
Salvou-o o Rum Creosotado.

Para uma marca de fósforo Bilac teria feito a seguinte trova:

Aviso a quem é fumante:
Tanto o Príncipe de Gales
Como o Doutor Campos Sales
Usam fósforos Brilhante.

De Emílio reza a lenda que (segundo José Olino de Lima Neto, apud Eno
Teodoro Wanke in A TROVA LITERÁRIA), "o fabricante do sabonete para a
pele Cuticura (de 'cura a cútis') cometeu a imprudência de, em plena
madrugada, 10 horas da manhã, bater em casa de Emílio, para lhe
solicitar uma trova de propaganda. O boêmio se levantou da cama para
atendê-lo. Quando o sujeito lhe explicou a que vinha, o bardo, ainda
meio tonto de sono e de mau-humor," saiu-se com esta:

Quando Emílio de Meneses
Acorda de pica dura,
Diz para ela três vezes:
"Só o sabão de Cuticura!"

Anedotas à parte, o gordo se consagrou, sob o pseudônimo de Gabriel
D'Anúncio, com versos publicitários até em forma de soneto, como estes
para o xarope Bromil e para a marmelada Colombo:


UM MILAGRE

Lira: Se qual o azeite anda por cima,
Nada a muda do branco para o preto,
E nem perde a verdade apreço e estima
Pelo fato de a expor em tom faceto;

Como tudo que existe cabe na rima,
Bem cabe um atestado num soneto.
Por isso, a idéia que hoje aqui me anima,
Nestes quatorze versos lhe remeto;

Pode afirmar, por toda a eternidade,
Aos mil que sofrem e aos descrentes mil,
Que isso que aí vai é a essência da verdade!

De horrível tosse que me pôs febril,
Dei cabo, usando apenas a metade
De um milagroso frasco de Bromil.


PYRUS CYDONIA

Áureo-glauca, ora a casca desta fruta
Se veste de sutil, ligeiro velo,
Ora aparece nítida e impoluta,
No brilho vegetal, cetíneo e belo.

Qual carne virgem, sua polpa enxuta,
Levemente tocada de amarelo,
A humana gula em ânsias a disputa;
Abre a cobiça o sápido marmelo.

Nem a fama dos pomos de Atalanta
Ou de maçã de Newton que, num tombo,
Criou lei nova, o nome lhe suplanta!

O que, entretanto, em épico ribombo,
Mais o enaltece e o traz em glória tanta
É a marmelada esplêndida Colombo.



Além e acima, porém, dos rótulos de boêmio, trocadilhista, panfletário
ou publicitário, o gordo faz jus a um posto entre os parnasianos mais
perfeccionistas, artífice que foi do soneto solene e até elevado, como
demonstra a pequena seleção que faço abaixo:


OS TRÊS OLHARES DE MARIA

I A ANUNCIAÇÃO

Entre gente modesta, a existência prosaica,
Longe do grande luxo e vivendo distante
Do fausto babilônio e da pompa caldaica,
Sem nada a lhe turvar o angélico semblante;

Diz uma tradição de santa lenda arcaica
— Cuja veracidade a Escritura garante —
Floresce a melhor flor da família judaica
Como um lótus ideal de aroma penetrante.

Vive calma e feliz. Todo o seu bem resume
Em ter, pelo seu Deus e seu supremo guia,
Tudo o que a dor lhe acalme e os sonhos lhe perfume.

"Mãe do Senhor serás" — o arcanjo lhe anuncia
E Ela acende no olhar do espanto o estranho lume!
— Era o primeiro olhar dos olhos de Maria!... —


II A PAIXÃO

Messias anunciado e do Céu predileto!
Tu que és Filho de Deus e Rei do mundo todo,
Filho da minha crença e meu primeiro afeto,
Sofres dos maus, assim, o repelente apodo?

Tens o Teu coração de bondade repleto
De perdões e de fé, de audácias e denodo;
E eu vejo assim na terra, o Teu divino aspecto
Maculado de sangue e coberto de lodo!...

Será possível, Deus! Pai da suprema graça!
Que assim deixes passar pela dura agonia
Porque Meu Filho, o Teu, por entre os homens passa!?...

E nisto, a Virgem-Mãe, cujo olhar irradia,
Tem nos olhos a dor e a dúvida a traspassa!...
— Era o segundo olhar dos olhos de Maria!... —


III A ASCENSÃO

Sinto-te, enfim, Senhor! Sei quem és Tu, meu Filho
Que de Teu Pai trouxeste aos algozes da terra,
O roteiro que mostra o verdadeiro trilho
Que vai de bosque em bosque e vai de serra em serra.

Agora sinto, enfim, que todo o estranho brilho
Que nos meus olhos vês e nos Teus olhos erra,
No humano coração não encontra empecilho,
Todo o rancor acalma e acalma toda a guerra!

É assim que a Virgem-Mãe, entre preces, murmura
Vendo, entre nuvens de ouro e rara pedraria
A ascensão de Jesus para a infinita altura!...

Que era o filho de Deus, tudo lhe ali dizia...
E em seus olhos brilhava a suprema ventura!...
— Era o terceiro olhar dos olhos de Maria!...


NOITE DE INSÔNIA

Este leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito,
Onde este grande amor floriu, sincero e justo,
E unimos, ambos nós, o peito contra o peito,
Ambos cheios de anelo e ambos cheios de susto;

Este leito que aí está revolto assim,
Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto,
Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito,
Mudou-se, para mim, num leito de Procusto!...

Louco e só! — A noite vai sem termo
E, estendendo, lá fora, as sombras augurais,
Envolve a Natureza e penetra o meu ermo.

E mal julgas talvez, quando, acaso, te vais,
Quanto me punge e corta o coração enfermo,
Este horrível temor de que não voltes mais!...


ÚNICA

Fruto efêmero e hostil de um efêmero gozo,
Esta vida que arrasto, efêmera e improfícua,
Sinto-a embalde, e, debalde, entre pasmado e ansioso,
Sondo-a, palpo-a, examino-a, estudo-a, verifico-a.

E tudo quanto empreende o espírito curioso,
E tudo quanto apreende a análise perspícua,
É o falso, é o vão, é o nulo, é o mau, é o pernicioso,
Por menos que a razão seja perversa ou iníqua.

Logo, por que pensar? Logo, por que no Sonho
Não havemos deixar correr a vida fátua,
Obrigando o Destino a ser calmo e risonho?

Por que só não amar: É culpa? Eis-me: resgato-a
Agora que a teus pés todo o meu ser deponho,
Como um vil pedestal à tua excelsa estátua!...


VINTE ANOS DEPOIS...

"Feia — tu me disseste — o teu amor de outrora,
— Resíduo de mulher, arcabouço de um sonho,
Escrava de um burguês presumido e enfadonho,
Feia e velha mal vive a morrer de hora em hora!"

E tu, poeta querido, a cuja alma sonora,
Sempre, em meu culto de arte, as estrofes deponho,
Mergulhaste ao falar-me este meu ser tristonho,
Numa recordação que me embevece agora!

Vejo-lhe a alma infantil de há vinte anos! Revejo
Tudo que houve entre nós nessa manhã de Maio
Que só fez perpetuar o insaciado desejo!

Toda a vida a passar mais rápida que o raio,
Ao néctar virginal do seu primeiro beijo,
Na volúpia imortal do primeiro desmaio!...


O POETA DEUS

Quando a terra volver, de novo, ao caos que a espera,
À imensa escuridão da treva indefinida;
Quando tudo que é som, que é luz, que é primavera,
Mundo e negro fizer a eterna despedida;

Quando não mais houver, no espaço, uma só esfera,
Nem, na amplidão vazia, uma só luz perdida;
Quando, sem água o mar, sem calor a cratera,
Em nada mais houver um vestígio de vida;

Hás de ver ao compor as estrofes de um hino,
A Vida ressurgir ao sopro do teu Verso,
Ao fecundo clangor do teu Alexandrino!...

Pois tens, Poeta Supremo! em tua essência imerso,
Dos Deuses, Deus também, todo o poder divino,
De fazer reviver, no Nada, outro Universo!


BENDITO CATIVEIRO

Eis-me quase senhor do meu próprio indivíduo.
Eis-me quase senhor de mim mesmo, entretanto,
Eu que, outrora, da Musa, era o operário assíduo,
Sinto que o Estro me foge aos estos deste Canto.

Embalde aqui o desbasto! Esculturo-o, lapido-o,
E áspero e bronco aí fica inerte a esforço tanto!
É que dentro em meu seio ainda existe o resíduo
De recalcada angústia e mal contido pranto.

Livre e senhor de mim, — tropeço ante a Cadência.
A Rima, à haste do Verso, a custo se equilibra,
E eis-me infecundo e vil na minha independência!

É que a Lira, liberta, estala, fibra a fibra,
Pois essa liberdade é feita da tua ausência,
E é só presa de ti que esta minha alma vibra!


MARCHA FÚNEBRE, II

Esvaziaram de todo a cova em que dormiste
O sono a que ainda tens a tu'alma sujeita,
E vem dela o som cavo, o monótono e triste,
Vão queixume da terra em lágrimas desfeita.

Sinto distintamente! Esse queixume existe:
É a saudade da terra aos teus ossos afeita;
É o soluço que vem da cova em que dormiste
O sono a que ainda tens a tu'alma sujeita.

Há por tudo o rumor de um choro desolado;
Cantam chorosamente as árvores e os fossos;
Nossas almas lá vão, unidas lado a lado...

Espalharam à noite os teus brancos destroços
E a noite, na viuvez do teu perfil amado,
Verte funereamente o luar sobre os teus ossos!...


OLHOS FUNÉREOS, I

Esse olhar cuja luz, nesta elegia, canto;
Que, apesar de funéreo, aviva um peito exausto,
Encerra para mim o extraordinário encanto
De um palácio que dorme à sombra do seu fausto.

Olhar que mesmo enxuto a outro olhar mostra o pranto
E que passa por nós como um prenúncio infausto.
Dentro da orla da cor roxo-azul de agapanto,
Que o circunda, ele acende um fogo de holocausto.

Frio é sempre esse olhar imprevisto de orago
Que profetiza a morte e a vida nos consente
Dentro do seu negror amortecido e vago.

Fátuas fulgurações o animam de repente;
Mas toda a luz que espalha aquele olhar aziago
É o sinistro clarão de uma câmara ardente.


OLHOS FUNÉREOS, II

Olhos feitos de treva e feitos de martírio,
Macerados ao fundo augural das olheiras,
Surgem dessa brancura imaculado lírio
Que a sombra clausural põe na face das freiras.

Olhos! vosso fulgor é o fulgor do delírio;
É o supremo clarão das Horas-Derradeiras.
— Luz mortuária e final, a agonizar num círio,
Alumiando um tendal de tíbias e caveiras. —

Sois do fel do viver a embebedora esponja;
Cantam dentro de vós os responsos e os salmos
De um mundo onde não há nem traição nem lisonja.

E a dona angelical, desses dois olhos calmos,
Como que nos faz ir, volvendo o olhar de monja,
Em doce romaria ao val dos Sete-Palmos.


OLHOS FUNÉREOS, III

Lê-se no seu olhar o derradeiro tomo
De um estranho missal feito de ritos vários,
E ante o qual as paixões e os sentidos eu domo
Numa genuflexão de aras e de sacrários.

Circundam-lhe o negror dos seus olhos mortuários
As olheiras da cor cristã do cinamomo,
— Cor do fumo que sai de amplos turibulários
Ascendendo para o ar em litúrgico assomo. —

Qualquer que seja a luz que desse olhar irrompa,
Nunca há nele a agudez de uma nota encarnada
Nem o alegre estridor de alaridos de trompa.

Traz-nos sempre à lembrança em feral desfilada,
O fúnebre esplendor e a lutulenta pompa
De um féretro suntuoso em caminho do Nada.


OLHOS FUNÉREOS, IV

Dentro do funeral dos seus olhos pressagos,
Enlutados talvez por algum sonho extinto,
Como na estagnação sinistra de dois lagos
Mira-se duplamente a mesma flor do Instinto.

Olhos! vós sois, por certo, o fúnebre recinto,
Onde vêm responsar, aos íntimos estragos,
Os restos de ilusão que dentro d'alma sinto
E que são para mim meus únicos afagos.

Perturba a placidez do meu sonhar de asceta,
O augúrico fulgor dos seus dois negros cílios
Imponderáveis como asas de borboleta.

Os meus mortos ideais em teu olhar, asile-os
Essa, que ele me abriu, cova humilde e discreta,
Onde irei sepultar meus últimos Idílios...


OLHOS FUNÉREOS, V

Olha! de par em par, as duas portas abro
Que deitam para o céu por teus olhos de sombra;
Este mundo febril, este mundo macabro,
Já me não horroriza e já me não assombra.

É o céu! da Via-Láctea o estranho candelabro
Fulge. Em tudo há fulgor e há carícias de alfombra;
Luz-me no teu olhar da lua o rosto glabro,
Nada o olhar me perturba ou a mente me ensombra.

Só tristeza, entretanto, em teus olhos me mostras
— Tal se fossem a tumba em que os sonhos empedro
Como pérolas dentro à válvula das ostras; —

E os cílios, — doce alpendre à cuja sombra medro,
Como, neles meu ser, todo fechas e prostras
Num círculo feral de casuarina e cedro!...


NO GÓLGOTA, III

Do sonho que te aclara o luminoso espectro,
Cor a cor, queres dar na cambiante da rima.
Lira d'oiro entre mãos, a desferi-la ao plectro,
Verso a verso vais ter do teu Gólgota acima.

Lapidário tenaz, no tórculo do metro
Premes a forma e a forma entre os teus versos prima;
Passo a passo eu te sigo e esse abismo penetro,
A cujo centro, em fogo, o teu estro se anima.

Quer tenhas sobre ti bênçãos que o céu reparte,
Ou tenhas o que sofro, examino e contemplo,
— Venhas tu de um paul ou de algum templo de arte, —

Deves sempre seguir o fatídico exemplo:
Para que o mundo vil possa um dia adorar-te,
É preciso enxotar os vendilhões do Templo.


GOTA D'ÁGUA

Olha a paisagem que enlevado estudo!...
Olha este céu no centro! olha esta mata
E este horizonte ao lado! olha este rudo
Aspecto da montanha e da cascata!...

E o teu perfil aqui sereno e mudo!
Todo este quadro que a alma me arrebata,
Todo o infinito que nos cerca, tudo!
D'água esta gota ao mínimo retrata!...

Chega-te mais! Deixa lá fora o mundo!
Vê o firmamento sobre nós baixando;
Vê de que luz suavíssima me inundo!...

Vai teus braços, aos meus, entrelaçando,
Beija-me assim! vê deste azul no fundo,
Os nossos olhos mudos nos olhando!...


O PEIXE (José Maria de Heredia)

Do mar, ao fundo, o sol, em misteriosa aurora,
Dos corais da Abissínia a floresta alumia,
Banhando, à profundez da tépida bacia
A fauna que floresce e a palpitante flora.

E tudo o que do oceano o iodo ou o sal colora
— A anêmona marinha, as algas de haste esguia, —
Põe suntuoso desenho em púrpura sombria
Na pedra verminosa onde o pólipo mora.

Amortecendo o brilho à refulgente escama,
Um grande peixe vaga entre a enlaçada rama;
Da água as ondas, em torno, indolente desfalda.

Mas súbito ele agita a barbatana ardente,
E à tona do cristal azulado e dormente,
Corre um rastilho de ouro e nácar e esmeralda!


TRAPO

Esta que outrora o linho da cambraia
Na pompa da ostentosa lençaria,
— Folhos e rendas que à secreta alfaia
Ornavam com capricho e bizarria —

Era camisa — e que hoje a nostalgia
Sofre do tempo em que entre a pele e a saia
O perfumado corpo lhe cingia, —
Era ao possuí-la, a última atalaia.

Trapo que encerras o ebriante aroma
Do seu colo moreno, poma a poma,
Ora em tiras te vejo desprezado.

E mais te quero, e mais te achego ao peito
Trapo divino! símbolo perfeito
De um coração por Ela espedaçado.


TARDE NA PRAIA

Quando, à primeira vez, lhe vi a grandeza,
Foi nos tempos da longe meninice.
E quedei-me à mudez de quem sentisse
A alma de pasmos e terrores presa.

Depois, na mocidade, a olhá-lo, disse:
É moço o mar na força e na beleza!
Mas, ao dia apagado e à noite acesa,
Hoje o sinto entre as brumas da velhice.

Distanciado de escarpas e barrancos,
Vejo-o a morrer-me aos pés, calmo, ao abrigo
Das grandes fúrias e os hostis arrancos.

E ao contemplá-lo assim, tristonho digo,
Vendo-lhe, à espuma, os meus cabelos brancos:
O velho mar envelheceu comigo!


NON DUCOR, DUCO (do brasão de armas da cidade de São Paulo)

És a divisa audaz que, transpondo as divisas,
Da metrópole ao vale, à escarpa, ao bosque, ao monte,
De nada tens mister, de nada mais precisas
Para, alargando a terra, afastar o horizonte.

Nas buscas do filão, do veio nas pesquisas,
Quatridente pendão, sem o que te amedronte,
Braço de bandeirante, a sacudir-te às brisas,
Lá vais, a própria morte, encarar fronte a fronte.

E, oh! alma vegetal, planta rica e sadia
Que, do rubi do fruto à esmeralda do galho,
Te transformas em ouro, ouro que em ti irradia.

Aí estás agasalhando o paulista agasalho
Que é o berço da beleza e a fonte da energia,
Fonte da intrepidez e berço do trabalho.


PINHEIRO MORTO (ao Paraná)

Nasceste onde eu nasci. Creio que ao mesmo dia
Vimos a luz do sol, meu glorioso irmão gêmeo!
Vi-te a ascensão do tronco e a ansiedade que havia
De seres o maior do verdejante grêmio.

Nunca temeste o raio e eu como que te ouvia
Murmurar, ao guaiar da fronde, ao vento: — "Teme-o
Somente o fraco arbusto! A rija ventania,
Teme-a somente o errante e desnudado boêmio!

Meu vulto senhorial queda-se firme. Embala-mo
O tufão e hei de tê-lo eternamente ereto!
Resisto ao furacão quando a aura abate o cálamo!"

— Ouve-me agora a mim que, em vez de ti, vegeto:
Já que em ti não pesei, entre os fulcros de um tálamo,
Faze-te abrigo meu nas entraves de um teto!


A DÚVIDA

É nova a aparição, mas, sendo nova, é a mesma
Que, há muito, me procura e se me foge há muito!
Se a palpo, ei-la a esgueirar-se em coleios de lesma,
Se a sigo, só lhe encontro um rastilho fortuito.

Para bem defini-la, embalde, resma a resma,
Todo o papel estrago. Em vão traço o circuito
Em que a devo prender. Se agora é atra avantesma,
Logo é o jogral que ri um ridículo intuito.

Ora é o duro pedrouço, ora é um frouxel de paina;
Ora o olhar amortece, ora lhe aviva o lume;
Ora agita as paixões, ora as paixões amaina.

O gesto do perdão e o gesto ultriz resume.
E eis-te mal esboçada em tua eterna faina,
Sócia eterna do Amor, fonte do eterno Ciúme.


NA GLORIFICAÇÃO DE OLAVO BILAC

Como é bom elogiar quando nasce o elogio
De um entusiasmo assim, de uma emoção sincera.
Corre, sobre o papel, a tinta, como um rio
A correr na caudal que o declive acelera!

Os vocábulos vêm, espontâneos, a fio,
Como os sorrisos sãos que um são deleite gera!
Rebenta o aplauso em nós, vigoroso e sadio,
Como rebenta a flor em plena primavera!

Eis por que sou feliz, em ver glorificado
Fora da inveja hostil, do despeito perverso
O prosador querido, o poeta muito amado!

Da arte, no sangue real, tens o teu estro imerso,
Porém, não basta, Mestre! um simples principado
— A quem é rei na prosa e imperador no verso!


A UM POSSESSO, V [resposta a cartas anônimas]

Passas. Ouço o rugir do vento que te leva.
Quando, da Arte, me ajoelho ao místico delubro,
Tu vens, lúbrico harfango a crocitar na treva.
E o tarado eu diviso, o impotente eu descubro.

Alimenta-te a inveja. O despeito te ceva.
O ódio deu-te a voz rouca e deu-te esse olhar rubro,
Esse único clarão que do teu ser se eleva
E que eu, do meu orgulho, ao régio manto encubro.

Anda! Beija-me aos pés a clâmide inconsútil.
Eu, piedoso, ta estendo ao desespero inerme.
Tu não és venenoso, o teu esforço é inútil.

O teu dente sutil não me passa a epiderme,
Ó fonte do banal, ó vertente do fútil!
Larva, tens o perdão. Tens a piedade, verme!


POETA [a Alberto de Oliveira]

O teu estro penetra, a fundo, a natureza,
Da extrema pequenez às amplidões extremas.
Sejas presa do real, sejas do sonho presa,
Do pâmpano e de rosa a Pã urdes estemas.

Grave guerreiro grego, à graciosa agudeza,
Alias a alma altiva e, a alar-se das algemas,
Mostras na alta panóplia, em pedraria acesa,
O áureo escudo a fulgir nos Sonetos e Poemas.

É assim que surges tu, ante as almas surpresas
Como imortal padrão, como sagrado emblema,
Da musa no esplendor das excelsas belezas.

Quando engastas no verso a rutilante gema
Da rima rica e rara em rubis e turquesas,
Tem-se o supremo culto e o amor da arte suprema.


O VIOLINO

São, às vezes, as surdinas
Dos peitos apaixonados
Aquelas notas divinas
Que ele desprende aos bocados...

Tem, ora os prantos magoados
Dessas crianças franzinas,
Ora os risos debochados
Das mulheres libertinas...

Quando o ouço vem-me à mente
Um prazer intermitente...
A harmonia, que desata,

Geme, chora... e de repente
Dá uma risada estridente
Nos "allegros" da Traviata.


A UM PESSIMISTA

Olhas o céu e o céu, todo em atra gangrena,
Se te mostra corroendo as rútilas esferas.
Baixas à terra o olhar e a terra, em outras eras,
Plena de gozo e amor, ora é de horrores plena.

Sangra a etérea região, sangra a região terrena
E o horizonte, que as une, inda mais dilacera-as.
E as próprias linhas — louco! em que a sânie verberas,
Podres vêm ao papel, podres brotam-te à pena.

Mas, se ao céu e se à terra, e se ao horizonte e ao verso,
Asco e náusea tressuando, a podridão atrelas
E nela vês tombar e fundir-se o universo,

Sobe do chão o olhar, baixa-o das nuvens belas
E volve-o dentro em ti, pois fora o tens imerso
Na própria irradiação das tuas próprias mazelas.


INSTANTE NEGRO

Anda, acima de nós, na abóbada infinita,
Em sinistro remígio, algum sinistro corvo
Que grasna ao nosso mal e à nossa dor crocita
Pondo, entre nós e o sol o seu feral estorvo!

Anda, abaixo de nós, uma víbora aflita
Que assalta o nosso sangue e o suga sorvo a sorvo!
A terra é para nós uma furna maldita.
O céu é para nós um teto negro torvo!

Terra e céu, contra nós, se conspiraram ambos.
A vida é um volutabro, e o sofrer não se exprime
Com que andamos por ela esfalfados e bambos.

Nem mais ao próprio poeta há um amor que o reanime,
— Em vez dele hoje entoar hinos e ditirambos,
Canta a glória suprema e a volúpia do Crime!...


ANIVERSÁRIO DA MORTE DE ARTUR AZEVEDO

Saudoso Artur Azevedo,
Amigo do nosso teatro.
Se não morresses tão cedo,
Verias o diabo a quatro.

O alegre, e risonho enredo
De tuas peças, num latro-
Cínio que até causa medo,
Em sessões de três por quatro!

Ó pobre Artur, que paciente
Esperaste nas promessas
De termos teatro decente!

Hoje anda tudo às avessas:
Se tu não vives, há gente
Que vive das tuas peças!...


NATAL

Neste Natal quisera eu ter a dita
De ir ao teu lado, à sombra do teu vulto,
Ao menino Jesus render meu culto
Numa igrejinha simples e catita.

Longe dos faustos deste mundo estulto,
Num idílio de monja e cenobita
Entre os meus braços o teu rosto oculto,
Do amor a bênção receber bendita.

Da natureza ouvindo a sinfonia.
Lá no Leme, entre as águas e as montanhas
Passarmos docemente o inteiro dia.

E à noite, após "complicações" tamanhas
Fazermos a consoada numa orgia
De vinho verde, beijos e castanhas.


GIRASSOL

Florir no descampado ou no úmido recanto
De alguma ruína, ou mesmo em áspero alcantil,
É um orgulho que tem o redoirado helianto
Dês que da terra emerge a plúmula erectil.

Quando ele desabrocha entre os glastos e o acanto,
Entre os mil tinhorões e as passifloras mil,
Tem-se à conta de um sol, nascido por encanto
Ao topo senhorial do tormentoso hastil.

É de vê-lo medir a força e o valimento,
Do orgulho vegetal, do seu orgulho em prol,
Ante o rival senhor de terra e firmamento!

É de vê-lo, tenaz, de arrebol a arrebol,
Do grande astro seguindo o régio movimento,
O áureo disco volver para encarar o sol!


O SALTO DO GUAÍRA

Largo oceano azul, ora margeando
Campina extensa, ora frondosa mata,
Léguas e léguas, marulhoso e brando,
O rio enorme todo o céu retrata.

Súbito, as águas, brusco, represando,
Em torvelins de espumas se desata;
Vertiginoso, indômito, raivando,
Ruge, fracassa e tomba em catarata.

Tomba, e de novo em arco se levanta,
Nada a brancura esplêndida lhe turva,
Em tanto resplendor e glória tanta,

E na apoteose em que a caudal se expande
Do sol aos raios, multicor se encurva
Rútilo arco-íris, luminoso e grande...


NUMA LÁPIDE

Qual se teu filho fora, eu me acabrunho
E, de mágoa, a falar-te mal me atrevo.
Aceita, entanto, o humilde testemunho
De quanto foste meu sagrado enlevo.

Fosse-me dado, de cinzel em punho,
Talhar o liso mármore em relevo,
E eu daria da pedra o eterno cunho
Às estrofes que em pranto e sangue escrevo:

Sei que não cabem nestes sons dispersos
O pranto em que esta angústia não se acalma,
E o sangue em que tais sons morrem imersos.

Não cabe dentro de votiva palma
Nem na estreiteza de mesquinhos versos
O infinito de dor que tenho na alma.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes