|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Leila Míccolis (Rio de Janeiro RJ 1947)

Uma das mais eloqüentes e expressivas vozes femininas entre os 70 e os 80, atualmente pilota seu próprio e monumental sítio BLOCOS ON LINE, no qual assino a coluna "Glaucomatopéia". Autora polivalente (e bota valente e bota poli nisso) e prolífica, envia-me uma amostra de sua produção no campo sonetístico, que inclui até o primeiro capítulo duma novela poética publicada entre 73 e 75 no recifense JORNAL DE POESIA. Como testemunho da convivência que mantivemos durante os heróicos anos de alternatividade literária, dediquei-lhe o seguinte soneto:


SONETO 279 A LEILA MÍCCOLIS

Que tem de pequenina, tem de terna.
Concentra em si um pouquinho da maneira
de cada mulher brava brasileira:
Pagu, Tarsila, Anita. Ela é moderna.

Por décadas de luta, já governa
o mundo alternativo, farta feira
de arte, em vibrações de feiticeira:
Assim é Leila Míccolis, eterna.

Respeito a seus direitos ela cobra.
Ao bom comportamento é sempre avessa.
À fácil caretice não se dobra.

A frase lapidar dessa cabeça
é verso que resume grande obra:
"Falo do óbvio, antes que me esqueça."


	Glauco Mattoso


Eis a seleção da própria autora:


BONS TEMPOS ou SAUDOSA MALOCA...

Namoro antigo: titia
na sala bordava um pano,
tomava conta, e ainda havia
entre nós dois... um piano...

Pra se mostrar, a vigia
tocava um rondó cigano,
tão mal, que ela enrubescia,
se rias de algum engano...

Por fim, como despedida,
a mais ousada bravata:
um beijo na minha tez.

E após a tua saída,
eu, titia e mais a gata,
surubávamos as três...


CAMINHO DAS ÁGUAS

Cada rio é a vitória de seus elementos:
superando o desnível do solo, ele o trata,
pois na terra que leva, outra terra aclimata,
evitando desgastes e abalos violentos.

Vilarejos viceja. Transporta alimentos.
É fronteira e até porto; também serve à mata,
e às pessoas sensíveis, que inspira e arrebata,
pelos seus simbolismos e os seus movimentos.

Sendo um Bem, todo rio é um milagre expressivo,
que equilibra o planeta e, ao salvá-lo, o melhora
— um trabalho de amor e de muita insistência.

É vital preservá-los, pois são seres vivos,
defensores do clima, da fauna, da flora,
do mistério de Gaia e da própria existência.


DE DAFNE PARA APOLO

Se eu quis sumir, fugir, dos teus encantos
foi mais por arte má do deus Cupido,
que te flechou, tendo depois sumido
sem nem pensar em mim... Eram quebrantos

e não amor o teu. Por isto, em prantos,
e muito medo, eu me escondi devido
a ser-te caça,  jogo divertido,
perseguição sem paz por quaisquer cantos.

Meu pai ao ver-me aflita, enternecido,
mudou-me em árvore, compadecido,
para salvar-me, assim, do teu poder.

Mas se me amares mesmo, no futuro,
ó doce Apolo, sob um tronco duro,
hás de sentir meu coração bater.


DE VOLTA PARA O PRESENTE

Hipólita, Antíope ou simples colona,
terríveis perigos, feliz, desafio,
mostrando a potência do meu poderio,
dos campos, senhora, dos píncaros, dona,

pois sou tua eterna e soberba Amazona,
de mente sagaz e de corpo sadio,
num louco galope, em luxúrico cio,
por ínvios caminhos surgidos à tona...

Aquiles, Teseu, o que queres que sejas,
em mim acharás o que tanto desejas:
um misto de gozo, ternura e esplendor,

pois sou da floresta, o mistério, a clareira,
riquezas de cedro, de mogno e madeira,
tesouros de louros ao meu vencedor!


AS 1002 NOITES

Ó peregrino que vens tão cansado
de cavalgar por esta areia quente
do meu Saara, tórrido, inclemente,
agreste, árido e desabitado.

Ó meu califa que vens abrasado
pelo Simum intenso e permanente,
as odaliscas te darão, urgente,
licores, danças, figos e brocados.

Ao meu oásis sê bem-vindo e segue
ao meu palácio para que pernoites
até o deserto te voltar chamar...

Ó vem beduíno, árabe, tuareg,
que eu Sherazade, em mil e duas noites,
terei histórias para te contar...


NATUREZA MORTA

Na prática que tenho de silêncios, vi-me
a recordar, estranha, o tempo que regressa,
e como no que sinto não há mal nem crime,
eis que eu assim que posso escrevo, o mais depressa,

e em corajosa voz, antes que eu desanime,
venho dizer-te a falta que me fazes nesta
paixão enorme que, se me comprime,
fascina, atiça e, a ti, entregue, se confessa.

No entanto imóvel paro, ao me lembrar de tudo:
do amor insatisfeito por teu gesto alheio
que trago do passado e ríspida desnudo.

E então maldigo os frutos que em meu corpo aninho;
os belos grãos de uva e espigas de centeio
que não comeste em pão e nem bebeste em vinho.


AD PERPETUAM REI MEMORIAM

Por séculos tantos de naus e tufões,
das matas eu fui a melhor desbravada
— por ti descoberta, por ti conquistada —
em ânsias, perigos, audácia e ambições...

Também fui o sonho, que em tais propulsões
levou os navios repletos da armada
aos mares bravios da terra esperada,
a novos países e a outros rincões.

Se em terra estarei para sempre em teus rastros,
e em mares serei o maior dos teus mastros,
embora registrem-se as teses contrárias,

serei, para sempre, teu marco de vida:
perene, soberba, fincada, erigida,
mostrando o caminho pras Índias lendárias...


NOVELA POÉTICA: PRIMEIRO CAPÍTULO

Ele:

Agora é muito tarde para ser-te amigo:
as mágicas lembranças que guardamos, ambos,
cruéis nos transformaram em míseros molambos
e cada bom momento, em súbito castigo:

as marcas da paixão... meu beijo... teu umbigo...
tremendo de desejos nossos corpos, bambos...
depois, quanto apetite...  pêras, uvas, jambos
comidas na avidez da fome de um mendigo...

Meu desafio lanço: recordemos mais!
Se ao certo nada temes, abrirei anais
dos fatos já passados que lembrar consigo,

e então reviverei, a salvo das intrigas,
momentos memoráveis, para que me digas
se ainda queres ter-me apenas por amigo...


MUDANÇA DE CARRO (1971)

De tanto ouvir chacotas e chalaça,
foi-se o Gordini e apareci de Fusca,
(cujas ferrugens o verniz disfarça).
Por ser de idade, assim, meio velhusca,

treme todinha, a pobre da carcaça,
numa freada, um mínimo mais brusca;
e a gasolina, à frente, é uma desgraça:
eu sempre penso que o capô chamusca.

Farol é tênue, fraca, a lataria;
muito pior, porém, é a bateria
por sob o banco, atrás — é tragicômico.

A grana some e eu, a consumi-la,
preciso ter mais money na mochila,
para um carrinho assim, tão econômico...


ROTEIRO

— "Mas que surpresa boa eu encontrá-la.
Lembra de mim?" — "Me lembro: o escritor...
Já li seu livro" — "E então?" — "Tem muito humor
e o fim, confesso, me deixou sem fala..."

— "Bom que gostou! Eu... quero convidá-la
Para um debate". — "E qual o tema?" —"Amor...
Será de noite". — "Hoje???" — "Por favor"...
— "Irei" — "Perfeito, às oito vou pegá-la..."

— "É muito incômodo..." — "Nem diga isso!
Mas se tiver um outro compromisso..."
— "Não... está bem, anote a residência..."

— "Até mais ver..."  — "Até..." e fui embora,
tendo-a seguido antes, uma hora,
para forjar a falsa coincidência.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes