|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Augusto Meyer Júnior (Porto Alegre RS 1902-1970)

Com Mário Quintana e Raul Bopp formou a ala mais gaúcha do modernismo. Sonetou pouco, mas não se afastou da norma, seja no deca ou na redondilha, como se vê pela pequena amostra abaixo.


SANGA FUNDA

Vem ver esta sanga funda
com remansos de água clara:
lá embaixo o céu se aprofunda,
a nuvem passa e não pára.

Numa cisma vagabunda,
olhando-me cara a cara
quantas vezes me abismara:
água clara... alma profunda...

E que estranho era o meu rosto
no momento em que o sol-posto
punha uns longes na paisagem!

Aprendi a ser bem cedo
segredo de algum segredo,
imagem, sombra de imagem...


FLOR DE MARICÁ

Este perfume tão fino
é a saudade de um perfume
e parece que resume
o amor de um poeta menino.

Era um doce desatino
era este mesmo perfume
e em meu peito um vivo lume,
um nome, um segredo, um hino!

Mas onde estás, poeta louro?
E onde está o teu tesouro
de amor, de mágoa e queixume?

De tudo aquilo, ficou-me
o vago aroma de um nome
e a saudade de um perfume.


A PALETA DO POETA

Tortura do desenho! Horas a fio,
seguindo o risco ideal de um vivo traço
que está dentro de mim, faço e desfaço,
e sinto-o cada vez mais fugidio...

A cor e a luz! Encher de vida o espaço
nu da tela, retângulo vazio,
sol interior que o visionário viu
e o pincel torna cada vez mais baço...

Fecho os olhos; no escuro tumultua
todo um formigamento furta-cor:
arco-íris, aureolado astro violeta...

E tudo o que eu não pus na tela nua
vejo-o de novo em luz, em linha, em cor,
nas manchas coloridas da paleta!


A MÁRIO QUINTANA

Um "Schlichte", poeta, o inverno vai chegar:
a gente sente no ar um arrepio
finíssimo... a andorinha que partiu
ninguém sabe se um dia há de voltar.

Mas não faz caso, não, isto é do frio,
caprichos da vesícula biliar.
Na vidraça garoenta deste bar
namoro o meu reflexo vago e esguio.

Passam lá fora os homens apressados,
passam e apagam meu reflexo vago,
mas eu não vou fazer comparações.

Pra quê? Ó meus cigarros apagados,
bem sei que eu mesmo, eu mesmo é que me apago...
Dedico este soneto aos meus botões.


A ALMA E BILU, DIÁLOGO

— A culpa não é minha, a culpa é tua,
de tanto controlar, tu descontrolas.
Pois coleciona grilos, ora bolas!
Planta um grão de feijão e vai pra lua!

— Alma, sabes que mais? Tu não me amolas!
Boto o chapéu na idéia e vou pra rua
ver se encontro, imprevista, uma Bilua...
Por hoje, basta de caraminholas!

— Crepúsculo de maio, suave instante,
primeira estrela, brilha! Hoje tu dás
ao Poeta a mesma luz que Deus te deu.

— Alma, tudo é impossível e distante.
Vês? Ela brilha e me namora, mas
quando a luz chega, a estrela já morreu.


SONETO I

Gota de luz no cálice de agosto,
Sabe a lúcida calma o desengano.
Em vão devora o tempo o mês e ao ano:
Vindima é a vida, vinho me é o sol-posto.

Cobre-se o vale de um rubor humano.
Um beijo solto voa no ar, um gosto
De uva madura, um aroma de mosto
Desce da rubra luz do céu serrano.

Vem, noite grave. E assim chegasse o outono
Meu, tão sutil e manso como agora
Mesmo subiu a sombra serra acima...

Tudo se apague e a hora esqueça a hora,
Que só do sonho eu vivo, e grato é o sono
A quem provou seu dia de vindima.


SONETO II

A quem provou seu dia de vindima
Votado ao outro lado, ao eco, ao nada,
Grata é a sombra mais longa e o fim da estrada
Começo de um descer, que é mais acima.

Grave, de uma tristeza inconsolada
Mas fiel, a minha sombra é a minha rima.
Princípio de um além que se aproxima
É o fim, talvez limiar de outra morada.

Gosto amargo e tão doce de ter sido
Poroso a tudo, alma aberta às auroras
Que hão de nascer, e ao lembrado e esquecido!

Saudade! mas saudade em que não choras
Senão cantando, o próprio mal vivido...
Que as horas voltem sempre, as mesmas horas!


ORFEU

O dia morto nos meus ombros pesa
A sombra se deita na estrada comprida
Mas o leite da luz inunda a terra
E no meu gesto claro vive a vida.

Serei o sulco onde germinam sementeiras
As mil faces do amor me acompanham
Demônio, pólen das loucuras, anda!
Agita os mares, os ventos, as seivas.

Venho do fundo da amargura e me transformo
Na frauta leve das auroras, glória!
O dom da vida vibra no meu sopro

O hino sacode o turbilhão das forças
Rompe as fontes seladas, aleluia!
Que pura música atravessa o mundo?


ERA UMA VEZ...

Quem passa? É o Rei, é o Rei que vai à caça!
Mal filtra o luar a sombra do arvoredo.
Joãozinho, a um restolhar, treme de medo,
Maria escuta, se uma folha esvoaça...

Era uma vez um rei... jogou a taça
Ao mar, e o amargo mar guarda o segredo...
E a princesinha que cortou o dedo?
Faz muito tempo... Como a vida passa!

Era uma vez a minha infância linda
E o sonho, o susto, o vago encanto alado...
Vem a saudade e conta-me baixinho

Velhas histórias... E eu já velho ainda
Sou um Pequeno Polegar cansado
Que pára e hesita, em busca do caminho...

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes